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Quando se pensa em cultura e, por conseguinte, em como preservar bens culturais, não se está adstrito à ideia de sobrevivência das criações humanas. E o século XX foi um período marcado por intensas mudanças em virtude do rápido progresso tecnológico, o que por um lado incrementou as invenções humanas e, por outro, deixou ruir tecnologias defasadas. Nesse contexto, a preservação dos patrimônios criados ou não pelo homem pode estar permeada pelo espírito de romantismo e nostalgia, se considerar as correntes urbanistas dos culturalistas, motivadas pelo interesse das pessoas em encontrarem um passado marcado por estabilidade e prosperidade. No caso brasileiro, se verá mais à frente que o interesse pelo passado num determinado momento foi uma forma de marcar o nacionalismo a partir da retomada do período do barroco mineiro por meio dos ideais modernistas. Outros entendem a preservação dos bens culturais como uma ideia elitista, se pautada no que os urbanistas progressistas vão trazer de soluções para as cidades industriais, nas quais a manutenção de certas tradições constitui uma justificativa para a conservação do status quo de determinados setores sociais. Este fato se confirmará nas políticas públicas de Joinville, que se observará adiante no capítulo 3.

Além dos motivos já citados acima, como o romantismo, a nostalgia e a conservação de certas tradições, os interesses comuns de preservação ainda podem ser motivados pela ideia de sobrevivência, de enriquecimento espiritual, científico e histórico, de fonte de prazer e contemplação (SILVA, 2003, p. 44) e tantas outras razões que se analisarão nos próximos subcapítulos.

O patrimônio cultural de uma sociedade, mais que estabelecer limites, coleções e escolhas a partir de discursos, tem sua importância arraigada no sentido de questionar de onde viemos e para onde vamos. O patrimônio é tingido de valores80

numa dada época, num certo momento histórico e, portanto, é uma construção social, diacrítica,

80 Ulpiano Meneses (1999) vai discorrer sobre os valores atribuídos ao patrimônio. O autor frisa tal elenco como sendo conflituoso e não um mapa conceitual. Assim, valores cognitivos seriam os ligados ao conhecimento e ao intelecto. Valores formais estariam conectados ao estético e ao sensorial. Valores afetivos seriam a memória, o pertencimento e a identidade. Os valores pragmáticos teriam ligação com o uso qualitativo e, por último, os valores éticos relacionariam-se com a interação social e o outro.

normalmente pensada por uma elite que muitas vezes acaba por excluir certos grupos, geralmente minoritários. Todavia, essas elites, representadas por instituições de preservação, deveriam servir aos cidadãos ao invés de servir a grupos de interesses políticos e econômicos.

Pensar, então, o patrimônio a partir da identidade cultural como o passado de uma etnia (ou grupo social) é uma maneira de demonstrar o reconhecimento à ideia comunitária, isso quando o próprio grupo detentor de determinado patrimônio se reconhece perante ele. Assim, os sistemas de símbolos que cada grupo de pessoas experimenta subjetivamente como sua identidade podem ser chamados de cultura, “uma vez que eles [os patrimônios] materializam uma teia de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos individual e coletivamente” (GONÇALVES, 2007, p. 29). E aceitar que essa teia de significados abrange aquelas

Producciones simbólicas y las experiencias estéticas sustraídas a la urgencia de lo cotidiano, con los lenguajes, los rituales y las conductas gracias a los cuales una comunidad vive y reflexiona su vínculo con el mundo, con los otros y con ella misma (CHARTIER, 2008, p. 23).

Logo, conjugando patrimônio e cultura, temos o enlaço das produções simbólicas e experiências estéticas do cotidiano, tanto as deixadas por antepassados longínquos ou próximos quanto aquelas realizadas a partir de uma instituição ou de certas pessoas. Portanto, a ação do homem no espaço gera bens que podem vir a ser significativos a ponto de constituir uma marca naquele tempo. O patrimônio cultural de um país, estado ou cidade, ou mesmo de um grupo social, é formado por elementos tangíveis e intangíveis num determinado processo histórico que identifica e diferencia as pessoas a partir da reprodução das ideias e dos materiais provenientes desses elementos. O conceito de patrimônio cultural, então, está em constante embate de significados e ressignificados. O período do século XIX, até meados do século XX, foi marcado por uma categoria de patrimônio ligada à herança e que tinha uma apelação estritamente material, ligada à preservação de monumentos e de edifícios históricos atribuídos por sua excepcionalidade, a era da “pedra e cal”.

Gonçalves (2007, p. 22) frisa que é a partir dos anos 198081 que

as discussões na área do patrimônio cultural abrangem as pesquisas e as reflexões sobre as relações sociais e simbólicas dos objetos materiais entre os personagens da história da “antropologia cultural ou social (viajantes, missionários, etnógrafos, antropólogos, nativos, colecionadores, museólogos, universidades, lideranças étnicas etc.) que envolvem coleções, museus, arquivos e patrimônios culturais (novos patrimônios e novos usos)”.

No entanto, os discursos do patrimônio articulam-se enquanto narrativas, as quais relatam a história de determinada coletividade, seus heróis, os acontecimentos marcantes, os lugares importantes e os objetos que testemunharam esses acontecimentos. Essas narrativas da história “possuem certa autoridade na nação ou dentro de uma coletividade cuja memória e identidade são representadas pelo patrimônio” (GONÇALVES, 2007, p. 142). Assim, nem sempre essas narrativas se complementam, podendo haver discórdias.

2.1 - Caminhos da agenda patrimonial

As cidades brasileiras e seus patrimônios culturais necessitam das políticas e gestões públicas para que haja a conservação e a preservação de seus bens. Portanto, é importante analisar o contexto brasileiro nas três instâncias governamentais sobre como vieram agindo em papéis- chave para a proteção e a construção do discurso do patrimônio na agenda nacional.

No Brasil, em resposta aos fatos e aos movimentos ocorridos na Europa, que se refletiram no país a partir dos movimentos conservadores e autoritários (literário e político) modernistas da década de 1930, houve uma radicalização do projeto modernizador de Estado Novo, de Getúlio Vargas, quando o Congresso Nacional foi fechado, partidos políticos foram encerrados e as eleições foram suprimidas, além de que a imprensa foi submetida à censura. Este foi o início do contexto político

81 Nora (1993) nomeia essa obsessão como uma fúria preservacionista, a partir da criação de lugares de memória, retomando as ideias de Maurice Hobswachs (1990) de uma memória coletiva. Huyssen (2010) clama pela cultura da memória ou uma resistência à memória partindo do cinema, do teatro, da moda, da música. Hartog (2006) chama essa obsessão de uma patrimonialização galopante. E Jeudy (2005) chama de maquinaria patrimonial o campo de pessoas que elegem o que será preservado e que não deixam a própria sociedade pensar o que quer preservar, o que merece proteger.

do que seria a “construção do patrimônio cultural nacional” (GONÇALVES, 1996, p. 40).

A partir daí os processos de tombamento, que são a forma institucionalizada de proteger os bens culturais, iniciados na década de trinta, e de outras tentativas de preservação efetivaram-se no patrimônio brasileiro. “As palavras de ordem eram progresso, ciência, saneamento e higiene. A modernização técnica e o modo de vida moderno encontraram terreno fértil nas maiores cidades [...]” (FLORES, 2006, p. 21).

A cidade de Ouro Preto, no estado de Minas Gerais, foi o primeiro exemplar tombado, por meio do Decreto nº 22.928, de 193382,

que elevou todo o centro histórico à categoria de monumento nacional. Esse lugar, o “conjunto arquitetônico e urbanístico da Cidade de Ouro Preto, [registrado] no Livro de Tombo das Belas-Artes” (MINC/IPHAN, 1994, p. 76), foi o estandarte dos modernistas, pois entendiam que lá estava a origem da nacionalidade brasileira a partir da identidade barroca e mineira83

.

Ouro Preto era uma cidade que nos anos de 1920 estava em decadência, após o fim do ciclo da mineração e da Guerra dos Emboabas84. Um passado esquecido, que precisava ser lembrado com

base no Brasil Colonial, que era referência por suas casas e igrejas barrocas, nas quais a autenticidade e a originalidade cultural estavam presentes de forma marcante. “A perda do papel administrativo de sede do estado de Minas acaba sendo positiva para a conservação das feições urbanas da antiga Vila Rica [que] mantém praticamente inalterado seu conjunto arquitetônico, artístico e natural” (LIMA FILHO, 2006, p. 32). Para os modernistas85, a cidade de Ouro Preto construiria, a partir de sua

82 Em 1980, a cidade tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade, a partir da

UNESCO, e no ano de 2004, tornou-se rota turística (Disponível em: http://www.ouropreto.mg.gov.br/portal_do_patrimonio_ouro_preto_2015/. Acesso: mar. 2016).

83

Para mais informações sobre a cidade de Ouro Preto, ver Lima Filho (2006) e Chuva (2012).

84 Foi um confronto ocorrido de 1707 a 1709 pelo direito de exploração das recém-descobertas jazidas de ouro em Minas Gerais. O conflito se desenrolou entre desbravadores bandeirantes paulistas e portugueses que foram apelidados de “emboabas” pelos paulistas.

85 As pessoas que fizeram parte desse movimento modernista brasileiro e que, portanto, integrariam o chamado “Grupo dos Cinco”, eram Mário de Andrade, os poetas Oswald de Andrade (sem relação de parentesco com Mário de Andrade) e Menotti del Picchia, além das pintoras Tarsila do Amaral e Anita

preservação patrimonial, o ideário de identidade artística brasileira, da “brasilidade”, da “alma ou da essência brasileira”, também inspirada pela figura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, escultor, entalhador e arquiteto no período do Brasil Colonial. A aura do passado mineiro preservaria a singularidade e a permanência da identidade do Brasil. Portanto, não se limitava tão somente a um ideal preservacionista ameaçado de destruição. Ouro Preto foi o meio de se restabelecerem vínculos com a tradição e com o passado dos séculos XVII e XVIII, desprendendo-se das raízes lusitanas. A cidade patrimonial tornou-se palco de encenação da nacionalidade brasileira, do encontro entre a ideia de nação que ali surgia e dos eventos históricos e culturais que transcorreram.

Diferentemente de outros países europeus, como Itália e França, e dos Estados Unidos, que vinham respondendo às questões de crescimento exacerbado das cidades pelo viés sociológico em consequência, sobretudo, da heterogeneidade de imigrantes, da rápida industrialização, do surgimento do proletariado e da burguesia e da urbanização acelerada, como foi discutido amplamente na Escola de Chicago (EUA)86, no Brasil a resposta foi literária e artística, bastante

idealizada a partir do aparato oficial patrimonial brasileiro preservacionista, que é aquele “assumido pelo Estado motivado pela ideologia do dirigismo cultural, com orientação nacionalista, foco patrimonialista e que assume o papel de produtor cultural” (COELHO, 2004, p. 54).

As consequências das escolhas feitas pelos técnicos construtores do discurso patrimonial brasileiro refletiram sobremaneira na forma como a cultura germânica catarinense e também italiana, polaca, dentre outras experimentadas no Sul do país, foi rechaçada e excluída das políticas públicas de início do século XX. Apesar de ter havido alguns

Malfatti. E mais tarde, Cândido Portinari, Antônio Bento, Rodrigo Melo Franco, dentre outros.

86 Os maiores representantes desta escola são William I. Thomas, Florian Znaniecki, Robert E. Park, Louis Wirth, Ernest Burgess, Everett Hughes e Robert McKenzie. Da década de 1920 a de 1930, a sociologia urbana foi quase sinônimo de Escola de Chicago (BECKER, 1996). Esses pensadores estudaram a cidade como um espaço de pesquisa, conciliando técnicas e metodologias da antropologia com estudos de contextos metropolitanos, utilizados na Sociologia. Esta escola foi duramente criticada pelos urbanistas, que afirmavam que seus pensadores não responderam aos questionamentos levantados na época (CHOAY, 1979).

tombamentos federais no âmbito catarinense, eles foram pontuais e singulares. Mas por que isso aconteceu?

2.1.1 - Fase heroica da “pedra e cal”

Três fatos foram imprescindíveis para o quadro diacrônico do conceito de patrimônio cultural no Brasil subsistir: a Semana de Arte Moderna, de 192287

, que foi um ritual de profanação sob a marca da elite até então reinante, profanando a arte de modo a escandalizar e a desconcertar o status quo; a implantação do Estado Novo, por meio de Getúlio Vargas, que tornou oficial o discurso modernista; e a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) pelo Decreto-lei nº 25/1937, vinculado ao Ministério de Educação e Saúde, dirigido por Gustavo Capanema.

A participação efetiva dos intelectuais da época, como “Rodrigo Melo Franco Andrade, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Gustavo Capanema, foi primordial”, conclui Martins (2006, p. 2). Lúcio Costa, arquiteto, urbanista e professor nascido na França, e Oscar Niemeyer, também arquiteto, brasileiro, considerado uma das figuras importantes no desenvolvimento da arquitetura moderna, da mesma forma foram representativos para a política de patrimonialização e para o SPHAN, que teve sua “fase heroica” entre 1930 e meados de 1960, em torno do discurso da monumentalidade (FONSECA, 2009).

Mário de Andrade e Lúcio Costa desempenharam papel fundamental na criação e no funcionamento do SPHAN, tanto que, a pedido do Ministro da Educação, Gustavo Capanema (1934-1945), o intelectual Mário de Andrade88 escreveu um anteprojeto para a criação

87 Lehmkuhl (2006, p. 83) lembra que a “arte moderna brasileira é plural com manifestações e movimentos que ocorrem em épocas variadas, nos diversos estados do país. Seguramente, não é possível enquadrar o surgimento e o desenvolvimento dos variados modernismos brasileiros, nos moldes do modernismo engendrado em 1922 pelos artistas e intelectuais de São Paulo. Cada região, estado e cidade do país, ao viverem suas especificidades locais e suas distintas modernizações, desenvolveram, também, diferentes sistemas de arte, nos quais são variáveis as relações entre arte acadêmica e arte moderna, artistas acadêmicos e artistas modernos, bem como a atuação e a posição da crítica, do público e das instituições relacionadas à arte”.

88 Apesar da relativização trazida por Marcia Chuva (2012) sobre a participação de Mário de Andrade na elaboração da “fase heroica” da história da preservação do patrimônio cultural no Brasil, dizendo que a equipe com quem ele trabalhava, principalmente Rodrigo de Melo, foi mais ativa do que o próprio

do instituto preservacionista. Neste anteprojeto, o patrimônio artístico nacional foi definido como “todas as obras de arte pura ou de arte

aplicada, popular ou erudita, nacional ou

estrangeira”(MEC/SPHAN/FNPM, 1980, p. 90). E foi na Constituição de 1934 a primeira vez que se dispôs sobre bens culturais em seu bojo. No artigo 10º, inciso III, previa-se a competência concorrente entre a União e os Estados para proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte (BRASIL, 1934). Nunca se previu em nível constitucional tal proteção, pois as Cartas Magnas anteriores à de 1934 eram baseadas no Direito Romano, que rezava por um direito absoluto sobre a propriedade.

Percebe-se claramente que o patrimônio, nesta fase heroica com o SPHAN, a partir de 1937, é visto como obra de arte e que os monumentos de pedra e cal são os beneficiados pelas políticas públicas em prol da preservação. Lembrando que a competência municipal era totalmente excluída do arcabouço constitucional, somente sendo conferida a partir da Constituição de 1937 (Art. 134, BRASIL, 1937). Nesse sentido, há um monopólio da versão dos fatos narrados pelos modernistas em prol de uma proteção centralizada, especialmente nas regiões Nordeste e Sudeste, onde houve o maior número de tombamentos.

Nessa época dos anos 1930 houve uma proliferação de tentativas de interpretações do Brasil como forma de repensar o passado brasileiro, de um país colonial, a partir do discurso modernista que buscava encontrar as raízes socioculturais. Exemplo clássico disso é a obra Macunaíma, de Mário de Andrade. Ele, sob uma posição burguesa, era um intelectual que tinha urgência em inventariar o Brasil, buscando as suas raízes verdadeiras, distintas das europeias ou norte-americanas. Tal busca tinha a intenção de mostrar como o Brasil era rico, distinto, poderoso, mas até então sem face, sem uma real identidade após a queda da aristocracia.

Renato Ortiz (1994), por sua vez, afirma que Sérgio Buarque de Holanda, historiador, crítico literário e jornalista, buscou as raízes do brasileiro na cordialidade; Paulo Prado, cafeicultor, investidor em negócios, jurista e também mecenas e escritor, que participou da Semana de 1922, na tristeza; e Cassiano Ricardo, jornalista, poeta e

intelectual Mário de Andrade, entendo que a partir de outros autores ele é bastante referenciado, portanto, manterei a sua importância no texto deste subcapítulo.

ensaísta brasileiro, na bondade. Houve ainda outros escritores que focaram a brasilidade em eventos como o Carnaval ou na índole malandra do cidadão brasileiro. Ortiz (1994) critica esses posicionamentos, pois, conforme o autor, estariam por reduzir a identidade brasileira a aspectos fechados e estáticos, o que estaria em contradição a uma ideia abstrata de identidade que não poderia ser apreendida por uma essência. Assim, os que revolucionaram a cultura com novos ditames elegeram como referência nacional os monumentos e os edifícios setecentistas. O Brasil vivia, naquele tempo, uma síndrome de ex-colônia. Os modernistas queriam a qualquer preço criar, inventar uma tradição brasileira a partir de uma matéria prima própria: o seu passado, a ser salvo como um referencial do patrimônio cultural brasileiro coeso, em comparação a outros países que de antemão tinham uma nacionalidade bem consolidada. A ausência de uma nação historicamente definida gerou o desejo de discursos autorizados, que se firmaram ao redor da herança luso-brasileira e de classes dominantes.

Após os anos 1930, houve uma valorização do patrimônio regional, com um deslocamento da ideia de nação, com intuito de justificar o passado para se fazer valer no presente, o que Gonçalves (1996) chama de uma retórica da perda89. A noção de preservação, para

fins de manter a ideia de nação, surge a partir da salvaguarda de uma memória e uma identidade cultural local. Os intérpretes do Brasil, na época, buscavam redescobrir o país com base em “causas do patrimônio” (GONÇALVES, 1996, p. 48).

Esta retórica remete a duas gestões do IPHAN: a de Rodrigo Melo de Andrade, visto como um “silencioso e dedicado funcionário público, uma espécie de humilde e silencioso herói. [...] Sua vida privada é narrada como um sacrifício em favor do patrimônio. Suas possibilidades como escritor, como jornalista ou advogado são todas sacrificadas em favor da ‘causa’” (GONÇALVES, 1996, p.48); e a de Aloísio Magalhães, quando a emergência da preservação dos

89 A retórica da perda em Gonçalves (1996) é vista como uma invenção de certa ideia trazida pelos pesquisadores do passado, a partir de uma narrativa que trabalha com uma realidade não-real, em que os indivíduos, assim como seus pressupostos, ações e contextos, são culturalmente moldados. Trata-se de uma romantização do passado legitimada por certas autoridades, normalmente historiadores, na qual autorizam uma narrativa com interesses hegemônicos, em que o caminho do presente é o caminho da perda, pois no passado, hipoteticamente, é que havia ‘coisas boas’ da cultura. Por isso, hoje há a necessidade de políticas públicas com intenção de salvaguarda.

patrimônios estaria desaparecendo. Por isso, a legitimação da romantização do passado, confirmada por certas autoridades – na sua maioria, historiadores e antropólogos –, cria artificialmente um passado glorioso em forma de alegorias, tudo em nome da “causa” preservacionista da identidade nacional.

2.1.2 - Fase moderna “populista - desenvolvimentista”

Terminada a Segunda Guerra Mundial, pós 1945, houve uma forma diferente de se pensar o patrimônio – foi um período político chamado de “populista - desenvolvimentista”. Apesar de haver uma nova Constituição, ela apenas generalizava a ação de proteção do patrimônio nacional, dando competência ao “poder público” (Art. 175, BRASIL, 1946).

A sensação de compressão do tempo, no qual o passado parece ficar mais próximo, traz a ideia de pensar e preservar o passado para não esquecê-lo. Batalhas, embates e litígios de memórias surgem em busca de um não esquecimento, que se expressa por meio de materialidades como monumentos, cerimoniais, criptas e memoriais em prol da lembrança e da expropriação da dignidade. O que se vê no país, principalmente nos anos dourados do governo de Juscelino Kubitschek, é, na construção de Brasília, o desenvolvimento técnico e científico, urbano e rodoviário, como afirma Flores (2006, p. 21), que foi a marca da influência política para a época. No capítulo 1 tratei deste período dos anos dourados como o auge dos cinemas, que também se refletiram na expansão desenvolvimentista brasileira.

A conexão com a indústria do consumo e do entretenimento e a expansão do turismo e da sociedade capitalista, por meio do patrimônio da nostalgia, coloca em xeque os critérios da escolha do que se deve preservar, pois tudo parece patrimonializável. A aproximação do patrimônio com os diferentes grupos com demandas identitárias e vínculos identitários que podem ou não estar associados com os traumas contemporâneos como guerras, ditadura, regimes autoritários etc., dá

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