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As oficinas de hip hop34 eram as que mais atraíam adolescentes para o albergue. Tinham alguns adolescentes que só entravam no albergue nos dias de hip hop, pois essas oficinas "pareciam com festa”, diziam. O hip hop, foi uma

manifestação artística criada por jovens dos guetos negros americanos, que reunia música (rap), dança (break e smurf dance) servindo para criticar a sociedade segregadora norte-americana e o preconceito contra o negro. Essa é uma definição em linhas gerais do que acabou gerando um movimento social que foi importado por diversos países. No Brasil, tomou a forma de Movimento Hip Hop Organizado e se define como conscientizador e politizador de jovens35 Ganhou voz nas periferias dos grandes centros urbanos através de grupos formados por jovens pobres, e na sua maioria negros. São Paulo foi o berço do movimento no

33 A irmã Alice faleceu antes do final da minha pesquisa. O dia de sua morte foi de muita comoção no

albergue. Muitos adolescentes foram ao seu velório e sepultamento. Um ônibus da FEBEM-CE foi destinado ao transporte dos adolescentes. Não compareci aos atos fúnebres, e só retornei ao albergue um dia após. Os adolescentes ainda choravam quando alguém lembrava da freira. Mas as atividades religiosas continuam sendo realizadas, e agora duas vezes por semana: um dia um grupo da Igreja Católica e outro com um pastor da Igreja Batista.

34 Usarei os verbos no tempo passado devido não haver mais a oficina de hip hop.

35 Ver: DAMASCENO, Francisco José G. O movimento hip hop organizado do Ceará/MH

2O-CE (1990- 1995). Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC, 1996. Ver também: DIÓGENES, Glória. Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e movimento hip hop. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria

Brasil e é onde mais sua atuação é mais devido à repercussão causada nas favelas da cidade.

A oficina de hip hop era coordenada pelo Movimento Hip Hop Organizado (MH2O) Cultura de Rua36, que trabalhava com os adolescentes incentivando-os a

saírem do mundo das drogas e da rua. As oficinas tinham como intuito fazer com que os meninos ouvissem raps e discutissem a partir deles suas condições de vida. Os raps mais utilizados mais utilizados para essa reflexão eram os do Racionais MC's pela crítica à violência e à criminalidade entre jovens habitantes de favelas nas periferias das cidades brasileiras nas letras de suas músicas. E fazer com que os adolescentes pudessem criar seus próprios raps, utilizando sua linguagem e suas próprias experiências de vida como fonte de inspiração e crítica à sociedade que os marginaliza.

Havia também um interesse do Movimento em ensinar a dança do hip hop (break e smurf dance) aos adolescentes para que estes usassem também o corpo com um estilo de dança criado para protestar.

A identificação dos adolescentes com o Movimento, se deu devido a alguns fatores: a linguagem, que é a mesma utilizada na rua, ou seja gírias, e a maneira de falar despojada e lenta. Este aspecto facilita a interpretação das músicas.

Os coordenadores do Movimento partem de uma realidade social próxima dos adolescentes do albergue. A maioria é morador de favela ou de bairros periféricos de Fortaleza. Há um que já foi "menino de rua", já esteve em abrigo de privação total de liberdade na FEBEM-Ce, e hoje é um dos líderes do Movimento. Todos no Movimento se chama de "mano", o que significa irmão, dando assim um reforço substancial à relação dos envolvidos, como me afirmou Zezé, líder do movimento:

Nós aqui tudo somos manos. É a sociedade que reprime, que nos faz assim, mano dessa vida. Vida de rua, de favela, de periferia. Nós tamo aqui na FEBEM-CE, pra mostrar que eles podem sair daqui, e serem cidadãos de bem. Sair da marginalidade é a meta. E nós vamo conseguir, pra contrariar as estatísticas, nós vamo ensinar a esses meninos aí a lutar.

Todas as noites, mesmo sem terem a oficina de hip hop, os adolescentes ouviam raps e aprendiam as suas letras. Nessas oficinas também houve destaques: dois adolescentes que gravaram seus raps numa fita "demo" (fita cassete para demonstração das músicas), coordenada pelo Movimento, constituindo o grupo de rap "Formação de Rua". Além disso, se tornaram referências na FEBEM-CE como meninos "recuperados" através do hip hop.

Foi através do hip hop que eu abri os olhos, e aprendi a não me conformar com esse pouco que querem dá pra nós. Quem tem a FEBEM-Ce nas costa, como eu, num pode fazer muita coisa não, mas também num pode ficar calada. Eu vou completar dezoito e a FEBEM-CE num vai me dá nada, se eu não for por mim, ninguém vai sê.

(Adolescente do sexo feminino, 17 anos) A pedagoga do albergue considerava o Movimento hip hop como um ponto

de fuga do normal, devido à maneira anti-convencional utilizada para tratar do

problema das drogas e da violência nas ruas com os adolescentes do albergue. A sociedade precisa civilizar, ainda nos termos de Elias (1994), os seus indivíduos. E esse processo de civilização se traduz num movimento segregador daquilo que é determinado como repugnante: o repugnante é removido para o

fundo da vida social (Elias, op. cit., p: 128).

A falta de banho, as feridas, a linguagem, a violência são as causas do repugnáveis. E o movimento hip hop, faz do repugnável o seu mote de trabalho, como afírma o líder do hip hop,

A gente não é a favor da violência, mas a gente pega essa violência e canaliza para criticar a sociedade que é injusta e preconceituosa. A gente mostra pros menino de rua que a sujeira não é feia, fede. A gente mostra pra ele que a sociedade quer que ele fique sujo, de todas as formas, pra ter em quem bater, ter quem massacrar, tá ligado!

As oficinas de hip hop acabaram, e um projeto de inclusão do mesmo no local enquanto atividade permanente foi elaborado, implantado, mas aos poucos foi extinto, por falta de verba. O albergue não conseguiu um órgão pagador para o projeto, o que tornou a situação difícil, por que haviam integrantes do Movimento que moravam em bairros distantes e pediam o mínimo que era o dinheiro da passagem, mas o albergue não pode manter o projeto. Mesmo com toda a dificuldade, voluntariamente o líder do Movimento (o Zezé) continuou indo ao albergue conversar com os adolescentes, mas acabou por assumir outros compromissos, os quais o afastaram do local. E o pessoal do hip hop se afastou, mas em todas as festinhas do albergue eles eram convidados a participar animando as festas com os seus raps e danças.