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INVESTIGAÇÃO E TRATAMENTOS DE DADOS

3. As recomendações médicas e os quotidianos

O impacto da doença na vida de todos os dias tem sido um campo de estudo importante na sociologia da saúde e da doença procurando compreender as fontes de suporte e interações do doente, a forma como os doentes gerem a doença integrando- a nos seus quotidianos (Pierret, 2003). Contudo, são menos frequentes os estudos sociológicos que se debruçam sobre as implicações das recomendações médicas nas vidas do dia-a-dia dos doentes crónicos.

Quando perguntado aos entrevistados em quê e como se alterou o seu quotidiano, hábitos e rotinas devido à doença, os discursos revelam uma tendência para minimizar os efeitos de mudança que a hipertensão provoca ou provocou nas suas vidas. Este dado é similar ao encontrado noutros estudos recentes com doentes com patologias crónicas (Queirós, 2013).

A afirmação da normalidade dos quotidianos é um aspeto fundamental evidenciado em grande parte das narrativas recolhidas. Segundo Arthur Frank (1997) estas podem ser consideradas como “narrativas de restituição”57. Isto é, narrativas que permitem às pessoas compreenderem a doença através das suas visões do mundo e rotinas, adaptando-a da melhor forma possível a um contexto sociocultural pautado por valores de independência e autonomia.

A hipertensão, enquanto doença crónica e cujas causas passam por fatores ligados aos estilos de vida, entre outros, requer que olhemos com atenção para os quotidianos. A gestão da doença pelo doente trouxe ao doente uma responsabilização acrescida no que respeita a gerir a sua própria doença através da alteração dos modos de vida e das práticas rotineiras, ou seja alterando os seus hábitos quotidianos sobretudo relativamente aos consumos alimentares e prática de exercício físico. A adoção de estilos de vida salutogénicos faz parte das recomendações dadas aos hipertensos, de uma forma ainda mais incisiva do que aquela que é feita com todos nós de modo geral (Conrad, 1994).

Estando estabelecida a ligação com os estilos de vida e sendo a hipertensão algo com que o doente tem de viver e gerir, é importante analisarmos as circunstâncias sociais implícitas na vivência da doença e não apenas o estudo das causas ou relações com a hipertensão. Como refere Strauss, “os doentes no seu trabalho de gestão da doença […] têm também que gerir as consequências da doença sobre a sua organização de vida, as suas relações com os outros e até certo ponto a sua relação consigo próprios” (como referido em Mendes, 2005, p. 46). Assim, o doente tenta sempre preservar as suas inserções habituais nas diferentes arenas sociais, isto é, ele tenta sempre manter a sua intervenção como ator da construção negociada da doença com novos atores, de forma a fazer face ao impacto desorganizador das doenças crónicas. Aqui o doente deverá assumir um papel mais ativo, pois dele se espera não só que, aos primeiros sinais da crise, procure ajuda médica mas também que decida em conformidade e com eficácia, nomeadamente adotando comportamentos que previnam o descontrolo da doença. É este o desafio lançado aos doentes hipertensos.

As estratégias usadas para gerir a doença variam de acordo com a pessoa, a sua herança cultural e condições específicas (tais como níveis de conhecimentos, situação perante o trabalho, local e companhia nas refeições, etc.). As recomendações que foram feitas pelo médico na consulta e que os doentes identificaram nas suas entrevistas como “o que lhes foi dito para fazerem”, o que o médico lhes recomendou, passam sempre pela alimentação, pelo exercício físico regular e toma correta da medicação.

Entretanto, vim e fizeram-se aqui os exames que tínhamos a fazer e começámos com medicação que o doutor me receitou, pronto, e tentou-me também corrigir a nível de alguma alimentação. Incentivou-me sempre para fazer um pouco de desporto, isso é uma coisa que às vezes não me dá, não é tão, tão fácil de se conseguir fazer. Desde aí até agora tenho andado a ser medicado. (Filipe, 41 anos, 3º Ciclo)

A argumentação médica, sendo compreendida, é refeita, adaptada, moldada pelos doentes recorrendo a argumentos assentes em quotidianos e racionalidades diferentes das utilizadas na clínica. A regulação do corpo das pessoas com hipertensão

parece assim ocorrer em planos que se interpelam mutuamente: a consulta e o controlo médico; os quotidianos e o autocontrolo. A exigência de disciplina e regras de conduta, ditadas pelo regime médico, são constantemente questionadas e negociadas não no espaço do consultório mas das práticas dos doentes. Como refere Myfanny Morgan (1991), e como pudemos constatar, raramente o doente questiona as recomendações do médico na consulta, antes mantêm a aparência de serem «bons doentes».

3.1. A terapêutica farmacológica

No final da II Guerra Mundial não havia ainda uma medicação hipotensora efetiva. O primeiro fármaco (pentaquine) é noticiado em 1946, tendo sido descoberto de forma fortuita em testes de controlo de preparados anti-malária (Postel-Vinay, 1996, p. 123). A disponibilização de fármacos hipotensores, diuréticos, marca um ponto de viragem na história do tratamento da hipertensão, finalmente com um tratamento oral efetivo disponível.

Como já foi dito, a terapêutica farmacológica é muito expressiva no tratamento da hipertensão no nosso país. Ao longo das entrevistas os doentes mencionam os vários fármacos que tomam, como os tomam e com que finalidade.58 Este mencionar da terapêutica farmacológica não é isento de dúvidas, dificuldades de identificação de quais os comprimidos e para quê, quais os que se tomavam antes e os que se passou a tomar. Sendo a maioria destas pessoas doentes com multipatologias são muitos os medicamentos consumidos, como podemos constatar na observação da consulta, e existe já um longo historial de medicação, porém, apesar disso, os doentes revelam muitas dificuldades quer em relação ao conhecimento da terapêutica quer ao processo de adesão ao tratamento.

Os nomes dos medicamentos, muitas vezes, são confusos e difíceis de pronunciar pelos entrevistados.

58 O uso simultâneo de vários fármacos tem sido abordado com o conceito de polimedicação e é

reconhecido como um problema na população idosa portuguesa. Sobre este assunto consultar, por exemplo, Ferreira (2007); Santis (2009); Santos & Almeida (2010).

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