• Nenhum resultado encontrado

As mulheres e a denúncia

No documento Language and Law Linguagem e Direito (páginas 29-33)

As mulheres em situação de violência praticada por seus parceiros buscam geralmente ajuda e orientação em delegacias de polícia, para iniciar o seu acesso à Justiça. Em se tratando de municípios que contam com os serviços de uma Delegacia de Proteção à Mu-lher, esse espaço é, possivelmente, o primeiro e o mais procurado por aquelas que querem denunciar a violência sofrida e recorrer à Lei Maria da Penha, talvez pela concepção de que, por ter sido criado especi�camente para esse�m, pode oportunizar atendimento mais humanizado/adequado.

No período anterior à vigência da Lei Maria da Penha, a violência doméstica e fa-miliar contra as mulheres, na esfera judicial, era tratada pela Lei 9.099, de 1995. Essa lei estabeleceu os crimes de menor potencial ofensivo, cuja pena máxima não seria superior a dois anos. De acordo com Myllena Matos e Iáris Cortes (2011), a análise da aplicação

da Lei 9.099/95, em caso de violência contra a mulher, realizada por grupos feministas e instituições que atuavam no atendimento a vítimas, constatou que a impunidade fa-vorecia os agressores. Dos casos de crimes de menor potencial ofensivo que chegavam aos juizados especiais criminais, 70% eram movidos por mulheres em situação de vi-olência doméstica; porém, desses, 90% resultavam em arquivamento em audiências de conciliação, em que as vítimas não encontravam uma resposta do poder público para as suas demandas, uma vez que, quando havia punição, os agressores eram, geralmente, condenados a entregar cestas básicas a instituições�lantrópicas.

Na esfera policial, minha experiência pro�ssional em Delegacia da Mulher, permite-me informar que entre os delitos mais comupermite-mente denunciados, desde o período anterior à Lei 11.340/2006, estão os crimes de ameaça e lesão corporal, apontados pelas estatísticas policiais como os crimes mais frequentemente cometidos no meio doméstico contra as mulheres. Antes da Lei Maria da Penha, a violência conjugal, segundo Matos e Cortes (2011: 41), era “menosprezada e tratada como uma simples ‘briguinha de casal, em que ninguém deveria pôr a colher’” e as penas atribuídas a esse tipo de delito geralmente eram a doação de cestas básicas ou trabalho comunitário, o que, de certa forma, favorecia os agressores, pela sensação de impunidade. Assim, frente ao desa�o de propor ao Brasil uma lei que tratasse a questão da violência contra as mulheres como um tema legítimo de violação aos direitos humanos é que a Lei Maria da Penha surgiu.

A violência doméstica contra as mulheres pode ser con�gurada como agressões físi-cas, abusos psicológicos (menosprezo, intimidações e humilhações constantes), coerção sexual, comportamentos de controle, além de humilhações, xingamentos, etc. É um tipo de violência que ocorre, predominantemente, no interior dos lares, no âmbito doméstico e familiar, portanto. Segundo Cavalcante (2009), esse tipo de violência desencadeia-se em todas as classes sociais e categorias pro�ssionais e produz comportamentos agres-sivos contra os membros mais frágeis do grupo familiar. Em razão do caráter social e cultural vinculado à violência contra as mulheres, a denúncia e o enfrentamento a esse tipo de violência tornam-se atividades complexas que requerem bem mais do que apenas a repressão policial.

O artigo 5 da Lei 11.340/2006 conceitua violência doméstica e familiar como “qual-quer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”, que pode ocorrer no âmbito da uni-dade doméstica, no âmbito familiar ou em qualquer relação íntima de afeto (Brasil, 2006). Estatísticas policiais apontam os maridos, companheiros, namorados, pais, irmãos,�lhos e todos os tipos de ‘ex’ relacionamentos como os principais autores desse tipo de crime. Três entrevistas com mulheres que denunciaram as situações de violências que vi-veram com seus parceiros íntimos serão aqui analisadas. Essas vítimas tinham idade entre 32 e 40 anos, eram casadas e tinham�lhos com os homens a quem acusaram de agressão. Rosatinha um �lho, Margarida tinha três eDália tinha dois�lhos; todos os �lhos eram crianças ou adolescentes. Os crimes denunciados por essas mulheres eram de ameaça e as três alegaram ter sido a primeira vez que procuravam a polícia em função da violência sofrida. Rosaera agente comunitária de saúde,Margaridaera professora e

Dáliaera recepcionista. Quanto à escolaridade,RosaeDáliatinham ensino médio

com-pleto eMargarida, a professora, era pós-graduada. Na ocasião das entrevistas, Rosajá estava convivendo novamente com o marido, de quem tinha se separado por ocasião da denúncia à polícia e as outras duas continuavam separadas.

Quando perguntadas sobre o que as tinha levado a denunciar seus esposos as res-postas apresentadas foram:

Ele sofria de alcoolismo, nós chegamos ao ponto de que eu queria separar dele e ele não aceitava a separação e então começaram as ameaças, ameaça de morte, ameaça de acidente, ameaça de agressão, umas coisas bem agressivas as-sim, verbalmente; não chegou a agressão física porque eu�z a ocorrência [...] [Rosa].

Eu vivi com meu ex-marido e ele sempre ameaçando, mas eu não tinha medo, eu ainda tinha um controle da situação. Até que chegou a um ponto que eu�quei com muito medo dele, porque daí a situação saiu fora do controle e ele estava ameaçando de morte. Naquela semana ele me olhava atravessado e disse assim “esta semana eu te mato”. Ele falava sério e com um olhar atravessado e dizia “essa semana eu vou te matar, dessa semana tu não passa, essa semana eu te mato” (...). O comportamento dele estava mais agressivo, parecia que não era ele,em função de que ele é um usuário de drogas, eu�quei realmente com medo, porque assim, vai que de madrugada ele cismasse em querer me matar, ele me matava sorrindo e pronto entendeu? Aí eu comecei a�car com medo, eu comecei a registrar as queixas. Assim ao todo foram umas sete queixas, do medo que eu tive. Isso começou num domingo à noite, na quinta-feira à noite, eu cheguei em casa do trabalho, meu�lho não estava em casa, daí ele disse assim: “tu não vai pegar o menino porque hoje eu vou te matar” [Margarida].

Eu tive um casamento de con�itos, conturbado a vida inteira desde o primeiro ano. Não conseguia me desvencilhar dele devido a ameaças, eu tenho pais idosos que pensam muito diferente, eles também não aceitam uma�lha separada. Até hoje eu sofro com isso porque eles são contra mim e a favor dele, então eu fui le-vando, a gente vai lele-vando, vai empurrando com a barriga, veio o primeiro�lho, a gente vai levando com a esperança que vai melhorar, eu não tenho alternativa a não ser continuar o casamento. A gente brigava muito, mas ele nunca foi de me agredir, porque ele sempre teve muito medo da polícia. Ele era maníaco por sexo, um verdadeiro tarado e eu me submetia a que ter relação com ele a hora que ele quisesse, a minha vida inteira foi assim, os doze anos. Até que chegou um dia em que eu não suportava mais, há muitos anos eu já não suportava mais ele, a gente não se beijava, a gente tinha relação mais não se beijava na boca. Até que chegou um dia que eu pensei: “eu não consigo mais, foge, meu corpo não aguenta mais” e ele me agarrou, me pegou na cama, me rasgou a minha roupa e eu comecei a gritar, foi um berro só, um “Ai” e os meus�lhos acordaram e ele me largou. “Por que gritar, é o teu marido que quer te agarrar”. Ele era uma pessoa doente, ele é... Doente mental eu acho, porque ele fala certas coisas, ele faz e eu não consigo compreender até hoje, em que mundo ele vive [Dália].

Logo de início percebe-se a aparente necessidade dessas mulheres de alegarem uma justi-�cativa para a atitude dos maridos que motivou a denúncia delas à polícia. O alcoolismo, a drogadição e uma possível doença são mencionados por elas, sugerindo que a atitude delas de denunciá-los se deu em função de que havia algo exterior à natureza deles que motivou a violência praticada. As mulheres utilizaram termos para se referirem aos com-panheiros, que poderiam explicar a motivação para o emprego das ameaças. Ou seja, não

é que os companheiros tenham feito ameaças contra elas porque eram pessoas violen-tas, bruviolen-tas, agressivas ou machistas como é comum de se ouvir em discursos inseridos em contextos de violência conjugal; é que esses companheiros eram, então, ‘alcoolista’, ‘usuário de drogas’ e ‘doente’ – esse último termo fazendo uma referência à doença mental, à loucura, em termos genéricos. Os termos empregados pelas mulheres refor-mulam o cenário de descrição dos seus companheiros, pois os torna vulneráveis também e, de certa forma, justi�ca suas ações para com elas, talvez na tentativa de impedir que eles fossem interpretados como criminosos de alta periculosidade. Parece ecoar aí um sentimento de culpa que é gerado nas mulheres a partir da realização da denúncia. Ao amenizarem a situação dos companheiros atribuindo a eles situações que os tornavam violentos (a bebida, as drogas e uma doença), as mulheres se redimem de parte desse sentimento. Considerando que essas mulheres tinham sido casadas com esses homens e com eles tiveram�lhos, esse cenário interfere na instauração do sujeito discursivo, que �ca vinculado ao contexto sócio-histórico, uma vez que a constituição do sentido de um enunciado depende das condições históricas e sociais em que o sujeito se encontra e do lugar social de onde ele enuncia.

As condições de produção do discurso também estão relacionadas aos ‘esquecimen-tos’, sugeridos por Pêcheux e Orlandi (2014), uma vez que por eles o sujeito tem a ilusão de ser dono do seu dizer (esquecimento 1) e tem também a ilusão da onipotência do sentido do seu dizer (esquecimento 2). Dessa forma, o sujeito está inconsciente às con-dições de produção do seu discurso e o que diz é determinado pelo lugar que ocupa no interior da formação ideológica à qual está submetido. As manifestações das três mulhe-res, de tentar amenizar as atitudes dos ex-companheiros, são justi�cadas então, pois as condições de produção de um discurso incluem os sujeitos, as circunstâncias da enun-ciação e o contexto sócio-histórico-ideológico. Nas das relações conjugais, o contexto sócio-histórico-ideológico é originalmente patriarcal, em que às mulheres cabe o papel de cuidar e proteger a família, submetendo-se às decisões do marido. Possivelmente a atitude de amenizar as atitudes deles seja decorrente disso, resgatando essa memória discursiva do papel das mulheres na relação familiar.

Sobre o aspecto de prejudicar o marido com a denúncia, podemos voltar à manifes-tação deMargarida, quando ela se refere à atitude dos pais: “eu tenho pais idosos que pensam muito diferente, eles também não aceitam uma�lha separada. Até hoje eu sofro com isso porque eles são contra mim e a favor dele”. Supõe-se que os pais não sejam a favor da violência praticada por ele, o fato de serem “contra ela”, possivelmente se limite à atitude dela de tê-lo denunciado. Talvez eles entendessem que haveria outra maneira de resolver os con�itos, sem tê-lo “prejudicado”. Esse termo aqui empregado pode ser entendido como “manchar o nome dele na esfera judicial”, o que ainda é muito relevante para muitos homens, especialmente para aqueles que não têm envolvimento com outros tipos de criminalidade.

Re�etindo por esse viés, já estamos tratando do contexto amplo das condições de produção do discurso, conforme de�nido por Orlandi (2010), como aquele que se refere ao contexto sócio-histórico e ideológico. Segundo Orlandi, no contexto amplo, os efeitos de sentido que se consideram são aqueles que derivam da própria sociedade e estão rela-cionados à história e aos acontecimentos, que por sua vez, remetem, ainda, à questão da memória discursiva (2010). Assim, outro sentido que se depreende dessa atitude de ame-nizar a situação para eles é a recuperação da ideia de maternidade que, segundo Pinto

(2014), é uma das âncoras conceituais para a de�nição do que seja ser mulher. Segundo a autora, as mulheres são identi�cadas como mães não só nas relações com os�lhos, mas também com seus companheiros, uma vez que mantêm cuidados e preocupações gerais com todos ao seu redor. Essa postura de cuidar se con�gura como um mito sobre um tipo de mãe, discursivamente produzido, para “manter a maternidade como lugar básico do sujeito ‘mulher”’ (Pinto, 2014: 35). A posição da mãe como um ser protetor que cuida e se preocupa, vai além dos�lhos e alcança o marido, mesmo que ele seja quem ela de-nunciou por ter lhe feito algum mal. Apesar da crítica que os Estudos Feministas fazem a esse tipo de de�nição de mulher, que a vincula exclusivamente a uma postura de mãe, ela continua ecoando nos comportamentos e nos discursos de mulheres.

Ainda no viés da proteção, ao amenizar a violência praticada, sob a alegação de que os companheiros tinham algum problema, outro sentido que também se produz colabora para a desmisti�cação da concepção que atravessou grande parte dos Estudos Feminis-tas de “homem dominante versus mulher dominada – como se essa fosse uma fórmula única,�xa e permanente” (Louro, 2011: 41). Ao apontarem os homens a quem denuncia-ram protagonizando papéis de doentes, de dependentes, de pessoas que também sofrem, elas se deslocam da atuação de vítimas e inserem os companheiros. Isso promove o silenciamento da violência doméstica em que todos estão envolvidos e gera efeito de consentimento.

Segundo Narvaz e Koller (2006), os processos que contribuem para o silenciamento, submissão, ou ainda, para o assujeitamento das vítimas à violência doméstica, são com-plexos; dentre eles, a vivência de violência na família de origem, a falta de modelos de família protetiva, o desejo de ter uma família e de mantê-la unida, a dependência emocio-nal e econômica do parceiro agressor, o medo do companheiro que é agressivo e violento e às vezes faz uso de álcool e outras drogas, a prescrição de obediência e submissão en-gendrada pelo poder patriarcal e, ainda, a falta de apoio familiar e/ou social.

No documento Language and Law Linguagem e Direito (páginas 29-33)