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(...) E eu, magro, espio... e um muro, magro, em frente Abrindo à tarde as órbitas musgosas - Vazias? Menos do que misteriosas – Pestaneja, estremece... O muro sente!

E que cheiro sai dos nervos dele, Embora o caio roído, cor de brasa, E lhe doa talvez aquela pele!

Mas um prazer ao sofrimento casa... Pois o ramo em que o vento à dor lhe impele É onde a volúpia está de uma asa e outra asa.... (O Muro – Pedro Kilkerry)

Há um corpo na rua, no meio do redemoinho. Ele se engendra, germina, cria raízes significantes, projeta seus galhos para além de sua própria superfície. Este corpo, iluminado pela quente luz da materialidade, vive de sons, de silêncios, de dizeres, de imagens, de ausências; ele atravessa a dura língua de madeira e é atravessado por sentidos. Esse corpo é o do discurso, instância de formulação, lugar onde o dizer e o olhar se encontram nas encruzilhadas da estrutura e do histórico, instante em que ele se depara com seu trágico destino: a eterna significância.

O presente trabalho procurou mostrar alguns gestos desse corpo mergulhado na tragédia dos sentidos. Tendo como corpus jornalístico reportagens em torno do funeral de Mário Covas, descrevemos algumas das nuanças de sua narrativa laudatória. Deparamo-nos com o espetáculo, esse voyeurismo contemporâneo que sobredetermina o imaginário e torna possível a inscrição do sujeito discursivo e suas diversas manifestações nos dizeres e olhares das formulações.

Paradoxalmente, toda essa potência da significação é formulada na imprensa, a qual se impõe como reino do fato. Mas nesse reino há o movimento dos sentidos, sorrateiros e inevitáveis. Nesse afã de literalidade, nesse olhar que emana onipotência, cria-se um muro imaginário de transparência, literalidade, coerência, retidão. Mas esse muro sente. No profundo de sua epiderme há camadas desniveladas e esburacadas, exalando memórias e esquecimentos, fazendo fluir ininterruptamente – mesmo quando ele parece estar morto – o sangue material da significação.

Entre os imaginários constituídos pelas estruturas da linguagem em Mário Covas e na imprensa, parece haver algo maior do que dois lugares estanques. Há uma correlação que faz ecoar deles um enunciador comum: o Estado e suas formas jurídico-administrativas que formatam no discurso o efeito de um sujeito “autêntico”, que “tem” e que “dá” a palavra e a imagem, mas que também recebe. Assim, Mário Covas deixa seu plano individualizado, adentra no mundo da linguagem, funde-se com os entremeios discursivos, em que se encontram o emotivo e o efeito de científico, torna-se nome próprio e comum ao mesmo tempo. E nesse “mesmo tempo” o discurso traz para a memória institucionalizada dos arquivos a memória discursiva, causando fusões de sentido na relação rítmica dos planos e dos dizeres.

Discurso é entremeado de ritmo. Pulsar, calar, ouvir, morrer, reviver são propriedades desse corpo à mercê de sua tragédia semântica inexorável, porque tudo é gesto de uma necessidade constitutiva de significar. E os sentidos são como corpos: fluem pelas veias das formulações, instauram batimentos discursivos, acendem olhares significantes. No ritmo dos entremeios, defrontamo-nos com a dura superfície telejornalística, mas também com a espessa camada do discurso. Na encruzilhada de significações desponta uma narrativa fabular, mítica que se faz possível porque há a história e esta é atravessada por sentidos outros, tornando-se historicidade. É assim que a lente onipotente e onipresente da imprensa televisiva desce das alturas de sua ilusória potestade informacional para encontrar-se com o olhar que percorre o reino das instabilidades humanas e linguageiras. A visão se converte em olhar-câmera e se depara com o olhar metonímico da linguagem. Esse olhar-câmera tenta conter um olhar Outro, mas na espessura de sua muralha imaginária desenvolve-se o germe do fabular, do mítico e que não é senão o próprio olhar Outro na mesmice imaginária, congelado e hipnótico, pois seu fascínio está justamente naquilo que ele tem de memória, de instauração material de conteúdos arquetípicos e de riqueza semântica. Assim, se desenvolveu nosso trabalho, almejando não um sentido final, mas adentrar nessa rede de olhares que, mesmo hipnóticos, pestanejam e estremecem no embate dos sentidos, irradiando flashes de uma sinfonia feita de memória e silêncio. O fabular do discurso na imprensa irrompe junto com a constatação de que não há muralhas ou qualquer outra barreira que impeça que o corpo da linguagem pulse. Esse corpo que rompe, sorrateiramente, a frágil homogeneidade da transparência e da hiper-visibilidade espetacular de uma sociedade contemplativa, mas que também se faz no espaço de confronto semântico, está por aí, indo a todo o canto, no redemoinho da linguagem. Enquanto a língua se enreda por imaginários, enquanto o olhar desliza de um plano a outro e desce de seu trono para o reino do real dos sentidos, o corpo

da linguagem está lá, sempre vivo e pulsante, fazendo a sinfonia dos sentidos. E nesses movimentos do dizer e do olhar, o ser de linguagem (m)ário Covas – esse mesmo ser que se desenvolve e se multiplica nas estruturas de uma superfície imaginariamente plana e pétrea no interior do jogo semântico – se eleva pela tragédia da significância, mostrando-nos que os sentidos é que ascendem, sacralizam-(se).

“Na alegria e na tristeza, Mário Covas foi Mário Covas de um jeito que só ele sabia ser” e, enquanto há um corpo que parece estar morto, há um Mário Covas que é corpo da linguagem por onde os sentidos se cristalizam e se esgalham, por onde os entremeios dessa sinfonia material se apossam e mostram que, na alegria e na tristeza, somos todos pão e vinho, corpo e sangue de um processo de significação infindável e indestrutível; que a ascensão não é tão somente a de uma figura política, de um governador no suplício da morte: a ascese é senão a do discurso.