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CAPÍTULO IV – D ANTÔNIO FERREIRA VIÇOSO E A PRÁTICA ULTRAMONTANA NA PROVÍNCIA DE

2. Conflitos e contradições: A reforma de D Antônio Ferreira Viçoso

2.2. As reformas ultramontanas e a flexibilização da ortodoxia

Ao observarmos o movimento de reestruturação do seminário, podemos ser convencidos de que toda a formação eclesiástica se pautaria na ortodoxia católica. O pesquisador Maurílio Camello enfatizou que no processo de reforma daquele instituto o

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As informações utilizadas na confecção deste quadro foram retiradas do livro Arquidiocese de Mariana. Ver: TRINDADE, Cônego Raimundo. Arquidiocese de Mariana. Subsídios para a sua história. 2. ed. Belo Horizonte: Imprensa oficial, 1953. v. 1, p. 202-207 e 236-250.

517 Ronald Polito apresenta o número de 140 ordenações de D. Frei José. Maurílio Camello, por sua vez,

bispo censurou livros que traziam ideias jansenistas ou galicanas e adotou obras de autores comprometidos com a ortodoxia tridentina e com vinculação à Santa Sé, especialmente na disciplina de Teologia Moral e Dogmática518. No entanto, percebe-se que as modificações não conduziram a grandes mudanças na formação intelectual e dogmática. Para exemplificar essa observação, basta analisarmos os livros que foram empregados naquele educandário após a reformulação imposta por D. Viçoso.

O manual de Teologia Dogmática adotado no Seminário de Mariana era de autoria de Jean Baptiste Bouvier (1783-1854). Esse intelectual católico, professor do seminário de Mans e bispo da mesma diocese na França, ganhou prestígio após a publicação dos livros Institutiones Theologicae e Institutiones Philosophicae, ambos escritos para serem utilizados na formação sacerdotal. Apesar de ser considerado um autor ultramontano, seu compêndio de filosofia foi acusado, em meados do século XIX, de manter princípios galicanos. A partir dessa constatação, Maurílio Camello concluiu que Bouvier não agradava a todos os ultramontanos519.

A percepção de que a obra de Bouvier mantinha princípios galicanos ilustra aquilo que desejamos enfatizar nesta tese. O ultramontanismo não é um processo homogêneo, fixo e padronizado, mas um lugar de variadas perspectivas de ideias e de práticas.

Ao percebemos que a ação reformadora de D. Viçoso mantém elementos alheios aos interesses da Cúria Romana, podemos concluir que não é possível aplicar a ortodoxia católica sem levar em conta as negociações e assimilações que envolvem esse processo. Tal situação é perceptível quando analisamos o preparo dos sacerdotes.

Segundo Sérgio Miceli, antes de serem ordenados como sacerdotes, os seminaristas eram submetidos a um processo conhecido como de genere et moribus520, que visava investigar a origem familiar e os costumes daqueles que seriam os futuros padres. Após todo esse processo de formação, a ordenação ocorria em cerimônias solenes realizadas por algum bispo521.

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CAMELLO, Maurílio José de Oliveira. Dom Antônio Ferreira Viçoso e a Reforma do Clero em Minas Gerais. 1986. 354 f. Tese (Doutorado) – FFLCH, USP, São Paulo, 1986.

519 Ibidem, p. 351-352.

520 O processo de genere et moribus era a maneira utilizada pelas autoridades eclesiásticas para

investigarem a origem social dos seminaristas. Visava descobrir se o candidato era filho legítimo e se o comportamento moral, anterior ao ingresso no seminário, era saudável. Eram interrogados o padre da paróquia da qual saiu o seminarista e as pessoas consideradas desinteressadas, isto é, que não fossem parentes ou amigos próximos. Cabia ao Vigário Geral julgar os processos. Ver MICELI, Sérgio. A elite eclesiástica brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 31-32.

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Ao investigar o processo de seleção e formação dos seminaristas em Mariana, o pesquisador Germano Moreira Campos enfatizou que as reformas realizadas por D. Viçoso garantiram o maior rigor na admissão dos candidatos, que passaram a ter suas vidas investigadas ao serem obrigados a apresentar a carta de recomendação de um padre e os documentos que comprovavam sua filiação legítima522. No entanto, a conclusão desse autor é precipitada, uma vez que o processo de genere et moribus não era uma novidade em Mariana, sendo uma orientação conciliar que, naquela época, já possuía quase 300 anos. Além disso, muitos candidatos conseguiram ingressar no seminário sem entregar essa documentação, uma vez que nem todos se destinavam ao sacerdócio.

Os argumentos de Sérgio Miceli e Germano Campos tentam demonstrar que a formação religiosa do Seminário de Nossa Senhora da Boa Morte em Mariana seguia normas rigorosas que investigavam os antecedentes dos futuros padres. Contudo, os livros de matrículas do Seminário de Marina523 demonstram uma realidade diferente.

Nesse documento, notamos a presença de dois filhos declarados ilegítimos, mas esse número pode ser muito maior, uma vez que dos 63 seminaristas que ingressaram no Seminário de Mariana entre 1844 e 1848, 49 o documento não descreve se eram ou não filhos legítimos. Se considerarmos que a ausência do relato pode significar que tais estudantes não advinham de relacionamentos ilícitos, o número de ilegítimos chega a 51, de um universo de 63524. Esse fato demonstra que não existia preocupação em observar a pureza do nascimento525. Para facilitar o entendimento, disponibilizamos o Quadro 4 do Anexo.

Os dados apresentados demonstram que tanto a análise de Sérgio Miceli quanto a de Germano Campos supervalorizam as ações ultramontanas. Mesmo com a intervenção de D. Viçoso, os seminaristas entravam com idade mais avançada, passavam pouco tempo em estudo e muitos filhos ilegítimos foram admitidos. A

522 CAMPOS, Germano Moreira. Ultramontanismo na Diocese de Mariana: o governo de D. Antônio

Ferreira Viçoso (1844-1875). 2010. 152 f. Dissertação (Mestrado) – ICHS, UFOP, Mariana, MG, 2010.

523 AEAM. Livros do Seminário. Matrícula do Seminário (1844-1848), folha 81v-109.

524 De acordo com Paulo Pereira Castro, a filiação ilegítima não era rara entre os padres seculares do

Brasil. Era hábito enviar para os seminários os filhos naturais (ilegítimos), na tentativa de que a condição de religioso apagasse o problema da origem ou criasse uma qualificação social satisfatória para alguém que seria considerado bastardo. Cf. CASTRO, Paulo Pereira. A experiência republicana. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de; CAMPOS, Pedro Moarcyr (dirs). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico tomo II. Dispersão e unidade. São Paulo: Difel, 1971. v. 2, p. 45.

525 Ver OLIVEIRA, Gustavo de Souza. Entre o rígido e o flexível: D. Antônio Ferreira Viçoso e a

existência de uma regra que exigia o processo de avaliação do candidato não significa que essa era realizada.

Para o pesquisador Maurílio Camello, D. Viçoso cumpriu as determinações do Concílio tridentino acerca da filiação legítima dos sacerdotes, tanto que exigiu que os candidatos apresentassem um questionário conhecido como Publicanda, que deveria ser preenchido pelo padre da paróquia onde vivia. Nessa ficha, os vigários informavam as condições de nascimento dos candidatos ao sacerdócio526. No entanto, parece-nos que esse documento não era algo indispensável, pois o próprio D. Viçoso não demonstrava incômodo com a existência de padres de filiação ilegítima. Em 1873, encontrava-se debilitado fisicamente e necessitava de religiosos que o auxiliassem. O internúncio Sanguini Domenico solicitou que o governante episcopal enviasse o nome de religiosos que poderiam atuar como seus coadjutores. Cumprindo essa exigência, foram indicados quatro sacerdotes: o cônego José Joaquim da Fonseca Lima, o Pe. Dr. Benevides, o Pe. Joaquim de Oliveira Lanna e o Pe. José Maria Ferreira Velho. Os dois primeiros moravam no Rio de Janeiro e eram figuras conhecidas do internúncio. Os dois últimos foram apresentados pelo próprio Bispo de Mariana. José Lanna foi descrito como um religioso com passagem pelo colégio do Caraça e que atuava como cura do Convento das Macaúbas, em Minas Gerais. José Maria Velho foi caracterizado como ex-aluno do Caraça que exercia a função de auxiliar na Paróquia de Barbacena. Acerca desse religioso, acrescentou a informação de que era filho ilegítimo527.

A indicação dos padres José Lanna e José Maria causou espanto até mesmo aos pupilos de D. Viçoso. Em carta enviada à Domenico Sanguinino, em setembro de 1873, D. Pedro Maria de Lacerda, Bispo do Rio de Janeiro, ratifica a opinião dada pelo Pe. Silvério Gomes Pimenta. Para esses sacerdotes, o Pe. Lanna tinha contra ele o fato de ser pardo. Já a oposição ao nome do Pe. José Maria estava centrado em seu temperamento, descrito como “cabeça quente”528

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Sanguini Domenico pediu informações ao lazarista João Batista Cornagliotto, reitor do Seminário de Mariana, sobre os dois religiosos desconhecidos. Na resposta, José Lanna foi considerado um religioso de boa conduta e com deficiência na formação eclesiástica, pois estudou no Caraça em momento anterior ao Seminário.

526 CAMELLO, Maurílio José de Oliveira. Op. Cit., p. 317-318. 527

ASV, Cidade do Vaticano; Fundo: ANB; Fasc. 191; Doc. 11; Página 20. Carta escrita por D. Antônio Ferreia Viçoso e enviada ao internúncio Domenico Sanguini em 17 de janeiro de 1873.

528 ASV, Cidade do Vaticano; Fundo: ANB; Fasc. 191; Doc. 11; Página 27. Carta de D. Pedro Maria de

Novamente, enfatizou-se o problema decorrente da cor da pele. Sobre José Maria, João Cornagliotto tratou como incompreensível a indicação do primeiro, que seria de gênio difícil e sem competência para atuar como auxiliar episcopal529.

A cor da pele e o comportamento dos eclesiásticos foram elencados como problemas que impediriam que os sacerdotes assumissem a função de coadjutor episcoapal, todavia a filiação ilegítima de José Maria Velho não foi tratada como empecilho pelos religiosos consultados nem pelo internúncio. Esse fato ratifica que o processo de genere et moribus não era respeitado em todos seus quesitos, e a filiação ilegítima dos sacerdotes era tão comum que a ninguém espantava. Além disso, as

Constituições primeiras da Arquidiocese da Bahia previam a possibilidade de dispensa

de irregularidade de nascimento, como veremos mais adiante.

No decorrer deste capítulo, temos demonstrado que as mudanças instauradas por D. Viçoso no Seminário de Mariana e na diocese não proporcionaram obediência total às normas romanas. Com isso, percebemos que o projeto ultramontano não ocorreu como algo coerente e padronizado, pois alterações e assimilações eram necessárias para viabilizar o processo. Em uma sociedade, em que existiam muitos filhos fora do matrimônio, era de se esperar que a situação refletisse na esfera religiosa, mas esse não foi o único ponto de flexibilização. O tempo de estudos também precisou ser adequado dentro daquela realidade.

3. A reforma ultramontana: formação e atuação dos clérigos