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1.2 O JOGO DUPLO COMO NORMA DE GOVERNO

1.2.1 AS POSTURAS DE BRIZOLA

Como mais um ator dentro do campo político e não como um ‘guerreiro’ ou ‘líder intrépido a desafiar poderosos adversários’62 é que Brizola estava absolutamente inserido dentro do contexto conspiratório daquele período. Se esse contexto conspiratório já foi detalhado em uma série de pesquisas, aqui será a forma como Brizola se colocou dentro dele o que merecerá destaque. O ex-governador, a exemplo de Getúlio Vargas, mas em menor medida, eletrizava as massas prometendo reformas profundas, mas boa parcela da classe média e da elite o via com desconfiança, considerando-o radical demais. Ao chamar para si a herança política de Vargas, chamava também qualificações bem menos edificantes, como ditador e defensor da tomada do poder pela força. No discurso e nas ações de Brizola são identificáveis diversos elementos do 61 Sobre a tese do contragolpe preventivo ver: SILVA, Hélio. 1964: golpe ou contragolpe? Porto Alegre: L&PM,

1978. CAMPOS, Roberto de Oliveira. A opção política brasileira. In: CAMPOS, Roberto de Oliveira; SIMONSEN, Mario Henrique. A nova economia brasileira. p. 228-229. “A partir de 1964, face à ameaça de caos social, que poderia descambar num autoritarismo de esquerda, afastamo-nos novamente do modelo consensual, temporariamente inviabilizado pelas graves tensões da modernização. À míngua de objetivos sociais claros e de um mínimo de eficiência instrumental, o regime democrático representativo, baseado em ilimitado pluralismo partidário, com excessiva autonomia dos subsistemas de representação política e de administração regional, provou-se incapaz de manter uma elevada taxa de industrialização sem (a) excessiva inflação, (b) desordem social, e (c) grave desequilíbrio externo. O renascimento de um Executivo forte se impôs em 1964 como elemento de contenção do populismo distributivista, do regionalismo dispersivo e do personalismo político.”

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SENTO-SÉ, João Trajano. op. cit. p.62-63. “O que confere densidade à persona pública de Brizola, tal como veiculada em suas biografias, são os seus feitos como ator político, suas escolhas e projetos. [...] O período de governo gaúcho é pontuado por dramas, nos quais Brizola aparece como o guerreiro disposto à auto-imolação, enfrentando adversários ‘ocultos’, em certas ocasiões, semi-ocultos em outras. [...] Brizola aparece como o líder intrépido a desafiar poderosos adversários políticos, econômicos e ideológicos. [...] Mais uma vez a figura do herói gaúcho irrompeu o cenário nacional de armas na mão. Aliás, a fase final da biografia de Brizola (antes do exílio), no período que vai até 64, explora não somente o líder político, nacionalista e administrador exemplar, comprometido com as causas populares, mas também, e crescentemente, a imagem do guerreiro.”

getulismo/trabalhismo, como a aproximação das massas e do movimento sindical, a promoção de reformas sociais, o estabelecimento de alianças à esquerda e à direita, a preponderância da popularidade pessoal sobre o partido. Mas, também, a não desconsideração de chegar ao poder e governar pela força, em um regime de exceção. A vinculação Brizola/Vargas continuou a acontecer mesmo durante o regime militar, após a volta do regime democrático ao país, depois do retorno de Brizola a política em um novo partido, o PDT, e até sua morte, em 2004. Hoje ele é considerado o último dos representantes de um jeito de se fazer política que é dado como extinto. Um jeito no qual populismo, trabalhismo e getulismo se confundiam.63

Sua insistência em adotar posturas que podem ser classificadas como de confronto direto (como a defesa ríspida da aprovação das Reformas de Base ‘na lei ou na marra’, as críticas veementes ao Congresso Nacional, as ameaças constantes aos que se negassem a colaborar com as mudanças e a exigência da realização de um plebiscito para decidir sobre uma Assembléia Constituinte), sem as diplomacias e rapapés característicos do jogo político, dão margem para uma série de interpretações:

Desde a crise político-militar de agosto de 1961, ingressamos neste período de ilegalidade consentida. Naqueles dias [...] a Nação sob o arbítrio militar, testemunhava o colapso do poder Civil. [...]Os nossos próprios irmãos das classes armadas contemplam com tristeza e desolação esse quadro deprimente. Sentem na sua formação patriótica que é urgente fazer alguma coisa. [...] Sofrem os nossos irmãos militares as mesmas angústias que atormentam o povo, mas sabem que o gesto de inconformismo e as iniciativas para a solução do problema cabem em primeiro lugar ao povo e aos dirigentes civis.[...] exigimos que com as eleições de 7 de outubro próximo seja realizado o plebiscito para que a Nação decida, livre e soberanamente, sob qual regime deseja viver. Este é um direito que o atual Parlamento não pode negar ao povo

63Sobre este assunto ver, entre outros: BODEA, Miguel. Trabalhismo e populismo no Rio Grande do Sul. Porto

Alegre: Editora da Universidade/Ufrgs, 1992. No que se refere às vinculações entre trabalhismo e populismo, enquanto grande parte dos autores destaca as características do trabalhismo como uma forma de populismo, Miguel Bodea afirma que as lideranças trabalhistas só são alçadas a sua condição de lideranças dentro de uma estrutura partidária, que, por sua vez, teria sua importância diminuída dentro do conceito clássico de populismo como a fórmula na qual prevalece a relação direta entre povo e liderança política. FERREIRA, Jorge. (org.) O populismo e

sua história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. GOMES, Ângela de Castro e D’ARAÚJO, Maria Celina. Getulismo e trabalhismo. São Paulo: Editora Ática, 1989. p.54 “Getulismo é trabalhismo, se nesta associação a

dimensão privilegiada for a ideológica, ou seja, aquela de uma proposta política fundada na resolução da questão social e na mobilização dos trabalhadores pelo sistema sindical corporativista. Mas getulismo não é trabalhismo em termos partidários e, em decorrência, não se identifica com o PTB. Neste sentido, talvez se possa arriscar que getulismo fosse mais populismo: um estilo de fazer política que tinha em Vargas seu mestre maior, mas que fazia escola.” Sobre os petebistas reformistas, os radicais, a relação do PTB com o PCB e o movimento sindical ver: DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. PTB – do getulismo ao reformismo. São Paulo: Marco Zero, 1989. A autora faz uma análise detalhada das diferenças entre o PTB e o PSD, das correntes existentes dentro do partido e de suas alianças e movimentações, além de tratar dos elementos de ligação Vargas/PTB.

brasileiro. E, se negar, terá que assumir as responsabilidades [...] E não terá como se surpreender com as eclosões inconformismo e revolta que fatalmente sobrevirão [...] A posição das Forças Armadas e a decisão das classes trabalhadoras de ir à greve geral, em apoio ao Presidente, são uma advertência à maioria parlamentar, às cúpulas partidárias e aos grupos políticos... 64

No Legislativo gaúcho, os parlamentares de oposição não se cansavam de apontar Brizola como ‘subvertor da ordem’65 logo após o episódio da Legalidade e à sua insistência em realizar um plebiscito para definir qual o sistema de governo preferido pela população, mesmo após o presidente João Goulart ter aceitado o sistema parlamentarista e o primeiro-ministro Tancredo Neves. As acusações dos deputados de oposição a Brizola merecem algumas observações. A ordem a que eles se referem com insistência está intrinsecamente ligada à concepção de Estado. Isto porque o Estado tem como uma de suas funções primordiais a manutenção da ordem, o que é ponto pacífico na teoria política. A possibilidade, no caso em estudo aqui, e após a contextualização feita, é a de aliar esta questão, a da ordem, a uma segunda questão, a da categoria que em teoria política é conhecida como cesarismo. Resumidamente, conforme Norberto Bobbio66, a forma de governo pessoal presente em qualquer época da história nos momentos de passagem de uma forma de governo para outra através de revoluções violentas. Também de forma sucinta, na concepção mais conhecida, à direita, o fenômeno que decorre da degeneração da democracia a partir da qual são desencadeados embates dos quais acaba resultando a necessidade de um governo pessoal forte e carismático.

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ANAIS DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RS. v. 158. p. 96-97. Pronunciamento de Sereno Chaise (PTB), com transcrição de manifesto de Leonel Brizola ao país lançado em julho de 1962. 51ª sessão, em 06/07/62.

65 ANAIS DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RS. v. 150. p.215. Pronunciamento de Paulo Brossard (PL). O

governador está vivamente empenhado em promover uma generalizada subversão da ordem.” 100ª sessão, em 22/09/61. v. 160. p. 02. Pronunciamento de Paulo Brossard (PL). “A Nação está assistindo, com ansiedade, ao movimento subversivo, aberto, claro, inequívoco que vem desenvolvendo, na antiga capital da República, o Governador do Rio Grande. [...] Diz o Governador que ‘se o Congresso dependesse de mim já não estaria funcionando’. Eis a confissão, com todas as palavras, dos objetivos conspiratórios, totalitários, anti-democráticos do Governador do Estado.” 93ª sessão, em 04/09/62. v. 166. p.158. Pronunciamento de Mário Mondino (PDC). “Realmente, S. Exa. tem pregado, a meu ver, uma solução ilegal, uma solução insurrecional, que não é uma solução democrática.[...] Está fazendo aquilo que os comunistas costumam chamar de provocação.” 38ª sessão, em 10/05/63.

66 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. op. cit. p. 128. Sobre cesarismo, ver também: SPENGLER,

Oswald. A decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da história universal. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. Sobre esta questão, a da necessidade do estabelecimento de um governo forte, ver ainda as observações de CAMPOS, Roberto. op. cit. Interessante destacar ainda sobre este ponto é que um dos maiores acusadores no Parlamento gaúcho de que Brizola estava interessado em subverter a ordem era o deputado Paulo Brossard. Jurista já conhecido, Brossard certamente possuía amplo conhecimento a respeito da relação entre tensionamento de posições e estabelecimento de governo ‘forte’.

Ora, se os deputados acusavam Brizola de tentar subverter a ordem, se o chamavam constantemente de incendiário e se, ao mesmo tempo, levantavam recorrentes suspeitas de que ele, em diferentes momentos no período que é objeto deste estudo, esteve a planejar um golpe de Estado, parece possível que as provocações e incitações feitas por Brizola tivessem como objetivo, também, pressionar por um acirramento de posições que resultaria, na visão dos políticos da época, na necessidade de um ‘governo forte’, como já havia ocorrido com Vargas e para a frente do qual Brizola poderia perfeitamente se apresentar. Por isso, ao mesmo tempo, são atribuídos a ele adjetivos como o de fascista, anti-democrático e totalitário. Ainda antes da Legalidade, Brizola insistia na possibilidade de instituição de uma ditadura no país, atribuída por ele à grave crise que o país estaria enfrentando e ao alto custo de vida:

A prevalecer as atuais condições, nós estamos marchando muito possivelmente para uma ditadura que, no início – com lealdade afirmo – seria consagradoramente recebida pelo povo, mas pouco depois este povo ficaria decepcionado. [...] Sou contra qualquer golpe ou quartelada, venha de onde vier. E se eu puder resistir, até pela fôrça, resistirei. Mas reconheço que a atual ordem constitucional como está não pode continuar... O pior, porém, é que precisamos reformulá-la profundamente. Sem violência, nem derramamento de sangue. Pelos caminhos do processo democrático, mesmo que o povo tenha de sair às ruas para reclamar esta indispensável reforma do regime.67

Uma certa confusão, também não raro proposital, misturava conceitos como socialismo, comunismo e nacionalismo a idéias de ‘conspirações’, tentativas de golpes de Estado e regimes de exceção tão presentes naqueles dias. Os integrantes do PTB, que havia sido organizado por Getúlio Vargas para disputar com os comunistas a liderança e o voto entre operários e sindicalistas, assumiam posições muitas vezes contraditórias. Em pronunciamento sobre a Juventude Operária Católica (JOC), em 1961, o deputado Mário Mondino (PDC) destacava que o movimento era uma alternativa às ‘justas reivindicações da classe operária dentro do regime democrático’ contrastando com ‘as tendências revolucionárias e subversivas dos movimentos marxistas e as táticas anti-cristãs do capitalismo.’ As suspeitas entre adversários políticos, que trocavam acusações sobre tentativas de golpe e de subversão da ordem democrática serviam constantemente como motivação para os debates.

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ANAIS DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RS. v. s/n. p. 252-255. Pronunciamento de Justino Quintana (PTB), com transcrição de entrevista de Brizola no Rio de Janeiro. 232ª sessão, em 15/12/59.

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