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Os problemas em dar contornos históricos à clínica, são agravados pela maneira inespecífica com que esta é tratada nos livros de história do saber e da prática médica. Há muita discussão sobre o histórico da medicina, e menos construção sobre a história de seus campos ou instrumentos. Talvez, porque o esforço esteja em remeter o marco inicial a uma época de beleza e erudição, na qual o conhecimento era uno e não compartimentado, como o que se passou a experimentar na contemporaneidade com o advento do positivismo.

Fala-se da prática e do conhecimento médico como algo presente desde “os primórdios da civilização”. Todavia, é possível dizer que a construção do objeto desse conhecimento variou significativamente ao longo da história. A cada variação, modificou-se todo o fazer a ele associado, bem como o discurso que o circundava, suas ramificações e seus usos.

No princípio, as questões que inaugurariam a práxis médica eram formuladas face à perplexidade diante de certas funções comuns ao organismo: cicatrização, reprodução e morte, entre outras. Neste caso, as respostas possíveis às perguntas suscitadas por tais fenômenos eram as mesmas encontradas pela humanidade para tantas outras questões realizadas nesse período.

Trava-se de uma explicação pelo sobrenatural. Esse era o tempo de uma “medicina” mágica e ritualística. Sacerdotes, xamãs, curandeiros, pajés eram os que conheciam a linguagem divina capaz de manter ou promover alterações de todo o tipo, inclusive em funções do corpo vivo (LOPES, 1969).

Para alguns (talvez exatamente aqueles tocados pela aura beleza que envolve a saúde), este cenário só seria mudado na antiguidade clássica, quando uma outra forma de conceber os fenômenos orgânicos seria instaurada.

É bem conhecida, por exemplo, a atribuição de paternidade da medicina a Hipócrates. Ele teria sido aquele que iniciou a organização e a racionalização do saber e da prática médica. A notoriedade deste “primeiro médico” é devida, em parte, às referências feitas por seus contemporâneos, Platão e Aristóteles e à edição, no século IV a.C., do Corpus hippocraticum. Uma obra a ele atribuída, que se constitui em uma espécie de compêndio sobre “teorias e técnicas” acerca da saúde e da doença naquela época. Os escritos mais significativos deste tratado,

[...] os que constituem o centro fundamental da coleção, foram compostos entre 420 e 350 a.C, etapa que podemos considerar definitiva na formação da doutrina hipocrática. Talvez haja no Corpus hippocraticum algum escrito um pouco anterior a estas datas, e também alguns notadamente posteriores [...]. Mas o fundamental e a maior parte dos textos recolhidos no amplo Corpus hippocraticum é produto da investigação e do ensinamento de alguns escritores que compuseram suas obras nos decênios finais do séc. V a.C. e nos primeiros do séc. IV a.C. Ou seja, de médicos contemporâneos a Hipócrates, senão do próprio Hipócrates e de seus discípulos mais próximos, da geração imediata. (GUAL et al., 1983, p.10)

A coletividade na autoria desse compêndio é tida por alguns como motivo para descreditar a paternidade de Hipócrates à medicina (BEIER, 2010). Como se o nascimento desse campo não fosse obra de um só homem, mas sim de vários. Entretanto, a questão sobre as origens de uma medicina não mágica jaz mais profunda que uma simples concorrência pela autoria de uma obra em particular. O fato é que: muito antes da edição dos tratados hipocráticos, já há indícios claros de uma outra forma de medicina, mais racional, organizada, não ritual ou sobrenatural.

O Código de Hamurabi, por exemplo, uma coleção de 282 leis instituídas pelo sexto rei da dinastia Hamurabi da Babilônia, no século XVIII a.C. (mais de 1200 anos antes dos daquela publicação), instituía uma primeira normatização da atuação médica a partir da fixação de honorários. No Código, o exercício da medicina, descrito em 10 artigos, aparece, não como um sacerdócio ou algo de cunho sobrenatural, mas como um serviço a ser pago, pareado a outros ofícios como construtores, tutores, veterinários, entre outros.

206. Se durante uma briga um homem ferir outro, então o primeiro deve jurar que "Eu não o feri de propósito" e pagar o médico para aquele a quem machucou. [...]

215. Se um médico fizer uma grande incisão com uma faca de operações e curar o paciente, ou se ele abrir um tumor (em cima do olho) com uma faca de operações, e salvar o olho, o médico deverá receber 10 shekels em dinheiro. 216. Se o paciente for um homem livre, ele receberá cinco shekels.

217. Se ele for o escravo de alguém, seu proprietário deve dar ao médico 2 shekels.

218. Se um médico fizer uma larga incisão com uma faca de operações e matar o paciente, ou abrir um tumor com uma faca de operações e cortar o olho, suas mãos deverão ser cortadas.

219. Se um médico fizer uma larga incisão no escravo de um homem livre, e matá-lo, ele deverá substituir o escravo por outro.

220. Se ele tiver aberto o tumor com uma faca de operações e ter tirado o olho (do tumor) ele deverá ser pago a metade do valor contratado.

221. Se um médico curar um osso quebrado ou uma parte maleável do corpo humano, o paciente deverá pagar ao médico cinco shekels em dinheiro. 222. Se ele for um homem libertado, ele deverá pagar três shekels.

223. Se ele for um escravo, seu dono deverá pagar ao médico dois shekels. (BOUZON, 1980, P.91)

Essa normatização através da monetarização da atividade médica no Código de Hamurabi é um sinal de como a sociedade, até então estabelecida na antiga Babilônia, se relacionava com a medicina. Ainda que a modalidade mágica, baseada na relação com o sobrenatural, pudesse ser praticada nesse contexto, é certo que a prática já era vista como um serviço na pólis. E, mais do que isso, era de fato um serviço regulamentado.

Séculos mais tarde, cerca de mil anos depois, no século VIII a.C., encontram-se outros importantes registros de uma medicina mais organizada e não mágica. Tratam-se de dois poemas épicos de Homero: a Ilíada e Odisseia.

Publicados cerca de 300 anos antes dos tratados de Hipócrates, em passagens específicas, os poemas apontam para aspectos relativos ao status do saber médico: sua especificidade, valor e transmissão. Sendo que todos esses fatores aparecem relativamente dissociados de uma relação com o sobrenatural.

Em a Ilíada [...] os dois filhos de Asclépio, Podalírio e Macáon, estão à frente dos guerreiros de Ecália. No segundo canto do poema, há uma referência às atribuições curativas dos dois personagens:

“(Havia) também os da Ecália, a cidade de Êurito ecálio, lideravam-nos os dois filhos de Asclépio, dois bons médicos, Podalirio e Macáon. Foram alinhadas por eles trinta côncavas naus” (IL lI, 730-4).

Esses "curadores", os médicos da Ilíada, gozam de um prestígio superior ao dos guerreiros. No canto décimo primeiro lê-se a axiomática sentença proclamada pelo sábio Nestor:

“vale por muitos um homem que é médico, (que sabe) extrair flechas e aplicar medicamentos lenitivos nas feridas” (U XI, 514-5).

Na Odisséia, o médico não vale menos. Na Telemaquia, lê-se como complemento à explicação dos conhecimentos farmacológicos de Helena um comentário acerca do Egito, que muito esclarece sobre o prestígio do médico: “(no Egito) médico é cada um que sabe sobre todos os homens, pois descendem de Peon” (Od. IV,231-2). (CAIRUS, 2005, p.30)

Independentemente do caráter ficcional ou não dos fatos narrados nestes poemas, as passagens acima constituem documento do pensamento grego naquele período. O médico ali já aparece como um homem com saber técnico sobre todos os homens.

Muito mais poderia ser dito sobre a história da medicina no ocidente (CAIRUS, 2005) de maneira a dar índicos da forma como essa foi estabelecida como um serviço baseado em um saber técnico bem antes de Hipócrates, entretanto é preciso avançar.

O importante é marcar que muito antes da organização do Corpus hippocraticum, a medicina ocidental já estava se constituindo como um saber técnico, tekne iatrike ou ars medica, afastando-se progressivamente do trato com o sobrenatural. Um movimento que se consolida a partir do desenvolvimento do conhecimento da natureza: pela chamada physiologia (ENTRALGO, 1987). Algo que foi se fazendo possível pela

[...] multiforme riqueza da medicina empírico-mágica dos antigos gregos, sua total carência de dogmatismo e a expressa convicção de que algo divino na realidade do mundo e das coisas (ananke) põe limites a toda e possível ação mágica. Em síntese, o que pressupôs a façanha hipocrática foi a denominada

ananke physeos, que nada mais é que a necessidade da natureza. Para atuar segundo a arte, o médico precisava saber o que é a enfermidade, quem é o enfermo como enfermo, quem é o homem e qual é o tratamento a ser empregado. (BEIER, 2010, p.249)

Aí está, precisamente, o valor do tratado hipocrático. Na obra, através da exposição minuciosa da semiologia, etiologia, prognóstico e terapêutica, é possível ter clareza sobre os lugares de médico, enfermo e doença naquela época. Essa tríade estava submetida a racionalidade da physis, ou seja, da natureza, e era por ela organizada.

A natureza (physis), tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte do homem. Está em todo o homem e é toda dele. As circunstâncias externas são ocasiões, e não causas. O que está em equilíbrio no homem, e cuja perturbação causa a doença, são quatro humores, cuja fluidez é precisamente capaz de suportar variações e oscilações, e cujas qualidades são agrupadas duas a duas, segundo seu contraste (quente, frio, úmido, seco). A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar. A terapêutica deve, em primeiro lugar, tolerar e, se necessário, até reforçar essas reações hedônicas e terapêuticas espontâneas. A técnica médica imita a ação médica natural (vis medicatrix naturae). Imitar é não somente copiar uma aparência, é reproduzir uma tendência, prolongar um movimento íntimo. (CANGUILHEM, 2009, p.13)

Desta forma, fica estabelecido aquilo que concerne o enfermo, ou seja, um organismo natural e total, mas em desequilíbrio. E, ainda assim, um ser de responsabilidade que deve “combat the disease along with the physician”16 (HIPPOCRATES, 2018a, p.6). Marca-se o lugar do médico como um “the servant of the art”17 (HIPPOCRATES, 2018a, p.5), aquele que deve avaliar o desajuste e atuar pelo natural, para orientar o organismo ao reestabelecimento do equilíbrio perdido. Por fim, delineia-se aquilo que se entende por doença, a saber: um desequilíbrio no organismo.

É importante destacar e aprofundar, aqui, a definição da doença para essa medicina. Afinal, o que “a medicina grega [...] oferece à nossa consideração, nos escritos e práticas hipocráticos, é uma concepção não mais ontológica, e sim dinâmica da doença, não mais localizante, e sim totalizante” (CANGUILHEM, 2009, p.12). A doença não é uma parte externa, não é um agente, nem tão pouco um outro ser, alheio ao paciente. Ela é tão somente um estado. Dito de outro modo, a doença é um estado de desequilíbrio e não uma entidade. Ela não faz parte do corpo humano, ela é o próprio organismo integrado ao meio natural, mas em um estado de equilíbrio alterado.

Daí que, para o médico da antiguidade clássica, é importante escutar o ser por completo e avaliar o meio ambiente em que ele vive. Ouvir do enfermo o que lhe acontece, mas também conhecer a natureza circundante. Comenta Hipócrates (ou um dos muitos autores do Corpus hippocraticum):

with regard to diseases, the circumstances from which we form a judgment of them are,- by attending to the general nature of all, and the peculiar nature of each individual,- to the disease, the patient, and the applications,- to the person who applies them, as that makes a difference for better or for worse,- to the whole constitution of the season, and particularly to the state of the heavens, and the nature of each country;- to the patient's habits, regimen, and pursuits;- to his conversation, manners, taciturnity, thoughts, sleep, or absence of sleep, and sometimes his dreams, what and when they occur;- to his picking and scratching;- to his tears;- to the alvine discharges, urine, sputa, and vomitings; and to the changes of diseases from the one into the other;- to the deposits, whether of a deadly or critical character;- to the sweat, coldness, rigor, cough, sneezing, hiccup, respiration, eructation, flatulence, whether passed silently or with a noise;- to hemorrhages and hemorrhoids;- from these, and their consequences, we must form our judgment. (HIPPOCRATES, 2018a, p. 24)18

16 combater a doença ao lado do médico. (Tradução nossa) 17 um servo da arte. (Tradução nossa)

18 no que diz respeito às doenças, as circunstâncias a partir das quais formamos um juízo sobre elas são – atentando para a natureza geral de tudo e à natureza peculiar de cada indivíduo - à doença, ao paciente e às aplicações, à pessoa que os aplica, pois isso faz a diferença para o bem ou para o mal - para toda a constituição da época e, particularmente, para o estado dos céus e a natureza de cada país - para os hábitos, regime e - para a conversa dele, modos, taciturnidade, pensamentos, sono, ou ausência de sono, e às vezes os sonhos dele, o conteúdo e quando eles acontecem; - a forma como cutuca-se ou coça-se -

Como visto, então, a medicina hipocrática se estabelece como uma arte sustentada por um tripé: doente, doença e médico. Um tripé que não jaz solto no espaço, mas está edificado sobre as bases da Natureza.

Isto, entretanto, não impede os hipocráticos de categorizar quadros particularmente comuns e descrevê-los de maneira a orientar a prática e a formação de novos artífices. Há, no livro “Epidemias”, um dos textos que compõe Corpus hippocraticum, uma passagem particularmente específica acerca do valor dessa categorização e sua escrita. Nela, lê-se:

I look upon it as being a great part of the art to be able to judge properly of that which has been written. For he that knows and makes a proper use of these things, would appear to me not likely to commit any great mistake in the art. He ought to learn accurately the constitution of every one of the seasons (grifo nosso), and of the diseases; whatever that is common in each constitution and disease is good, and whatever is bad; whatever disease will be protracted and end in death, and whatever will be protracted and end in recovery; which disease of an acute nature will end in death, and which in recovery. From these it is easy to know the order of the critical days, and prognosticate from them accordingly. And to a person who is skilled in these things, it is easy to know to whom, when, and how aliment ought to be administered19. (HIPPOCRATES, 2018a, p.7)

Vê-se que já há aí uma ocupação com a escrita classificatória. Todavia, ao observar os casos dispostos ao longo desse mesmo texto, nota-se que não figuram quaisquer nomes de doenças. A categorização dos casos é por mero agrupamento. São apresentados pelo nome dos doentes seguidos de uma narrativa sobre o curso da enfermidade. Os casos são agrupados em listas pela época de ocorrência e similaridade dos sintomas apresentados. Classificados sim, de alguma forma. Porém, “a doença” não é materializada e feita existir por um nome em particular.

Abaixo podemos acompanhar um exemplo:

Case i. In Thasus, a woman, of a melancholic turn of mind, from some accidental cause of sorrow, while still going about, became affected with loss of sleep, aversion to food, and had thirst and nausea. She lived near the Pylates, upon the Plain. On the first, at the commencement of night, frights,

às lágrimas dele - às descargas do seu ventre, urina, catarro e vômitos; e às transformações das doenças de um estado para o outro - aos depósitos, tanto os de caráter mortal ou os críticos - ao suor, frieza, rigor, tosse, espirro, soluço, respiração, eructação, flatulência, se soltos silenciosamente ou com um barulho; - a hemorragias e hemorroidas; - destes, e suas consequências, é que devemos formar nosso julgamento. (Tradução nossa)

19 Eu vejo isso como sendo uma grande parte da arte, que se seja capaz de julgar apropriadamente aquilo que foi escrito. Pois aquele que conhece e faz um uso adequado dessas coisas, parece-me que não cometeria nenhum grande erro na arte. Ele deve aprender com precisão a constituição de cada uma das

estações (grifo nosso), e das doenças; tudo o que for comum em cada constituição e doença e for bom, e tudo o que for ruim; quando uma doença será demorada e terminará em morte, e quando será prolongada e terminará em recuperação; quais doenças de natureza aguda terminarão em morte, e quais em recuperação. A partir daí, é fácil saber a ordem dos dias críticos, e prognosticar a partir deles. E para uma pessoa que é habilitada nessas coisas, é fácil saber a quem, quando, e como o alimento deve ser administrado. (Tradução nossa)

much talking, despondency, slight fever; in the morning, frequent spasms, and when they ceased, she was incoherent and talked obscurely; pains frequent, great and continued. On the second, in the same state; had no sleep; fever more acute. On the third, the spasms left her; but coma, and disposition to sleep, and again awaked, started up, and could not contain herself; much incoherence; acute fever; on that night a copious sweat all over; apyrexia, slept, quite collected; had a crisis. About the third day, the urine black, thin, substances floating in it generally round, did not fall to the bottom; about the crisis a copious menstruation.20 (HIPPOCRATES, 2018a, p.13)

Mesmo em livros com aporte mais específicos sobre enfermidades, como Sobre as doenças das mulheres (HIPPOCRATES, 2018b) por exemplo, o que se lê é uma compilação de sintomas, possíveis etiologias e o curso da patologia. A não materialidade da doença, mas o valor da natureza e a igualdade dos pés que sustentam o tripé da arte: doente, doença e médico é o que se faz notar ao longo das muitas páginas do Corpus.

Pois bem, essa concepção e significação dos três elementos que constituem a arte referida por Hipócrates (2018a) permaneceu usual por muitos anos. De fato, ela foi a interpretação corrente (ao lado da religiosa) por cerca de mil anos, até ser radicalmente modificada com o advento da contemporaneidade. Compreender essa mudança na história da medicina é esclarecer o porquê se escolheu estabelecer do século XVIII como o tempo do nascimento da clínica.

No documento Universidade Católica do Salvador (páginas 45-51)