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CAPÍTULO II – RELIGIÃO E POLÍTICA: OS CAMINHOS DO CLERO SECULAR E REGULAR EM PORTUGAL

2. O Brasil e a Santa Sé: o clero liberal e as questões constitucionais

O historiador Guilherme Pereira das Neves afirmou que, após a emancipação e a criação da Constituição imperial, rompeu-se com os termos jurídicos que formavam a estrutura eclesiástica no Brasil. Apesar de a Constituição garantir o catolicismo como religião oficial, não existia nenhum documento que assegurava ao monarca os benefícios de padroeiro. Era necessário solucionar essa questão para, assim, nomear cargos eclesiásticos, normatizar as ordens regulares e cobrar os dízimos. Sem o acordo, caberia ao Imperador tomar essas decisões, o que geraria um problema diplomático com o papado350.

A confirmação ou não da Santa Sé acerca dos benefícios do padroado pouco ou nada incomodava a maioria dos políticos. Contudo, o Império do Brasil não tinha o interesse em romper com o papado, uma vez que a boa relação com aquele governo contribuiria para que outras nações reconhecessem o novo Estado. Dessa forma, negociar com a Cúria romana significava, também, executar uma estratégia política.

Foi com esse objetivo que D. Pedro I enviou a Roma o Mons. Francisco Correia Vidigal351. A finalidade da viagem era fazer que o pontífice admitisse o Brasil

348Constituição de brasileira de 1824. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 10 dez. 2013.

349

SOUZA, Françoise Jean de Oliveira. Op. Cit., p. 321-322.

350 NEVES, Guilherme Pereira das. A religião do Império e a Igreja. In: GRINBERG, Keila; SALLES,

Ricardo. O Brasil Imperial (1808-1831). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. v. 1, p. 396-397.

351

SILVA, Joelma Santos da. Por Mercê de Deus: Igreja e política na trajetória de Dom Marcos Antônio Sousa (1820-1842). 2012. Dissertação (Mestrado) – Centro de Ciências Humanasda UFMA, São Luís, 2012. p. 96.

como nação independente352. Fato que ocorreu apenas após Portugal admitir a autonomia de sua ex-colônia. Assim, duas bulas foram expedidas, Sollicita Catholicis (1826), que transformava em diocese as prelazias de Goiás e Mato Grosso e indicava os bispos e prelados; e Praeclara Portugalie (1827), que agraciava o monarca com poderes de padroeiro semelhantes aos que usufruíam os reis portugueses353.

Esses documentos foram motivo de discussão na Assembleia Geral. Na sessão do dia 13 de julho de 1827, o deputado José Clemente Pereira fez um longo discurso acusando as bulas de ferirem o direito público brasileiro. Para ele, a concessão papal ao imperador ofendia a monarquia, pois essa autoridade já havia sido definida na constituição354. Além disso, o deputado entendia que o Papa não possuía legitimidade para indicar os cargos eclesiásticos, e existia apenas um costume, fortalecido por Bonifácio VIII e Clemente V, que retirou dos bispos o direito de nomeação eclesiástica. Nessa interpretação, a Cúria Romana não poderia conceder mercê do que não tinha, pois o poder de padroeiro era exercido pelos reis portugueses antes mesmo da autorização do soberano católico355:

Por um breve de Leão X, a el-rei D. Manoel, confirmou este papa todos os direitos do padroado real dos reis de Portugal e note-se que confirmar não é conceder; e se a cúria romana, no principio do século XVI, se não atreveu a dizer àquelle rei, que lhe fazia mercê do direito de nomear bispos, empregando a expressão – confirmar – como aparece esta novidade no século XIX?356

Os clérigos seculares (de tendência antiultramontana) que compunham o Parlamento brasileiro também se manifestaram contrários à interferência da Santa Sé na política nacional. Na reunião de 13 de julho de 1827, o Pe. Diogo Antônio Feijó tomou a palavra e argumentou que as bulas continham disposições gerais, isto é, decisões que afetavam a nação como um todo. Uma dispensa matrimonial ou uma concessão para montar um oratório seria uma disposição particular, em que o pontificado poderia resolver sem a intromissão do poder civil. Todavia, a instituição de bispados dizia

352

SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Os ultramontanos no Brasil e o regalismo do segundo império (1840-1889). 2010. Tese (Doutorado) – Faculdade de História e bens culturais da Igreja da Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, 2010. p. 72.

353 NEVES, Guilherme Pereira das. Op. Cit., 2011, p. 396-397.

354 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 13 de julho de 1827. Brasília: Câmara dos

Deputados, 2014. p. 147-149. Disponível em: <http://camara.gov.br>. Acesso em: 9 jul. 2014.

355 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 13 de julho de 1827. Brasília: Câmara dos

Deputados, 2014. p. 147-149. Disponível em: <http://camara.gov.br>. Acesso em: 9 jul. 2014.

356 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 13 de julho de 1827. Brasília: Câmara dos

respeito aos interesses de todos e não poderia ficar na dependência da vontade da Igreja357.

O deputado e Bispo do Maranhão, D. Marcos, contestou a decisão parlamentar que optou pela reprovação da bula papal. Para esse governante episcopal, aquele documento não contrariava a Constituição imperial, pois as atribuições repassadas ao monarca visavam apenas proteger a Igreja, pois uma lei criada dentro de um país não poderia garantir poderes que competiam à Santa Sé outorgar. Mesmo com essa oposição, a Assembleia conseguiu aprovar o parecer da Comissão Eclesiástica no dia 29 de outubro de 1827. Assim, o padroado passou a ser entendido como privilégio civil358.

Joelma Santos da Silva considerou que as discussões acerca das bulas papais deram mostras do conflito entre uma elite religiosa regalista e outra ultramontana que prevaleceria durante o século XIX359. É relevante destacar que os integrantes desses grupos não detinham coesão de pensamento. Entre os denominados ultramontanos, percebemos posicionamentos distintos. Para D. Antônio Ferreira Viçoso, a participação eclesiástica na política era algo condenável, pois “o pároco político é a peste do seu rebanho”360

. Já para D. Marcos e D. Romualdo Seixas os cargos políticos não interferiam no trabalho episcopal, sendo eles mesmos parlamentares.

Em uma nação que iniciava sua experiência legislativa, as publicações papais causavam conflitos de interesses, mas não eram os únicos incômodos do Estado que se construía. A Mesa da Consciência e Ordens, instalada no Rio de Janeiro no ano 1808, gerou discórdia parlamentar. Esse tribunal foi estabelecido em Portugal pelo rei D. João III no ano 1532. Sua função era tratar dos assuntos relativos ao alívio da consciência real, por isso a denominação Mesa da Consciência. No ano 1551, as três ordens militares foram assumidas pela Coroa e a Mesa incorporou os assuntos referentes às Ordens de Cristo, Santiago de Espada e São Bento de Avis, passando a ser conhecida como Mesa da Consciência e Ordens361.

357 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 13 de julho de 1827. Brasília: Câmara dos

Deputados, 2014. p. 149. Disponível em: <http://camara.gov.br>. Acesso em: 9 jul. 2014.

358

SILVA, Joelma Santos da. Op. Cit. p. 100-104; NEVES, Guilherme Pereira das. A religião do império e a Igreja. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil imperial. Volume 1: 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011. p. 398-399.

359 SILVA, Joelma Santos da. Op. Cit. p. 105. 360

Carta de D. Antônio Ferreira Viçoso a um vigário não nomeado em 24 de maio de 1864. Documento presente no livro: SILVA NETO, D. Belchior J. da. Dom Viçoso, Apóstolo de Minas. Belo Horizonte: Impressa Oficial, 1965. p. 195.

361 NEVES, Guilherme Pereira das. E receberá mercê. A mesa da Consciência e Ordens no Brasil (1808-

Com a mudança da família real portuguesa para o Brasil, a administração da Coroa foi reestruturada, sendo os tribunais da Mesa do Desembargo e da Mesa da Consciência e das Ordens instituídos no Rio de Janeiro pelo alvará de 22 de abril de 1808. Ao primeiro competiam todos os assuntos não militares e do Conselho ultramarino. Já o segundo tratava das questões relativas ao clero e ao culto. Compunham esse tribunal o presidente, cinco deputados, teólogos, juristas, um escrivão da Câmara e três escrivães para cada uma das ordens militares. As sessões tinham início com a súplica individual ou coletiva e eram avaliadas pelo procurador geral das ordens, quando tratava de recursos financeiros, e pelo procurador da Coroa e fazenda, sempre que envolviam questões de privilégios do padroado362.

A atuação dessa organização no Brasil compreendia o Arcebispado da Bahia, os bispados do Rio de Janeiro, Olinda, Maranhão, Grão-Pará, Mariana e São Paulo e as então prelazias de Goiás e Mato Grosso. A principal atribuição da Mesa da Consciência e Ordens era o provimento dos clérigos363.

Esse tribunal não teve vida longa após a Independência do Brasil, pois sua existência foi questionada na Assembleia Geral. Guilherme Pereira das Neves considerou que a extinção dessa organização refletia as luzes do século XIX, que almejava encerrar com tudo que carregasse resquícios do absolutismo364.

Na reunião da Assembleia Geral do dia 23 de junho de 1827, o parlamentar Bernardo Pereira de Vasconcellos propôs o Projeto de Lei que extinguia a Mesa da Consciência e Ordens. No seu entendimento, esse tipo de tribunal era típico do século XIV e não cabia mais nos anos oitocentos365. Acreditava que a constituição previa o fim desses conselhos quando instaurado o Tribunal Supremo de Justiça:

[...]. Depois de jurada a constituição, e das leis, que têm feito, estão muito diminuídas as atribuições destes dous tribunaes. É escusado o auxilio, que prestavão ao poder legislativo; a flor da nação junta em assemblea geral não precisa de seus auxílios. O tribunal supremo de justiça, e o conselho de estado exercerão muito melhor boa parte de suas atribuições, [...]. Deste modo se póde já instituir o tribunal supremo de justiça, que tão necessário nos é.

Com effeito a constituição pressupõe a abolição deste, e outros tribunaes á instituição do supremo tribunal, quando manda que os membros deste sejão tirados dos que se houverem de abolir; crear pois

362

NEVES, Guilherme Pereira das. Op. Cit, 1997. p. 43-44; 81-82.

363 Ibidem, p. 60-63. 364 Ibidem, p. 120.

365 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 23 de junho de 1827. Brasília: Câmara dos

este sem abolição daquelles, é manifesta ofensa do direito, que têm os membros dos tribunaes, que se devem extinguir, aos lugares do tribunal supremo.366

Após seu discurso, o parlamentar apresentou um Projeto de Lei que extinguia a Mesa da Consciência e Ordens:

Art. 1º Ficão extinctos, como se nunca tivessem existido, os dous tribunaes do desembargo do paço e da mesa da consciência e ordens. [...]

Art. 3º As consultas sobre negócios contenciosos serão feitas pelo tribunal supremo de justiça, e todas as outras pelo conselho de estado. Art.4º Esta lei restitue aos bispos os direitos inherentes ao episcopado, que erão exercidos pelo tribunal da mesa da consciência e ordens [...]367.

A proposta suprimia os tribunais do Desembargo do Paço e da Mesa da Consciência e Ordens e repassava suas funções para o Tribunal Supremo de Justiça e para o Conselho de Estado. Com isso, os bispos passaram a ter papel fundamental nas decisões episcopais. Com o fim da Mesa, em 22 de setembro de 1828, o Ministério da Justiça passou a ser o responsável por administrar aquilo que Guilherme Neves denominou “padroado nacional”368

.

Ao questionar as bulas papais e ao extinguir a Mesa da Consciência, o poder legislativo demonstrou que almejava diminuir a influência da Igreja romana. Não queriam romper com o catolicismo, mas criar uma condição de subordinação, na qual o Estado pudesse interferir nas questões eclesiásticas. Lutava-se pela instauração de uma política regalista.

Para Françoise Jean de Oliveira Souza, a cultura política brasileira pós- Independência tentou relacionar o catolicismo ao liberalismo, isto é, somar um pensamento político ao quadro religioso da nossa sociedade. Essa autora defendeu que a composição entre a religião e a política formou um grupo denominado “liberalismo cristão e regalista”369

. Todavia, essa mistura entre elementos cristãos e liberais não era característica exclusiva do Brasil. Em Portugal, a presença do Pe. Marcos Pinto Soares Vaz Preto à frente da Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento das Ordens

366 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 23 de junho de 1827. Brasília: Câmara dos

Deputados, 2014. p. 133. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 20 ago. 2014.

367 BRASIL. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão 23 de junho de 1827. Brasília: Câmara dos

Deputados, 2014. p. 133. Disponível em: <www.camara.gov.br>. Acesso em: 20 ago. 2014.

368 NEVES, Guilherme Pereira das. Op. Cit., 2011. p. 401. 369

Regulares, instituição criada, pelo governo liberal, também ilustra o envolvimento de

sacerdotes católicos com os princípios liberais.

A existência desses clérigos, no Brasil e em Portugal, confirma o elevado número de sacerdotes seculares que não compactuavam com um processo de centralização papal. Tal posicionamento era visto, pelos sacerdotes ultramontanos, como um problema decorrente da formação religiosa e que deveria ser corrigido por meio da reformulação dos seminários. Contudo, a opinião daqueles padres não era fruto de má instrução; ao contrário, por conhecerem as doutrinas liberais e regalistas não acatavam todas as determinações da Cúria Romana como premissas370.

Para João Camilo de Oliveira Torres, o surgimento de um clero liberal/regalista deriva do papel desempenhado pelos seminários ao longo dos anos. Em seu ponto de vista, essas instituições eclesiásticas se consolidaram como os únicos lugares de ensino do Brasil. Por esse motivo, muitos dos seus estudantes buscavam formação sem vínculo com a vida pastoral. Tal situação transformaria esses estabelecimentos em institutos a serviço do Estado371.

A opinião de João Camilo Torres possui equívocos que precisam ser contestados. De fato, os seminários eram importantes centros de ensino, mas não acreditamos que tais educandários estavam a serviço do Estado e que, por isso, teriam formado clérigos liberais. Essa suposição é limitada e diminui a formação intelectual daqueles sacerdotes, considerando-os como marionetes nas mãos do poder civil. Parece- nos que esse autor concorda com um discurso ultramontano que julga os padres liberais/regalistas como fruto da perda de controle da Igreja sobre os centros de ensino. Para nós, o surgimento dos clérigos com opinião contrária à Cúria Romana era o reflexo de uma boa formação pautada no conhecimento acerca dos principais teóricos ilustrados, e muitos desses foram destacados políticos do cenário imperial.

3. Políticas liberais versus ordens regulares: as medidas para