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3. RÉQUIENS DO DISCURSO – PRIMEIROS MOVIMENTOS

3.2. As outras Margens da Morte

Cena do filme Gritos e Sussurros, de Ingmar Bergman

A imagem fotografa o momento em que a morte, investida na personagem Agnes reclamando do frio, suplica pelo corpo quente da personagem Anna. É por esta súplica que Agnes se debruça sobre o colo de Anna e ambas se aceitam e se emolduram numa mesma composição. Nessa rápida cena, não temos apenas os tão comuns retratos de uma suposta morte confinada no nada, no momento concluso. Há uma plasticidade dos gestos e dos rostos, uma disposição singular dos corpos nesse breve enquadramento. O fundo negro sobre as sombreadas silhuetas acentua os traços por onde nosso olhar caminha. O amplo peito esquerdo à mostra de Anna toca a cabeça da morta que se apóia na perna também nua. Nessa plástica simetria de rostos e espaços,

um manto branco as envolve. Nudezas e mantos, luz e sombra se resvalam, se apossam do corpo da imagem, produzindo contrastes e combinações, acentuando e apagando num mesmo movimento seus contornos.

Essa cena nos evoca uma certa dualidade. A morte encarnada em Agnes, assim disposta nas pernas de Anna, no mesmo lado em que o corpo desta se “revela”, enleva-nos a uma zona fronteiriça dos sentidos. Uma zona que nos expõe ao trágico e ao sensual, a uma espécie de combinação Eros / Thanatos. Há luz incidindo sobre o corpo parcialmente nu, assim como um sombreamento que se condensa nas saliências do manto branco e dos contornos corporais. É nessa zona de fronteiras que o discurso se nos apresenta. Ele está justamente no entremeio, nesse manto que reveste e enfatiza ao mesmo tempo os relevos do corpo discursivo em suas formulações. São gestos, como já apontamos, que se emolduram e – importante que se diga – produzem outros. Tais gestos emanam sentidos, são interpretativos. Na produção discursiva, os gestos interpretativos, aqueles os quais permanecem na superfície do discurso onde tudo parece homogêneo e regular, são deslocados por um outro gesto, que também interpreta, mas que, diferentemente do interpretativo, atém-se à análise dos efeitos que essa superfície da linguagem gera. A esse movimento gestual, chamamos de “gesto analítico” pois o mesmo opera por procedimentos teóricos específicos. E a esse tal gesto, esse olhar que aqui se investe, não é o da “descoberta”. Não se pretende escavar as profundezas do corpus para descobrir aquilo que está soterrado. De acordo com a AD, “não há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender” (Orlandi, 2001: 26). O olhar que se propõe é aquele que escava não em busca da verdade, mas de vestígios que vão sendo delineados à medida que o analista vai articulando as espessuras de seu objeto e relacionando seus recortes, porque é nessa espessura material que se encontra não somente o lingüístico, ou o só social, mas uma concomitância e interdependência entre vários eixos.

“La mort a quelque chose d'indicible” (Constantine, 2003).É por essa frase que podemos condensar nosso pensamento: ela, a morte, é o irrepresentável, porque o que nos importa nessa breve exposição é iniciarmos nossa reflexão tomando a morte não mais em seu eixo restritamente empírico. Antes de qualquer coisa, é o processo e não o fim que nos interessa e, numa perspectiva processual, o gesto interpretativo se faz presente não mais como norteador: é como ponto de reflexão e nas derivas que entram em cena os procedimentos de análise. E esse olhar atento sobre os processos de constituição dos sentidos é um olhar sobre as singularidades de um corpus que

nunca falece, pois está sempre significando, sustentando-se nas contradições que lhe são próprias; enfim, um corpus vivo da morte a partir do qual devemos nos ater a seus batimentos intermináveis, à circulação constante dos sentidos.

Portanto, as perguntas fundamentais que se lançam nesses primeiros movimentos em torno do discurso são: Quais as outras margens da Morte? Por que paragens, por que espaços ela se materializa, torna-se presente e viva? De um ponto de vista discursivo, tomaremos a Morte no momento em que ela, ser enigmático e irrepresentável, ronda pelo discurso, tornando vias de imaginárias mortes do sentido, lugares onde contraditoriamente este brota entre interdições e ditos, entre a transparência e a opacidade.

Seu lugar não é mais nos caixões ou arcabouços de histórias ratificadas; é no acontecimento do discurso, lugar de embates e contradições. É assim que ela, a morte, adquire corpo por onde circulam sentidos, torna-se gesto, carne, imagem, movimento, à medida que procuramos escutar seus batimentos, suas instabilidades, seu fluxo de memórias e esquecimentos. É nesse corpo de acontecimentos que ela encarna. Contudo, se há um corpo em que o acontecimento se engendra, deve-se considerar sua estrutura. Uma estrutura que, constitutiva do acontecimento, só se torna possível porque, no presente trabalho, ela constrói sua morada num espaço singular de jogo da língua, da imagem e da história. Esta é sua materialidade e o que nos interessa são as formas de textualização que tornam a vaga noção de morte um lugar de agitação de sentidos e jogos de filiação histórica. E não é por menos que a morte, por assim dizer, é significada enquanto “rito de passagem”. Esse rito não é uma passagem estanque vida / morte e não será reduzida aqui meramente a acepções religiosas e institucionalizadas. Propomos um deslocamento: ela é aqui passagem de discursividades, lugar de entremeios, de margens transbordantes, de deslizamentos. A morte, para além de empirismos ou de abstrações, considerada nesse espaço de jogo discursivo, é material e se movimenta entre a estrutura e o acontecimento, entre mesmices imaginárias e rupturas. Ela por si só não existe, mas seu corpo – que é o discursivo – lhe insere nas práticas sociais e na configuração de nossa sociedade entremeada de esquecimentos e memórias.

Como já dito no início deste trabalho, é a cobertura telejornalística em torno do funeral de Mário Covas nosso viés de exploração. E é desse evento especificamente, que a palavra morte pode parecer-nos já moribunda somente à espera de que tracemos sobre ela longas linhas historiográficas ou mesmo que desvendemos seus supostos tesouros e revelações, que a presente análise tem uma outra função: das condições de produção do discurso e do funcionamento de

suas práticas discursivas que norteiam nosso recorte, é preciso olhar não mais sua superfície supostamente completa e inalterável, mas seus vestígios, seus musgos, suas irregularidades, enfim, aquilo que não está morto, mas que se movimenta e se aloja no quente corpo do discurso.

4. SINFONIA ATRAVESSADA - BOLERO DO DISCURSO: SONÂNCIAS