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2. A TRÍADE CRIANÇA, TELEVISÃO E EDUCAÇÃO

2.4 As manifestações culturais infantis e a televisão

Diante do exposto podemos perceber uma diversidade de infâncias devido às diferentes situações vivenciadas por cada criança, como o lugar onde vive, as relações que estabelece com outras pessoas, os momentos de lazer, entre outros, que contribuem para essa pluralidade de experiências e consequentemente de modos diferentes de vivenciar a infância. Se existe uma diversidade de infâncias, é inegável que exista uma pluralidade de culturas e consequentemente de culturas infantis, que refletem como as crianças percebem o contexto social, histórico e político no qual estão inseridas.

A criança é um sujeito social pertencente a um tempo/espaço geográfico, histórico, social, político e cultural de uma sociedade específica, que contribui para e desenvolve uma história individual e coletiva, incorporando e ressignificando uma cultura existente e produzindo assim, junto com as outras crianças, uma cultura específica, mas ao mesmo tempo plural. E desta maneira a criança influencia o meio em que vive, mas também é influenciada por ele (PERROTTI, 1982). E por isso cada cultura tem uma maneira de ver a criança, de tratá-la, de educá-la.

Embora tenhamos diferenças desiguais marcantes na vivência da infância em todo o mundo, os impactos da globalização nessa categoria geracional contribuíram para a disseminação da ideia da existência de uma só infância mundial. Os efeitos da globalização da infância são resultantes dos processos econômicos, políticos, culturais e sociais (ANDRADE, 2010, p. 64).

Portanto tem-se a consciência de que não existe uma forma única de ser criança, e muito menos uma infância universal. Mesmo com o advento da globalização, onde crianças do mundo todo podem ter vivências com os mesmos elementos culturais, a maneira como elas ressignificam, criam e recriam essa experiência está entrelaçada com uma cultura local, que se cruza com culturas sociais globalizadas, com culturas comunitárias, com culturas de pares.

E assim “as manifestações infantis são provenientes de uma cultura própria das crianças. Suas expressões, nas variadas linguagens, decorrem da relação com a cultura que as cerca, ou seja, com os bens

culturais que a sociedade disponibiliza para elas” (COUTINHO, 2002, p.99), e por isso Pinto e Sarmento (1997) ressaltam que as culturas infantis não nascem num universo exclusivo da infância.

As mídias desempenham um papel considerável no cotidiano de adultos e crianças. Assim pensar nas experiências da infância implica também pensarmos os modos como esta é representada nas mídias e como crianças e adultos interagem com a cultura do consumo, as tecnologias e as informações, pois estas redefinam as relações entres os sujeitos. Para Brougère (2004), “a televisão transformou a vida e a cultura da criança, as referências de que ela dispõe. Ela influenciou, particularmente, sua cultura lúdica” (idem, p.50).

O autor pontua que a cultura lúdica está imersa na cultura geral à qual a criança pertence, assim o meio social e cultural no qual a criança está inserida fornece à criança suportes simbólicos e significados que constituem sua experiência. Por isso Brougère (2004) ressalta que a cultura lúdica é diversificada, estratificada e compartimentada.

A cultura lúdica se manifesta por meio das brincadeiras, jogos de faz de conta, fabulações que contribuem para a construção de valores, conhecimentos e identidades. Podemos perceber a convergência das mídias na cultura lúdica, pois as brincadeiras estão repletas de referências midiáticas advindas dos desenhos animados, filmes, novelas, jogos, etc. E assim poderíamos concluir que a televisão fornece às crianças conteúdo para suas brincadeiras, contudo não basta passar na televisão ou agradar a crianças, para que esses conteúdos apareçam nas brincadeiras, eles devem se integrar ao universo lúdico da criança:

nem tudo se presta à brincadeira! A brincadeira não aparece como uma imitação servil daquilo que é visto na televisão, mas sim como um conjunto de imagens que têm a vantagem de ser conhecidas por todas, ou quase todas as crianças, a ser combinadas, utilizadas, transformadas, no âmbito de uma estrutura lúdica (BROUGÈRE, 2004, p.54).

O autor também ressalta que a criança não recebe passivamente os conteúdos televisivos, mas os reativa e se apropria deles em suas brincadeiras. “O grande valor da televisão para a infância é oferecer às crianças, que pertencem a ambientes diferentes, uma linguagem comum, referências únicas” (idem, p.54).

Para Souza e Salgado (2009) a cultura lúdica globalizada também é um palco de contradições, pois ao mesmo tempo em que aproxima crianças de diferentes lugares do mundo, de raças, culturas, credos, lhes dando acesso a um conteúdo global e integrador que as fazem compreender as referências de determinada brincadeira, também distancia aquelas que não têm acesso a esse mundo.

Brougère afirma que numa sociedade plural a televisão oferece uma referência comum, um suporte para a comunicação. Aliado a esse fato, o brinquedo reforça a importância da televisão na brincadeira, onde são produzidas referências a programas televisivos. Assim,

A televisão não se opõe à brincadeira, mas alimenta-a, influencia-a, estrutura-a, na medida em que a brincadeira não nasceu do nada, mas sim daquilo com que a criança é confrontada. Reciprocamente, a brincadeira permite à criança apropriar-se de certos conteúdos da televisão. (BROUGÈRE, 2004, p.56-57)

O brinquedo influencia e estrutura a cultura lúdica, tanto em suas condutas lúdicas como nos conteúdos simbólicos, e, segundo Brougère (2004), os brinquedos mais vendidos estão relacionados com as campanhas publicitárias televisivas. E assim ao longo dos tempos formou-se uma dupla inseparável: o brinquedo/a televisão. No entanto, a cultura lúdica da criança não está totalmente submissa à influência da televisão, pois esta está impregnada de tradições diversas. “A brincadeira é, entre outras coisas, um meio de a criança viver a cultura que a cerca, tal como ela é verdadeiramente, e não como ela deveria ser” (idem, p.59).

A brincadeira é cultural e não inata (natural), sendo o brincar aprendido no processo das relações interindividuais, como lembra Brougère (1995). As manifestações culturais infantis são reveladas principalmente em suas brincadeiras, que revelam ao outro como cada criança percebe o meio social no qual está inserida e também permite uma troca de experiências. O autor ressalta que a criança não brinca numa ilha deserta, sendo a brincadeira um espaço de socialização, de apropriação de cultura, de exercícios de decisão e da invenção, o que a torna uma possibilidade de ação pedagógica.

Nesse sentido percebemos a cultura como um ato de criação onde são tecidos emaranhados de significados que expressam formas de

ver, sentir, pensar e de se relacionar com o mundo físico e social. Desse modo a brincadeira é uma ação onde a criança expressa uma construção de conhecimento relacionada ao seu contexto social e cultural; a brincadeira é a criação da criança a partir dos elementos vivenciados em seu cotidiano. Por isso a brincadeira não é só fantasia, nem só imitação do real, mas a combinação de seus processos criadores.

Além do universo de experiências sociais e culturais que enriquecem as brincadeiras, os brinquedos permitem uma brincadeira mais concreta. Segundo Brougère (1995) existem dois tipos de brinquedos: aquele que é brinquedo só na brincadeira e para quem brinca (objeto que ganha a função de outro objeto) e o brinquedo como representação social, ou seja, é sempre brinquedo, mesmo se a criança não estiver brincando com ele. Assim o brinquedo permite à criança materializar a brincadeira, enriquecendo-a.

Os brinquedos produzidos pelos adultos e destinados às crianças vêm impregnados de um fator cultural e social. Brougère pontua que “o brinquedo pode ser considerado uma mídia que transmite à criança certos conteúdos simbólicos, imagens e representações produzidas pela sociedade que a cerca” (idem, 1995, p.63). Assim como os brinquedos, a imaginação da criança também é permeada por ser repertório social e cultural, sendo assim

a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da experiência anterior da pessoa, porque essa experiência constitui o material com que se criam as construções da fantasia. Quanto mais rica a experiência da pessoa, mas material está disponível para a imaginação dela (VIGOTSKI, 2009, p. 22)

Levando em consideração que a criança constrói sua cultura lúdica brincando, podemos afirmar que a brincadeira é um dos pilares das culturas infantis, sendo o brincar o elemento fundamental da cultura lúdica. Dessa forma os brinquedos e brincadeiras são importantes para a criação do imaginário infantil, e por isso a brincadeira é uma importante experiência que deve ser proporcionada na educação infantil de modo pleno, significativo e complexo, o que exige um planejamento constante da professora.

O planejamento na educação infantil deve ser percebido como um processo de reflexão, e não um simples roteiro de atividades a serem

desenvolvidas. Segundo Luciana Ostetto (2000) planejar é traçar, projetar, programar, é pensar num roteiro que permitirá às crianças uma viagem de conhecimento, de interação e de experiências múltiplas e significativas. Ou seja, pensar no planejamento vai muito além de pensar no como e no que fazer, mas também pensar para que e para quem, é uma atitude crítica da professora de educação infantil diante das crianças. E por ser crítico permite a professora repensar, revisar, replanejar, buscando novos significados para a prática pedagógica.

Sendo assim considerar a brincadeira como o eixo norteador das práticas pedagógicas32 nos remete à importância do papel da professora de educação infantil enquanto mediadora, e por isso em seu planejamento seria importante que ela contemplasse os tempos, espaços, materiais que contribuem para o desenvolvimento dessa cultura lúdica. Mas além de propor, também deve participar das brincadeiras junto com as crianças, e observá-las, pois dessa maneira irá conhecer as crianças e seus repertórios culturais, podendo assim ampliar as possibilidades de criação das crianças.

Em suas brincadeiras as crianças trazem referências televisivas, tanto na criação das brincadeiras como também com os brinquedos que as compõem, e muitas vezes trazem para as unidades educativas os filmes que apresentam essas referências televisivas. A partir desse cenário me questiono se no cotidiano da educação infantil essas referências são observadas e problematizadas pelas professoras. As professoras refletem com as crianças sobre essas referências presentes nas brincadeiras e falas das crianças, ou apenas as ignoram? As professoras buscam trazer novas referências para as crianças ou apenas reafirmam um mesmo repertório? A professora planeja alguma prática pedagógica que contribua para a reflexão sobre essas referências? E como a professora planeja o uso da televisão com as crianças?

32 Como apresentado nas Orientações Curriculares para a Educação Infantil do Município de Florianópolis.