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AS QUESTÕES DE MÉNON, NO DIÁLOGO MÉNON, DE PLATÃO

Um dos aspectos mais curiosos das questões propostas por Ménon é que, ao contrário de outros temas apresentados ao longo da obra platônica, estas receberam pouca atenção em estudos posteriores. É verdade que o diálogo Ménon tem como tema principal a questão ‘é possível ensinar a virtude?’, e, para respondê-la, há todo um encadeamento argumentativo que passa por vários aspectos fundamentais do pensamento platônico, com especial destaque para a teoria da reminiscência56 e, conseqüentemente, para a tese da imortalidade da alma e da metempsicose. Além disso, o Ménon é um diálogo curto e bastante objetivo, apesar da variedade de temas com os quais lida. Por outro lado, é um fato curioso que as questões que Ménon faz a Sócrates receberam pouca atenção da tradição filosófica, embora pareçam elaborar o problema fundamental em relação ao conhecimento e à sua procura, e, ainda, formularam um ponto de partida para que seja investigada a própria possibilidade do

problema. Sócrates responde aos questionamentos de Ménon com a teoria da reminiscência. Atualmente, seja do ponto de vista filosófico, seja do ponto de vista científico, esta resposta não é considerada aceitável, então, qual a importância de recolocar estas questões neste momento? Para compreender isto, é necessário analisá-las com um pouco mais de atenção.

A primeira questão, ‘como buscarás, Sócrates, aquilo que ignoras totalmente o que é?’57, remete à idéia de que a procura é procura de algo58. Ménon assume como pressuposto, para a questão, que aquele que se empenha na procura de algo, sabe o que está procurando, daí nasce a questão ‘como procurar algo que não se sabe o que é?’. Em que lugar e de que forma se procura algo o qual se ignora o que seja? A segunda questão é mais específica: ‘qual das coisas que ignoras vais propor como objeto da tua busca?’59. Se a primeira questão evocava o obstáculo que advém da procura pelo que não se sabe o que é, a segunda questão remete ao fato de que, entre tantas coisas ignoradas, como saber quais devem ser procuradas?

56 O próprio Mondolfo faz menção ao fato de que, para responder às questões de Ménon, Platão apela para a

teoria da reminiscência: “A solução dada por Platão a este problema baseava-se em sua teoria da reminiscência, isto é, na afirmação da existência de sinais de conhecimentos anteriores, adquiridos pela alma no mundo divino das idéias, contemplado antes de penetrar no corpo; cujo vestígio, logo obscurecido pelo ingresso nas trevas do cárcere corporal, porém, não totalmente eliminado, desperta como recordação parcial, e faz assim surgir outras recordações vinculadas à primeira, se a alma não se cansa de procurar” (1969, p. 29).

57 Tradução livre do trecho citado.

58 Isto recorda a afirmação de Heidegger em Ser e Tempo: “Todo questionamento é uma procura. Toda a procura

retira do procurado a sua direção prévia” (2004, p. 30).

Mas é na terceira questão que reside, aparentemente, o golpe mais duro à pretensão do conhecimento: ‘se, de forma efetiva e clara, encontras ela [aquilo que buscas], como saberás, de fato, que é ela que buscas, considerando que não a conhecias?’60 Como saber que aquilo que era motivo de busca foi encontrado se, de fato, ele era ignorado desde o princípio? O eixo das três questões é o ‘ignorado’, compreendido como aquilo do qual não se tem conhecimento, o ‘desconhecido’ e, portanto, o ‘indeterminado’, o ‘indefinido’. O ‘indeterminado’ se opõe ao ‘determinado’, mas o que é o ‘determinado’? O termo determinar, etimologicamente, significa definir, demarcar, limitar. Definir, por sua vez, etimologicamente, significa limitar, marcar o ‘fim’.61 A noção de definir, então, envolve, também, as idéias de circunscrever e de localizar. Se o ‘desconhecido’ é o ‘ignorado’ e relaciona-se com o ‘indeterminado’, o ‘determinado’ é o ‘conhecido’, compreendido como aquilo ao qual ‘foi estabelecido limites’, foi demarcado, localizado, tornado definido. Neste sentido, o problema proposto por Ménon é o problema do conhecimento, ou seja, ‘como é feita a transição entre o indeterminado e o determinado?’. Ou, ‘como é possível a transição do indeterminado para o determinado?’. É possível, entretanto, avançar um pouco mais e perceber que o problema formulado pelas três questões do Ménon é de fato, o problema do

problema, isto é, ‘como é possível o problema, ou o questionar, ou o indagar, ou o

interrogar?’ O diagrama da figura 1 permite ilustrar este caso.

O diagrama representa o processo de aquisição do conhecimento e as posições ocupadas pela investigação e o problema:

a) o ‘indeterminado’ e o ‘determinado’ são duas condições completamente distintas; b) o conhecimento é compreendido como processo;

c) este processo envolve a transição entre as duas condições (do ‘indeterminado’ para o ‘determinado’);

d) esta transição é feita por uma investigação;

e) esta investigação é iniciada e guiada por um problema ou uma questão (ou conjunto de questões).

60 Idem.

61 Todas as referências etimológicas foram retiradas do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS,

Indeterminado Determinado Transição Passagem •a ignorância; •o desconhecido; •o indefinido;

•o ilimitado (ou não-limitado); •o inapreensível. •a sapiência; •o conhecido; •o definido; •o limitado; •o apreensível. Investigação (processo de conhecer) PROBLEMA (início e guia)

O problema estabelece contornos (limites) e caminhos para a investigação.

Qual o fundamento que permite ao problema começar e guiar uma investigação? Indeterminado Determinado Transição Passagem •a ignorância; •o desconhecido; •o indefinido;

•o ilimitado (ou não-limitado); •o inapreensível. •a sapiência; •o conhecido; •o definido; •o limitado; •o apreensível. Investigação (processo de conhecer) PROBLEMA (início e guia)

O problema estabelece contornos (limites) e caminhos para a investigação.

Qual o fundamento que permite ao problema começar e guiar uma investigação? Indeterminado Determinado Transição Passagem •a ignorância; •o desconhecido; •o indefinido;

•o ilimitado (ou não-limitado); •o inapreensível. •a sapiência; •o conhecido; •o definido; •o limitado; •o apreensível. Investigação (processo de conhecer) PROBLEMA (início e guia)

O problema estabelece contornos (limites) e caminhos para a investigação.

Qual o fundamento que permite ao problema começar e guiar uma investigação?

O caráter problemático deste cenário está relacionado ao fato de que se supõe que, sem ter acesso ao ‘determinado’, seja possível formular um problema ou questão que servirá de ponto de partida e de guia para uma investigação. Em outras palavras, como formular adequadamente um problema, se a condição de quem o formula é a da ignorância, então, ‘Qual o fundamento que permite ao problema ser formulado, para que possa começar e guiar uma investigação?’ Há dois aspectos fundamentais que parecem estar implícitos às questões de Ménon:

a) o primeiro, refere-se ao fato de que, ao fazer os seus questionamentos, ele reconhece a importância de saber o que está sendo procurado, refletindo na condição de importância que é atribuída ao problema;

b) o segundo refere-se ao fato de que estes questionamentos revelam a idéia de que os problemas ou questionamentos possam ser considerados como mediadores do conhecimento.

Retornando ao diálogo, talvez o fato mais surpreendente é que Sócrates discorda dos questionamentos de Ménon, considerando que eles induzem à crença na impossibilidade do

conhecimento62 (ceticismo), mas não responde às suas questões de forma dialética, como em tantos outros momentos da obra platônica: ele primeiramente recorre ao que dizem os ‘sacerdotes e sacerdotisas’ e ‘Píndaro e muitos outros dos poetas divinamente inspirados’, trazendo como resposta a tese da imortalidade da alma e a teoria da reminiscência. (1988, Vol. II, p. 301). De forma mais simples, a resposta que Sócrates dá à questão ‘Qual o fundamento que permite ao problema ser formulado, para que possa começar e guiar uma investigação?’ é a teoria da reminiscência, vinculada à imortalidade da alma e à sua contemplação prévia das Formas, antes de sua vinda ao mundo sensível, ou seja, aprender ou conhecer são formas de recordar (anamnese). No diálogo Teeteto, Teeteto e Sócrates discutem longamente acerca do que é o saber e, apesar de o diálogo acabar de forma aporética63, eles não põem em questão a possibilidade do saber64 e, menos ainda, da formulação de problemas: o saber é pressuposto e não questionado. Deixando de lado o fato de que há vários aspectos da obra de Platão sobre os quais os estudiosos se debruçam e que ainda não desfrutam de consenso, é possível afirmar, como tese geral, de que a Teoria das Idéias e a imortalidade da alma, extensamente apresentadas em diálogos como A República e Fédon, exercem um papel fundamental, assim como no Ménon, de alicerce epistemológico na filosofia platônica.

Por outro lado, seria injusto para com Platão, afirmar que toda a argumentação que faz frente às questões de Ménon é de caráter mítico-religioso, como destaca Reale (1994, Vol. II, p. 154). De fato, no primeiro momento, Sócrates apela para este tipo de saber, porém, em seguida, ele demonstra, através do diálogo com um escravo, que este possui conhecimentos de geometria que não aprendeu anteriormente, invertendo a estrutura de sua argumentação, como comenta Reale:

Logo depois, porém, no Ménon, as partes são exatamente invertidas: o que era conclusão torna-se interpretação especulativa de um dado de fato experimentado e comprovado, enquanto o que era antes pressuposto mitológico, com a função de fundamento, torna-se, ao invés, conclusão. (1994, Vol. II, p. 154).

62 “¿Te das cuenta del argumento erístico que empiezas a entretejer: que no le es posible a nadie buscar ni lo que

sabe ni lo que no sabe? Pues ni podría buscar lo que sabe – puesto qui ya lo sabe, y no hay necesidad alguna entonces de búsqueda – ni tampoco lo que no sabe – puesto que, em tal caso, ni sabe lo que ha de buscar.” ( 1993, Vol. II, p. 300).

63 Neste diálogo, Sócrates investiga com Teeteto três definições de saber, descartando-as todas no final, o que

aponta este diálogo como aporético, ou seja, não há a elaboração de uma definição positiva de saber. Entretanto, deve ser ressalvado que, antes de terminar a discussão, Sócrates reconhece o valor da investigação realizada, no sentido de estabelecer a inadequação das definições que foram investigadas (definições negativas): “Sócrates: ¿No nos dice nuestro arte de partear que todo esto há resultado ser algo vacío y que no merece nuestro cuidado? Teeteto: Sin duda alguna. Sócrates: Pues bien, Teeteto, si, después de esto, intentaras concebir y llegaras a conseguirlo, tus frutos serían mejores gracias al examen que acabamos de hacer, y si quedas estéril, serás menos pesado y más tratable para tus amigos, pues tendrás la sensatez de no creer que sabes lo que ignoras” (1988, Vol. V, p. 316).

O detalhe principal a ser destacado é algo sutil e que, sob certo aspecto, já é apontado por Sócrates a Ménon, quando responde aos seus questionamentos: não há uma transição radical, como suposta pelas questões de Ménon, entre o indeterminado e o determinado. Em outras palavras, no processo de conhecimento, não se parte do estado de total ignorância para o estado de sapiência. No caso específico deste diálogo, o ponto do qual se parte é a contemplação das Formas, ocorrida em um momento anterior à vida no mundo sensível e da qual os indivíduos guardam uma lembrança maior ou menor, ou seja, não há a ignorância total ou a indeterminação absoluta, como se o desafio consistisse em estabelecer uma luz em meio às trevas absolutas: não há a condição de trevas absolutas.

Os questionamentos de Ménon são aporias e, assim como todas as aporias, adquirem o caráter aporético na sua formulação na linguagem e no tratamento lógico que recebem. Freqüentemente as aporias se desfazem quando são comparadas com o mundo concreto das ações e de seus efeitos. Apesar de isto não descaracterizar a importância e a profundidade das questões propostas por Ménon, aponta para algo que o próprio Platão, na ‘voz’ de Sócrates, pressupõe: no processo de ‘conhecer’ (e nos problemas que a ele estão atrelados), sempre se parte de algo e deste algo se possui algum conhecimento. Este é um aspecto fundamental que será retomado adiante, entretanto, para prosseguir, é necessário reconhecer que, até este ponto, não foi feita nem uma definição objetiva do que é um problema e nem foi feita a distinção com uma questão. Neste sentido, a abordagem de Aristóteles, no seu Órganon65é mais precisa e objetiva em relação ao uso dos termos e aos seus significados.