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Do doente à doença

No documento Universidade Católica do Salvador (páginas 55-58)

3.2 AS CONDIÇÕES PARA O NASCIMENTO DA CLÍNICA

3.2.1 Do doente à doença

Neste primeiro tópico, peço-lhes licença para subverter a história factual, fazer uso de um exemplo anacrônico.

Em 2004, estreava em uma emissora de televisão dos Estados Unidos, uma série de ficção sobre um médico que dirigia um departamento de medicina diagnóstica em um hospital universitário: House. A cada episódio, Gregory House e sua equipe se debruçavam sobre um caso de urgência e difícil diagnóstico. Para efeitos de narrativa, os sintomas eram, por muitas vezes, exagerados, seja em reação ou no tempo de curso da doença. E, além destes fatos, que para muitos podem gerar discussão sobre a relevância dos conteúdos apresentados, há ainda toda a controvérsia que acompanha práticas antiéticas do clínico. Entretanto, se evocamos

House é por sua aparente afinidade com os médicos do século XVIII, no que tange à localização da verdade na patologia e não no doente.

“People lie”24, é uma afirmação repetida pelo médico continuamente a cada capítulo. Sim, para ele as pessoas mentem, na maioria das vezes de maneira voluntária e, quando não é este o caso, fazem-no involuntariamente. A verdade está na doença. A busca de House é a busca pela verdade diagnóstica e ela não poderia estar com os pacientes, “os mentirosos”. Por essa razão, ele não precisa nem deve visitá-los, falar com eles, escutar suas queixas. Decide pela surdez em relação às impressões do paciente. O médico direciona sua escuta e seu olhar à manifestação de sinais e sintomas que carregam consigo traços da verdade buscada, analisando os exames colhidos, seu curso e comparando-os as doenças que conhece.

House é uma caricatura, com claras referências ao mestre da dedução Sherlock Holmes (cujo sobrenome também é uma espécie de sinônimo para “casas” no inglês britânico). Entretanto, a série centra-se em um exagero bem específico. Trata-se da hipérbole de uma prática fundamental ao nascimento da clínica: supressão da variável “particularidades do doente”.

o que a medicina classificatória chama “histórias particulares” são os efeitos de multiplicação provocados pelas variações qualitativas (devidas aos temperamentos) das qualidades essenciais que caracterizam as doenças. O indivíduo doente se encontra no ponto em que aparece o resultado dessa multiplicação. (FOUCAULT, 2011, p. 14)

Daí que seu destino não poderia ser outro que não a supressão.

Se antes a doença era entendida como uma mera construção teórica sobre uma alteração na natureza do corpo humano, a verdade estava, então, do lado daquilo que tinha substância: corpo do doente. Era ao paciente que o médico dirigia a escuta e o olhar, pois ele guardava a verdade sobre a alteração que ocorria consigo.

Porém, ao ganhar uma existência própria, isoladamente do corpo humano, a doença capturou o olhar do médico e ganhou privilégio na “escuta” clínica. O olho especializado do clínico tem um outro objeto para focar. Um objeto que guarda uma verdade natural e imutável. A existência da doença como um ser é o que permitirá ao médico prescindir quase que integralmente do paciente. Este, então, resta como um veículo, um espaço no qual se manifesta a doença.

Deste modo, na clínica devem ser encontradas as

[...] doenças cujo portador é indiferente: o que está presente é a doença no corpo que lhe e próprio, que não é o do doente, mas o de sua verdade. São as “diferentes doenças que servem de texto”: o doente é apenas aquilo através de

que o texto é apresentado à leitura e, às vezes, complicado e confundido. [...] Na clínica, onde se trata apenas de exemplo, o doente é o acidente de sua doença, o objeto transitório de que ela se apropriou. (FOUCAULT, 2011, p.66)

É assim que, no século XVIII, à cabeceira da cama, a figura do médico passa a contestar as manifestações singulares da doença. Passa a duvidar das palavras e sensações do paciente que, decerto, era incapaz de interpretá-las ou talvez, por intenção qualquer, pudesse até mascará-las. O campo empírico da arte médica é então dominado por um racionalismo teórico que, posteriormente, viria integrar de maneira bem peculiar a nova ciência positivista a surgir.

Seja como for, o fato é que

da tríade hipocrática, a doença se sobressaiu. Com isso, foi ela quem passou a falar; o médico queria apenas ver, escutar, saber sobre a doença. Ela, que havia sido considerada, sob a medicina antiga, uma abstração intelectual do homem, ganhou corpo, transformou-se e se destacou. O médico passou a crer que a verdade sobre o paciente era a doença que ele via e tocava, ou nomeava. (FERREIRA, 2008, p.31)

Decerto, é possível que neste momento seja formulada uma contestação: ora, mas o trato com os pacientes é humanizado hoje, não? Você fala de House, mas por que não citar uma outra produção audiovisual, desta vez baseada em fatos reais, Patch Adams por exemplo?

Aqui, cabe então um lembrete. A humanização e o humor de Adams seguem mais ligados à terapêutica do que a clínica em si. Apesar de alguns autores, Canguilhem (2009) por exemplo, apontarem que ambas são inseparáveis, elas não são a mesma coisa. Enquanto a terapêutica é o próprio cuidado e tratamento, processos que estiveram e estão intrinsicamente relacionados com o foco no paciente, a clínica como já dito refere-se aos domínios da semiologia, etiologia, diagnóstica e prognóstica. A clínica concede a direção do tratamento, mas o ato de tratar pertence à terapêutica.

Assim, o que permite que uma série como House seja possível e crível no século XXI é que diferentemente das condutas terapêuticas que variaram com os anos, com a filosofia e os sistemas de conhecimento associados: psicologia, sociologia, a farmacologia, as tecnologias médicas entre outros, a clínica manteve-se inerte em seu princípio.

Naquilo que tange os posicionamentos do paciente e da doença, encontramos a clínica elevada ao zênite na própria realidade dos manuais diagnósticos e também, nas novas formas de coleta de dados, nas práticas diagnósticas, prognósticas e de direção no tratamento, baseadas

por exemplo, no uso de programas de inteligência artificial, como o Watson (software ironicamente nomeado tal como o médico colega de Holmes) da IBM25.

Esta “acidental” evidência de invariabilidade na posição da doença e do doente na clínica contemporânea pode nos conduzir a crer no segundo ponto da afirmação de Zimmerman. Vejamos como...

No documento Universidade Católica do Salvador (páginas 55-58)