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4 APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO

4.1 AS MEDIAÇÕES NA TEORIA

Eu sempre parti do ponto que a comunicação não era apenas os meios e que, para a América Latina, era muito mais importante estudar o que acontecia na igreja aos domingos, nos salões de baile, nos bares, no estádio de futebol. Ali estava realmente a comunicação das pessoas. Não podíamos entender o que o povo fazia com o que ouvia nos rádios, com o que via na televisão, se não entendíamos a rede de comunicação cotidiana” (Martín-Barbero, 2000, p. 153).

Ao formular a Teoria das Mediações, Jesús Martín-Barbero realocou o processo comunicativo em um cenário mais complexo. A compreensão do fenômeno comunicacional estaria, a partir dessa perspectiva, no âmbito sociocultural – especificamente no uso social dos meios. Com isso, a proposição do intelectual incluiu as diversas instituições e a diversidade da recepção na discussão sobre a comunicação.

Na obra Dos Meios às Mediações, de 1987, Martin-Barbero propõe “o deslocamento da análise da comunicação para onde o sentido é produzido, ou seja, para o âmbito dos usos sociais” (JACKS; MENEZES; PIEDRAS, 2008, p. 33). Pressupondo a existência de um receptor ativo e com capacidade criativa de reapropriação e interpretação das mensagens, o autor defende que a experiência é parte fundante na análise da recepção das mais variadas mensagens, considerando as conexões das pessoas comuns com a mídia, principalmente a partir da “interação entre o espaço da produção e do consumo” dos meios (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 292).

Em um movimento dialético de reconhecimento de si e do outro e entre ficção e realidade, Martín-Barbero crê que a interpretação dos produtos midiáticos por parte do receptor não foge de uma leitura da vida cotidiana, já que os produtos das indústrias culturais não são fabricados apenas para atender às necessidades mercadológicas e estratégias industriais, mas também para dar conta da demandas que emergem dos próprios modos de percepção e apropriação desses produtos. Tais leituras são realizadas a partir de diversos “filtros mediadores” – ou mediações socioculturais, como a família, a escola, grupos sociais, o bairro, a igreja, etc., que funcionam como negociadores em uma complexa teia de relações entre os meios de comunicação de massa e a trama cultural.

Ponderamos que o próprio autor não apresenta definição única acerca do termo “mediação” – seu conceito chave e mais influente. Luiz Signates (1998) faz uma crítica a essa imprecisão ao inferir que “parece sintomático que um dos principais autores responsáveis pela revivência da figura das mediações na pesquisa latino-americana não tenha trabalhado rigorosamente na sua delimitação conceitual” (SIGNATES, 1998, p. 41). Contudo, reconhece que essa lacuna não implica na redução da importância do pensamento de Martín-Barbero.

De acordo com Lopes e Orofino (2014, p. 367), para compreender tal conceito é preciso pensá-lo como uma noção plural, ou seja, “mediações”. Parte considerável dos estudos de recepção que mobilizam esse conceito o fazem a partir do trecho de pesquisa realizada por Martín-Barbero em coautoria com Sônia Munhoz. Nas palavras destes, as mediações apresentam-se como:

[...] esse lugar desde donde es posible compreender la interacción entre el espacio de la producción y el de la recepción: lo que se produce en la televisión no responde unicamente a requerimientos del sistema industrial y a estratagemas comerciales sino tambíén a exigencias que vienen de la trama cultural y los modos de ver (MARTÍN- BARBERO; MUNHOZ,1992, p. 20).

Lopes e Orofino (2014, p. 367) se apropriam dessa definição e a interpretam como uma chave que “capta a comunicação a partir de seus nexos, dos lugares a partir dos quais se torna possível identificar a interpretação entre o espaço da produção e do consumo da comunicação” fazendo com que “a própria produção seja vista em diálogo com as demandas sociais”.

Na supracitada obra de 1987, Martín-Barbero aponta três lugares das mediações – que destaca como centrais para o estudo da comunicação e da cultura: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural. O autor aponta a família como unidade básica de audiência na América Latina, visto que representa a situação primordial do reconhecimento. Assim, o modo como a TV interpela a família não pode ser entendido sem investigar a

cotidianidade familiar, “âmbito de conflitos e de fortes tensões” e um dos poucos lugares “onde os indivíduos se confrontam como pessoas e onde encontram a possibilidade de manifestar suas ânsias e frustrações” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 295).

No tocante à temporalidade social, pode-se dizer que é relação entre o tempo do capital (produtivo, acelerado, valorizado economicamente) com o tempo da cotidianidade (repetitivo, fragmentado), que conforma a rotina diária. No entendimento de Ronsini (2009, p. 3), a televisão ligaria esses dois tempos, colocando em contato o ritual e a rotina domésticos com o mercado. Por fim, a competência cultural, “é resultante do habitus de classe e relacionada a questões étnicas e de gênero” (RONSINI, 2007, p. 42). Em outras palavras, essa mediação é concebida como o contexto cultural que os indivíduos adquirem ao longo da vida, não somente através da educação formal, mas por experiências advindas de seus cotidianos.

Passados dez anos dessa teorização – e reconhecendo “que a comunicação estava mediando todos os lados e formas da vida cultural e social dos povos” – Martín-Barbero formulou um novo mapa (Figura 1), que fosse capaz de dar conta da complexidade nas relações constitutivas da comunicação na cultura. Ocorreu, assim, uma inversão na lógica de mediações culturais da comunicação para mediações comunicativas das culturas.

Figura 1 – Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura

Fonte: MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16

Este mapa movimenta-se sobre dois eixos: um diacrônico, ou histórico de longa duração, entre Matrizes Culturais e Formatos Industriais; e outro sincrônico, entre Lógicas de

Produção e Competências de Recepção ou consumo. As relações entre os componentes de cada eixo são conectadas por distintas mediações. As interações entre Matrizes Culturais e Lógicas de Produção são mediadas pela institucionalidade. Já a tecnicidade é a mediação entre Lógicas de Produção e Formatos Industriais. As relações entre Matrizes Culturais e Competências de Recepção, por sua vez, são mediadas pela socialidade e, enfim, a ritualidade efetua-se no espaço entre Formatos Industriais e Competências de Recepção.

A socialidade, na formulação do autor, “gerada na trama das relações cotidianas que tecem os homens ao juntarem-se é o lugar de ancoragem da práxis comunicativa e resulta dos modos e usos coletivos da comunicação” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 16). Em outras palavras, diz respeito às relações cotidianas nas quais se baseiam as diversas formas de interação dos sujeitos e a constituição de suas identidades. Essa mediação conecta a tradição cultural com a forma como os receptores se relacionam com a cultura massiva. “É o lugar das práticas sociais, onde as pessoas estão em constante negociação com a ordem vigente” (RONSINI, 2011, p. 87).

A institucionalidade está relacionada aos meios empregados para a produção de discursos públicos com finalidade de atender às lógicas dos interesses privados. A partir dessa mediação, analisa Nilda Jacks (2008, p. 21), duas ordens contrapostas podem ser pensadas: o regime estatal, que concebe os meios como serviço público, e o regime de mercado, que converte a liberdade de expressão em comércio.

Já a tecnicidade remete ao processo de globalização, de construção de novas práticas através das diferentes linguagens midiáticas. Para Martín-Barbero (2004, p. 235), a técnica extrapola a ordem instrumental, operando como um organizador perceptivo que, por meio das práticas, articula a transformação material às inovações discursivas.

A ritualidade, por fim, “remete-nos ao nexo simbólico que sustenta toda a comunicação: à sua ancoragem na memória, aos seus ritmos e formas, seus cenários de interação e repetição” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 19). Refere-se aos diferentes usos sociais das mídias e aos diferentes trajetos de leitura. Esses últimos, estreitamente associados à qualidade da educação, aos saberes constituídos em memória étnica, de classe ou de gênero, e aos costumes familiares de convivências com a cultura letrada, oral e a audiovisual.

De acordo com Lopes (2014, p. 70), a partir desse segundo mapa, “fica evidente que a teoria das mediações ultrapassava a configuração de uma teoria da recepção e alcançava a proposta de uma teoria da comunicação”. Ainda de acordo com a autora, “o olhar não se inverte no sentido de ir dos meios para as mediações e nem das mediações para os meios, senão para ver a complexa teia de múltiplas mediações” (ibidem, p. 72).

4.2 PRÓXIMOS E DISTANTES: A VALIDADE DOS CONCEITOS DE MEDIAÇÃO E