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As práticas da Academia B e a versão do trabalhador que é atleta

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 123-129)

Capítulo 4 Sobre as Academias de MMA pesquisadas e as versões de

4.2 Academia B

4.2.3 As práticas da Academia B e a versão do trabalhador que é atleta

As práticas da Academia B performavam o lutador, primordialmente, como um trabalhador, que ganhava a vida como atleta. Um trabalhador deveria cumprir suas tarefas, chegar no horário, ter foco em suas ações, ser eticamente correto com os demais atletas e com a equipe técnica. Deveria se orgulhar de sua equipe, levando o nome da academia aos eventos esportivos. Como trabalhador, estava suscetível a adoecimentos e necessitava de descanso e afastamentos, desde que comunicasse à equipe. Tratava-se de um trabalhador que esperava ganhar seu sustento e o de sua família com seu esforço e dedicação.

Lutador Aurélio: Estou aqui para trabalhar, Doutora. Aqui é meu ganha-pão. Os

meninos, assim como eu, não estão aqui para brincar. Não tenho faculdade e nem vou ter, mas aqui eu aprendo na faculdade da vida. Sou feliz com meu trabalho. Não saberia viver sem isso. Além daqui, eu tenho um projetinho social que (sic) eu ensino luta. Tenho orgulho deles. Sinto que faço a diferença como profissional. Por isso, eu não atraso, faço tudo o que o Professor manda. Tento me superar todos os dias. Já tenho 30 anos e não posso perder tempo.

Academia B - Diário de Campo, outubro de 2014.

Tal visão é a do MMA no contexto da economia, pois, como se nota, os atletas eram trabalhadores.

Guto: Quando um atleta vai competir, antes de entrar no Octógono, não falamos boa luta,

ou boa sorte, falamos “bom trabalho”. Aqui evitamos chamá-los de lutadores, preferimos chamá-los de atletas.

Academia B - Diário de Campo, dezembro de 2014.

Guto, irmão de Hugo, era um dos gestores da academia. Trouxe-nos nessa fala a versão do atleta como trabalhador, relatando o modo como a equipe os posicionava antes do combate. Não havia espaço para ideias como: “destrua seu adversário”; “você é mais homem que ele” ou; “lute até a morte”. O MMA era um trabalho. E o atleta, um profissional.

O MMA dessa academia também estava inserido no MMA como esporte, na medida em que reforçava que o atleta deveria manter o corpo treinado e a disciplina tanto na vida pessoal quanto na social. Ao posicionar o lutador como um atleta, tentava-se incutir o controle contínuo das suas vidas, não apenas quando havia algum combate agendado.

Hugo: Se quer ser atleta tem que se doar por completo. Não dá para querer ser atleta e ir

para a balada ou ficar bebendo. Não dá para ficar comendo batata frita e depois tentar como um louco perder peso.

Academia B - Diário de Campo, julho de 2014.

Em contrapartida ao engajamento exigido do atleta, a academia evitava agendar lutas nas ligas de MMA que apresentassem gestão duvidosa (lutas supostamente compradas, espetacularização excessiva, falta de pagamento posterior ao atleta, falta de qualquer controle de doping ou regras pouco claras). A equipe técnica deveria ter embasamento e experiência profissional para oferecer um trabalho coerente, ético e com qualidade aos atletas. A vitória era um indicador de qualidade do trabalho de toda a equipe, e a derrota, um indicador de que algo podia ser melhorado.

Um lutador performado como atleta necessitava de cuidados, atenção e estudos. O Professor Antônio endossava tal versão, dedicando-se intensamente quando alguém agendava uma luta. Ele estudava o adversário, criava estratégias e as colocava em ação nos treinamentos.

Professor Antonio: Antes de confirmar uma luta, sentamos o Dr. Hugo, Marcelo e eu

olhar seus pontos fortes e fracos e traçar uma estratégia para simular nos treinamentos. Sei que os meninos confiam em mim e me sinto responsável por eles.

Academia B - Diário de Campo, outubro de 2014.

Em uma fase de preparação de três atletas para lutar, fui solicitada a falar com eles sobre a ansiedade pré-luta. Reuni o grupo em círculo dentro do Octógono, depois de um intenso treino de Jiu-Jitsu no período da manhã, momentos antes do almoço. Nenhum atraso. Nenhuma brincadeira deslocada do assunto em questão. Olhos vidrados em mim queriam entender o que era a ansiedade e como controlá-la. Distribuí papéis, lápis de diversas cores e pedi que escrevessem o que era a ansiedade para eles, já que entendia que esta poderia ser diferente de atleta para atleta, de situação para situação. Enquanto falamos em grupo sobre isso, recebi um desenho como presente de um atleta.

Figura 24. Desenho feito por Alan durante a conversa em grupo

Alan tinha 20 anos e era um atleta morador da Academia. Sua mãe se prostituía para viver e o pai era um cliente frequente de seu trabalho. Alan nasceu prematuro, talvez porque a mãe, durante o período de gestação, não tenha conseguido abandonar o trabalho ou fazer uma vista ao médico. Viveu com a mãe até os dois anos de idade, quando ela teve um surto psicótico e foi levada a um manicômio, onde passou a morar. A partir desse momento, viveu com familiares diversos. Segundo ele, ninguém quis assumir sua guarda definitiva. Desde uns seis anos, passou a ser mão de obra na família, sendo responsável pela limpeza da casa, pela cozinha, trabalhando na roça e carregando caminhões. Foi campeão de

uma Olímpiada de matemática na escola pública em que estudava, sendo convidado para concorrer em outro concurso fora de seu estado. Em ocasião anterior a esta atividade de grupo, entre choro e soluços, dissera-me que aquele tinha sido um dos momentos mais tristes da vida, pois, durante a premiação, todos os demais alunos contavam com o estímulo e presença de familiares, menos ele. Abandonou a matemática e também a vontade de estudar, passando a se dedicar às artes marciais de origem oriental.

Na adolescência, começou a competir em eventos de artes marciais e, em seguida, começou a praticar MMA, por meio do qual conheceu a Academia B, pediu abrigo e acesso aos treinamentos. Fazia um ano que lá vivia e recebia o acolhimento do Dr. Hugo, amigos e a possibilidade de sonhar com uma profissão:

Alan: Eu quero ser um atleta profissional de MMA. É daqui que quero tirar meu dinheiro

para conseguir ter uma casa, ter uma família e, principalmente...(choro). Quero sustentar minha mãe, Doutora. Quero tirá-la do manicômio. Isso aqui é meu trabalho, de onde tiro meu sustento e, se Deus quiser, vou conseguir vencer. Vejo uns meninos querendo fama, dinheiro, poder e mulheres. Eu quero poder ajudar minha mãe. Quero dar orgulho para ela. A senhora me ajuda, Doutora? Preciso muito estar com a cabeça boa para isso.

Academia B - Diário de Campo, agosto de 2014.

O desenho de Alan talvez endossasse seu pedido de ajuda. Era uma forma de retribuir minha escuta e meu interesse por sua história de vida. Chamou-me também atenção a colocação de Alan sobre outros atletas que buscam fama, dinheiro, poder e mulheres. Então, pergunto:

Juliana: Os meninos a que você se refere são atletas daqui? Que querem fama, dinheiro,

poder e mulheres?

Alan: Daqui? Não! É o que a gente vê na TV e em outras academias que passei. Se

alguém pensar assim aqui, o professor corta rapidinho. Não que os meninos não queiram ser famosos, ter carro, ter mulheres, mas é que isso não é o mais importante, sabe? Todo mundo tem uma história triste para contar, tem um motivo para lutar. Somos uma família aqui. Aqui é minha família.

Academia B - Diário de Campo, agosto de 2014.

Logo após essa conversa Alan competiu e ganhou a segunda luta de sua carreira. E quem eram os “meninos” aos quais Alan se referiu? Quem eram os trabalhadores-atletas?

a) Marcelo: tinha pai, mãe e irmãos. Sua infância foi marcada por constantes agressões vindas do pai, o que gerou intensos conflitos entre eles em sua adolescência. Nessa fase, seus amigos estavam vinculados à criminalidade e, principalmente, ao tráfico de drogas. Começou a usar drogas e a colaborar com o crime. Em determinada ocasião, quando estava drogado, visitou um local de lutas e, gradativamente, começou a se envolver com o esporte e a se distanciar das drogas e da criminalidade. Ganhou destaque nas lutas e fez do MMA sua profissão. Era rigoroso com os demais atletas e não tolerava indisciplinas na Academia B, da qual era o atleta principal.

b) Fernando: tinha pai, mãe e irmãos. Dois de seus irmãos estiveram envolvidos com o crime, e uma irmã continuava presa na ocasião desta pesquisa. Relacionou-se também com o tráfico e foi usuário de drogas. Desde cedo se considerava talentoso no esporte, tanto é que foi no MMA que conseguiu se distanciar da criminalidade. Sonhava em conseguir um contrato em uma liga de MMA de expressividade para conseguir se casar com sua noiva.

c) Ogro: era filho de pais separados e tinha um irmão mais velho. Sua mãe vivia em uma comunidade de São Paulo, mas possuía transtornos psiquiátricos. Morava com o pai e a madrasta que, segundo ele, tentava sempre coagi-lo e colocá-lo contra o pai. Havia perdido, há cerca de dois anos, o irmão mais velho, vítima de câncer. Logo após esse fato, o pai descobriu também um câncer e estava em tratamento. Dedicava-se ao MMA com afinco. Dizia ser um “sobrevivente” e que não se via fazendo outra coisa. Para ele, o MMA era seu trabalho, e a Academia B, sua família.

d) Aurélio: descobriu na adolescência não ser filho do marido de sua mãe. Sua mãe engravidou do amante e suportou viver com o marido por culpa e vergonha, segundo ele. Seu pai biológico e o seu pai de criação o renegavam, o que o entristecia e o fazia se sentir “inferior” a qualquer pessoa. Era divorciado e tinha um filho. Vivia com inúmeras dificuldades

financeiras e frustrava-se por não conseguir prover melhores condições ao filho. Lutava para continuar no MMA, pois já havia passado dos 30 anos e tinha dificuldade para agendar lutas. No entanto, recusava-se a seguir outra profissão, pois nutria um profundo orgulho de ser um profissional de MMA. Era disciplinado nos treinamentos, ajudava o grupo e demonstrava profunda admiração pelo professor.

Mais uma vez aqui explicitamos que as histórias de vida compõem as práticas presentes na academia. Elas não estão lá fisicamente e no mesmo tempo, mas estão vivas e atuando junto quando, por exemplo, um lutador esforça-se além de suas possibilidades, porque é por ali que precisa “vencer na vida”. Porque é ali que se reconhece como trabalhador, tem a possibilidade de sustentar sua família e se distanciar das drogas e do crime.

Um lutador é parte de um grupo que se articula em torno da possibilidade de vencer na vida, por meio do esporte. Vencer na vida não significa ser um ídolo ou milionário, mas garantir o seu sustento e o de sua família. Por isso, ser um atleta vinculado a uma liga importante de MMA é algo esperado e desejado, mas não o único caminho a seguir.

Dr. Hugo: É lógico que gostaria que cada atleta aqui se tornasse um profissional de êxito,

mas eu sei que nem todos vão conseguir. Por isso, aqui eles têm a oportunidade de dar aula também. Meu sonho é colocar meu projeto completo da academia em andamento. Sonho em ter uma escola aqui, ensinando idiomas e coisas básicas, como português e matemática. Que eles possam também aprender outros ofícios. Gostaria de ajudar a muitos outros como o Alan.

Academia B - Diário de Campo, setembro de 2014.

Dr. Hugo partia do pressuposto de que alguns se tornariam atletas de alto rendimento, e outros, não. Inquietava-se assim com o que poderia fazer com os que não conseguissem. Aquele era seu grupo. E isso envolvia complexas relações de cuidado. No entanto, tal como postulado por Jonh Law e Annemarie Mol (2008), o cuidado nem sempre é sentimental e pode ser duro demais. Assim, as indisciplinas, os “estrelismos” (como era comum no linguajar local) ou comportamentos considerados fora da ética do grupo eram severamente punidos. Se alguma falta grave fosse constatada, normalmente culminava com a expulsão do atleta do grupo.

As intensas relações de cuidado estabelecidas entre todo o coletivo presente na Academia B refletiam também quando algum atleta estava em camp. Para que o competidor conseguisse perder o peso, outros seguiam parte da rotina de desidratação, como os duros exercícios realizados na sauna. Era frequente também a presença de todos no dia do evento, vestindo camisetas que carregavam o símbolo e nome da Academia B.

Eis o que os atletas dizem com relação ao envolvimento dos atores com a mídia:

Marcelo: Ontem um canal de televisão veio aqui na academia para gravar uma matéria.

Chato prá caramba. Atrapalha o treinamento, tem que ficar pensando no que vai falar. Academia B - Diário de Campo, setembro de 2014.

Professor Antonio: Vieram uns jornalistas aqui na semana passada (se referindo a uma

reportagem diferente da citada acima). Ah, é importante para a academia mostrar seu nome e nosso trabalho, mas é muito chato. Eu não gosto e não me sinto à vontade.

Academia B - Diário de Campo, novembro de 2014.

Aqui, há um ponto crucial. Se, por um lado, é importante a presença de jornalistas e a exposição nas mídias, por outro, ela pode atrapalhar o foco principal: o aperfeiçoamento do atleta e o trabalho de todos os envolvidos. Quando outros atores entrarem em jogo, poderão trazer instabilidades, mudar as práticas que ali ocorrem e, consequentemente, as versões presentes.

No documento DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL (páginas 123-129)