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1.2 O Zoneamento Urbano: pressupostos e a relação entre teoria e prática

1.2.1 As origens do zoneamento urbano e seu impacto sócio-territorial

Originado na Alemanha, o zoneamento urbano se disseminou como instrumento e prática urbanística na Europa desde final do século XIX. Entretanto, foi através da expansão dos princípios do urbanismo funcionalista (na primeira metade do século XX) que o zoneamento se generalizou e adquiriu notoriedade, passando a ser incorporado como instrumento elementar das práticas urbanísticas. Somekh (1997), na análise que empreendeu sobre o processo de transformação urbana na São Paulo do início do século XX, resgata a influência do zoneamento alemão e, sobretudo, americano na regulação urbanística paulistana, e que correspondeu à busca de um discurso pautado na eficiência, e no atendimento de interesses de classe, voltado

mais à proteção da mercadoria terra. “O urbanismo moderno tem como objeto central a cidade, o plano como instrumento principal e a questão social como discurso”. (Ibid.,p.38)

A incerteza econômica, lembrava Prestes Maia, também poderia ser combatida com o zoneamento, organizando a cidade globalmente, especializando bairros e estabilizando os valores imobiliários:“o cidadão que empata boa porção de sua fortuna na construção de seu lar ou mesmo de um prédio para renda, nunca está seguro do dia seguinte: Quando menos espera, um arranha-céu erigido ao lado do seu palacete virá esmagá-lo. Uma fábrica, com seu ruído e suas chaminés, afugentará os inquilinos dos seus apartamentos. Um armazém, um açougue, uma garagem, um cortiço depreciarão os seus prédios.(Prestes Maia,1936,p.2) (Ibid., 1997:60)

Assim, a zonificação adquire a característica não somente de simples instrumento, mas de um autêntico modelo de reorganização da nova cidade, sua hierarquização e suas relações. Os parâmetros e os elementos que regulam o zoneamento são as atividades, essencialmente econômicas e produtivas, e a residência como seu corolário. (Mancuso, 1980, p.54-81)

O zoneamento alemão, na prática, já continha parâmetros que autorizava considerá-lo no final do século XIX como um instrumento de segregação de classes sociais no espaço. Desse modo o zoneamento servia como solução para as tensões sociais, através da subdivisão e distribuição das áreas residenciais. Correspondia, portanto, a um instrumento que ofereceria ordem, racionalidade e hierarquização das funções urbanas, objetivando uma cidade mais organizada para o desenvolvimento capitalista.

O zoneamento nos Estados Unidos teve, em oposição ao da Alemanha, um caráter nitidamente econômico. Enquanto sua introdução na Alemanha esteve sempre ligada ao controle dos conflitos sociais, basicamente a um discurso político-social voltado à questão da melhoria da habitação da classe operária, do controle das altas densidades nas áreas urbanas e do alto preço dos terrenos, visto ser as questões centrais que sempre nortearam as políticas de regulação urbana nesse país, nos Estados Unidos este instrumento serviu aos propósitos do mercado. Estava presente a questão da rentabilidade dos terrenos e imóveis, e como o zoneamento poderia beneficiar determinados segmentos sociais (empresários, especuladores imobiliários, proprietários de imóveis e terrenos), “o zoneamento americano é destacado como medida sistemática de urbanismo que pretende satisfazer à higiene e comodidade da população, como também organizar a cidade, relacionar bairros de maneira eficiente, sob o ponto de vista do trafégo e da especulação.”(FELDMAN, 1996, p.12).No Brasil, de acordo com Villaça (1999), os primeiros princípios reconhecidos como de zoneamento datam de final do século XIX, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas surgem “sem qualquer elaboração teórica,

sem a participação de intelectuais estudiosos da cidade e sem a influência do pensamento estrangeiro. (...) O que se inicia no Brasil corresponde (e continuará correspondendo) a interesses e soluções específicas das elites brasileiras”. (p.178).7 O mesmo autor destaca a

influência do zoneamento no planejamento urbano brasileiro e seus pressupostos.

A história do zoneamento é totalmente distinta da história do planejamento stricto

sensu, e até hoje predomina o zoneamento separado do plano diretor (embora no

discurso, se afirme que o zoneamento é parte integrante de um plano diretor) Esta é a razão pela qual o zoneamento é a prática de planejamento mais difundida no Brasil. Nos seus quase cem anos de existência entre nós, quase que exclusivamente serviu para atender a interesses claros e específicos, particularmente os dos bairros da população de mais alta renda. (VILLAÇA, 1999, p. 178, grifo do autor)

Assim, no Brasil, o zoneamento teve desde sua origem um forte viés elitizante e protecionista dos interesses de determinados segmentos de classe. Na análise feita por Cintra (1988), o zoneamento tem servido aos propósitos de uma racionalização da cidade, mas, sobretudo, com caráter discriminatório. Nesse mesmo entendimento, Rolnik (1999) chama atenção para o uso da legislação e os jogos de interesse.

Mais do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento da cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder. Na verdade, a legalidade urbana organiza e classifica territórios urbanos, conferindo significados e legitimidade para o modo de vida e micropolítica dos grupos mais envolvidos na formulação dos instrumentos legais. De outro modo, a legislação discrimina agenciamentos espaciais e sociais distintos do padrão sancionado pela lei. Assim, a legislação atua como um forte paradigma político-cultural mesmo quando fracassa na determinação da configuração final da cidade.(Ibid., p.102)

Estudos empíricos da realidade brasileira apontam que os instrumentos urbanísticos atuam como legitimadores do processo de segregação sócio-espacial, como é o caso da pesquisa desenvolvida por Santos (2001) a respeito do processo de formação e consolidação dos espaços de pobreza em Natal-RN. Cabe também lembrar o trabalho de Siebert (2001) a respeito da atuação do poder público em Blumenau-SC na determinação da regulação urbanística e em padrões de exclusão sócio-espacial, de Richter e Costa (2001), que analisam transformações na estrutura urbana de São José dos Campos-SP com base nas alterações da

7 Queremos chamar atenção de que, para o estudo de caso realizado por Feldman (1996) que analisa o urbanismo

paulistano através do zoneamento, a experiência paulistana da adoção do zoneamento recebeu forte influência dos preceitos do zoneamento americano. No nosso entendimento a prática do zoneamento no Brasil também recebeu influência externa, e precisa ser relativizada de acordo com as escalas em que está sendo feito a análise.

legislação de uso do solo, e de Feldman (1996), que analisa o urbanismo paulistano através da análise do zoneamento, entendendo como esse instrumento assumiu o papel do Plano e o seu papel na política de desenvolvimento urbano local. Todos esses trabalhos reúnem evidências do uso do zoneamento como protetor das áreas mais valorizadas para o beneficiamento do mercado imobiliário.

A atual tendência no campo do urbanismo e do planejamento tem sido a ênfase nas práticas urbanas sob os preceitos da gestão das empresas, assumindo uma nova roupagem sob o nome de planejamento estratégico ou empresarial. Vainer (2000), Arantes (2000 e 1998), Maricato (2000), Sanchéz (2001), Sanchéz e Moura (1999), Oliveira (1999), Petisco e Fernandes (2001), entre outros, fazem uma ampla reflexão desse atual contexto no Brasil.

A história comprovada pelas práticas sociais tem demonstrado os pressupostos implícitos nos instrumentos de regulação urbana, em particular o de zoneamento, como disseminadores e legitimadores de práticas excludentes no processo de reprodução do espaço urbano. Devemos entendê-los, portanto, em sua articulação com as ideologias urbanísticas desenvolvidas e não isoladamente como simples instrumentos técnicos do planejamento, mas por trás das lógicas que possibilitam a visibilidade dos interesses em jogo. Essa articulação é necessária para a apreensão das práticas e ações na cidade, do urbanismo como ciência que pensa e faz a cidade e o planejamento como método de ação.

A prática comum tem sido a aplicação de investimentos urbanos (em infra-estrutura e equipamentos urbanos) em que o Estado (representado nas suas diversas esferas de atuação) arca com todo o investimento, mas quem acaba se apropriando dessas vantagens é, na maior parte dos casos, o setor privado, o que foi denominado por Milton Santos de socialização capitalista. Como a cidade é uma produção coletiva, social, mas quem se beneficia dessa produção socializada são na maior parte das vezes, determinados segmentos e parcelas de classe e não a coletividade, os avanços na forma de gestão e planejamento urbano deveriam objetivar, portanto, a inversão dessa lógica. Foi o que se procurou fazer no processo de Reforma Urbana que se efetivou no Brasil.