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Considerações � nais

No documento Language and Law Linguagem e Direito (páginas 40-44)

O enfrentamento de situações de violência doméstica em que mulheres se encontram na condição de vítimas, no cenário da justiça criminal, desde 2006, tem sido feito,

basica-mente, pela aplicação da Lei 11.340/2006, nacionalmente conhecida como Lei Maria da Penha. A partir de denúncias, geralmente efetuadas pelas próprias vítimas, investigações policiais são realizadas e encaminhadas ao sistema judiciário e a violência ocorrida passa a ser apresentada, linguisticamente, possibilitando que efeitos de sentido que circulam no contexto geral da violência doméstica possam ser discutidos.

As discussões aqui apresentadas sobre as entrevistas realizadas com Dália, Marga-rida e Rosa e a menção aos relatórios dos inquéritos policiais e às sentenças judiciais decorrentes das denúncias efetivadas por elas possibilitaram a re�exão sobre os efeitos de sentido que emergem dos discursos presentes nesses textos. Na análise discursiva rea-lizada, não se constatou o enfrentamento às situações de violência a que as mulheres são submetidas, no meio doméstico. De fato, os sentidos que se produzem tanto rea�rmam quanto reforçam as condições hierárquicas estabelecidas entre os gêneros masculino e feminino, seja no que concerne à situação da violência em si, como da tentativa de re-pressão, que se dá, pelo trabalho policial e judiciário, que mais silenciam a ocorrência da violência e das vítimas do que anunciam o combate e�caz à violência. A aplicação da Lei Maria da Penha, então, não parece se dar como uma possibilidade de solução dos con�itos conjugais, mas como mais um instrumento estatal que desquali�ca a violên-cia denunviolên-ciada, contribuindo a sua invisibilidade soviolên-cial e a manutenção do cenário da violência doméstica.

Os discursos apresentados nas entrevistas com as mulheres revelaram certo senti-mento de culpa gerado nelas a partir da realização da denúncia, amenizando as situações vividas com os companheiros e tendendo à proteção dos homens que, consequentemente, promove o silenciamento da violência doméstica em que eles e elas estão envolvidos. Essa parece ser uma estratégia para ocultar um esquecimento ideológico por parte des-sas mulheres, que trazem na sua fala a fala de outras vítimas do mesmo tipo de violência. Enquanto os discursos que se produzem no contexto do enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres estiverem produzindo sentidos que silenciam essa ocor-rência, não se poderá falar em e�cácia das medidas estatais formais para esse�m, uma vez que não se pode enfrentar o que discursivamente não existe.

Notas

1Essas mulheres foram entrevistadas pela autora, por ocasião da pesquisa de Doutorado, concluída em 2015, com o devido encaminhamento ao Comitê de Ética da Plataforma Brasil, sob n 32422414.0.0000.5369, com aprovação em 30/06/2014. Para garantir o anonimato das mulheres, neste trabalho foram adotados os pseudônimosDália,RosaeMargaridapara fazer referência a essas entrevistas, cuja autorização para publicação e divulgação dos resultados foi garantida à pesquisadora por meio de termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelas participantes.

2O termo indiciamento é empregado no meio policial, para designar o ato de atribuir formalmente a autoria de um crime a um suspeito. O indiciamento não signi�ca culpa ou condenação, mas que os indícios colhidos durante a investigação permitem atribuir a autoria do crime a alguém.

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Lúcia Freitas & Veralúcia Pinheiro Universidade Estadual de Goiás

Abstract. In this article, we discuss the problem of gender violence, as it is narra-ted and administered by the second highest Court of Justice in Brazil, the Superior Court of Justice (STJ). Based on a corpus of judgments covering nearly a decade that fall under the legislation of the Maria da Penha Law, we analyse narratives in two speci�c dimensions: 1) the narrative of the procedural trajectory of a par-ticular case of violence, which can only be inferred from the complete reading of the judgment; 2) the mini narratives of the case that generated the processes and which are embedded within this broader narrative. From a discursive analysis that combines narrative, gender studies and feminist theories of law, we discuss the problematic relationship that exists between the premises based on the cate-gory “gender” that is that foundation of the law, and the norms of “gender” that guide the practices of the Brazilian judiciary.

Keywords:Narrative, violence, gender, STJ, Maria da Penha Law.

Resumo. Neste artigo, discutimos o problema da violência de gênero, na forma como ela é narrada e administrada pela segunda mais alta Corte de Justiça de nosso país, o Superior Tribunal de Justiça (STJ). A partir de um corpus de acórdãos que cobrem quase uma década de decisões sobre a Lei Maria da Penha, analisamos narrativas em duas dimensões especí�cas: 1) a que relata a trajetória processual de um determinado caso de violência e que só pode ser depreendida pela leitura completa do acórdão; 2) as mini narrativas do caso de violência que gerou os pro-cessos e que são encaixadas dentro dessa narrativa mais ampla. A partir de uma análise discursiva que combina estudos de narrativa, estudos de gênero e teorias feministas de direito, discutimos a relação con�ituosa que existe entre as premis-sas embasadas na categoria “gênero” que ordenaram a lei, e as normas de “gênero” que orientam o judiciário brasileiro.

Introdução

Neste artigo, iremos discutir a relação linguagem, gênero e direito a partir de análises de narrativas que compõem a estrutura textual de acórdãos da segunda mais alta Corte de Justiça do Brasil, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre Lei Maria da Penha. A pesquisa1que deu origem a este trabalho objetivou analisar acórdãos do STJ abrangidos pela Lei Maria da Penha durante a sua primeira década de aplicação. O estudo foi rea-lizado em parceria com o Observatório da Justiça Brasileira (OJB)2 e empreendeu uma abordagem interdisciplinar sobre a tríade violência de gênero, linguagem e direito.

Acórdãos são decisões sobre outras decisões já tomadas em instâncias anteriores. A escolha dos acórdãos do STJ, especi�camente, foi feita em virtude de essa Corte ser considerada “uni�cadora de jurisprudência” e última instância recursal para a maioria dos casos enquadrados na Lei Maria da Penha. Tal característica nos possibilita, assim, ter uma visão panorâmica sobre a forma como a justiça brasileira tem tratado a violência de gênero, uma vez que a esse âmbito chegam casos vindos de todo o país.

Ao longo do projeto, acessamos 288 casos julgados, inteiro teor, disponíveis na pá-gina eletrônica de jurisprudência do STJ. Esse número foi obtido a partir de uma busca feita pelo cruzamento de três expressões chave: Lei 11340/06; Lei Maria da Penha e Pro-cesso Penal. Os textos alcançados cobrem um período temporal desde 2008, ano em que chegaram os primeiros casos, até 2014, ano em que se encerrou nossa coleta.

Esses documentos eram recursos, a maioria habeas corpus, em processos que foram enquadrados na Lei Maria da Penha, a legislação brasileira que trata especi�camente de violência contra a mulher em suas relações doméstica e familiar. Como a lei Maria da Penha, fruto de uma longa luta de movimentos de mulheres e feministas, de�niu textual-mente no seu artigo n.5 a violência contra a mulher como uma violência de gênero3, neste artigo recuperamos, em narrativas dos acórdãos, a forma como a categoria “gênero” é manejada discursivamente nas decisões.

Para este artigo, tomamos do nosso corpus quatro decisões para ilustrar, em linhas gerais, nossas análises, que combinam estudos de narrativa (Brockmier e Harre, 1997; Bastos, 2004; Bastos e Biar, 2015; Park e Bucholtz, 2009), estudos de gênero com perspec-tiva feminista (Butler, 2003; Lauretis, 1994; Sokolo�e Dupont, 2005; Scott, 1986; Sa�oti, 1999) e teorias feministas de direito (de Campos, 2011; Veras e Cunha, 2010; Facio, 1999; Santos e Izumino, 2005; Pasinato, 2007). Desenvolvemos nossa discussão ao longo das seções seguintes.

Decisões sobre a lei Maria da Penha: narrativas episódicas e processuais

No documento Language and Law Linguagem e Direito (páginas 40-44)