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O discurso da notícia: referencial teórico

3.1 As relações entre discurso da imprensa e ideologia

Quando nos referimos ao termo discurso, podemos invocar diversas acepções nas diferentes correntes de estudos acerca da linguagem. Neste trabalho, entretanto, empregamos a proposta de Fairclough (2001:91), que afirma ser o discurso “uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado.” Nesse sentido, o autor assevera que o discurso, como forma de prática social, contribui para a construção das identidades sociais, para construir as relações sociais e para a construção de sistemas de conhecimento e crença, isto é, o discurso representa os sujeitos da enunciação e também representa o mundo desses sujeitos sociais.

Acrescente-se a isso que o discurso contribui também para transformar a sociedade, assim como a sociedade modifica o discurso. Desta forma, discurso e sociedade devem ser vistos numa perspectiva dialética, segundo a qual o discurso não é fonte nem reflexo da estrutura social, mas produto de uma prática socialmente orientada por questões de interesses diversos, dentre os quais o político e o ideológico:

O discurso como prática política estabelece, mantém e transforma as relações de poder e as entidades coletivas (classes, blocos, comunidades, grupos) entre as quais existem relações de poder. O discurso como prática ideológica constitui,

naturaliza, mantém e transforma os significados do mundo de posições diversas nas relações de poder. Como implicam essas palavras, a prática política e a ideológica

não são independentes uma da outra, pois a ideologia são os significados gerados em relações de poder como dimensão do exercício do poder e da luta pelo poder. (Fairclough, 2001:94) (grifos nossos)

Portanto, o discurso, sendo uma prática social de caráter ideológico, contribui para reproduzir as estruturas sociais, bem como para transformá- las, assim como as estruturas sociais contribuem para a reprodução ou transformação do discurso dentro de um momento histórico e social.

Chauí (2001:108) define ideologia como “um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta)” que orienta o pensamento e o comportamento de uma sociedade dividida em classes e que tem a função de explicar as diferenças sociais, políticas e culturais entre essas classes. As ideologias são, pois, um construto das classes dominantes e têm a função de normatizar o comportamento e o pensamento das classes dominadas nas relações de poder.

É por meio da ideologia que as relações de poder que existem nas sociedades são por muito tempo mantidas, porque as classes dominantes, também por meio do discurso, perpetuam as estruturas de poder sobre os dominados. Entretanto, isso não significa que o poder não possa ser rompido, tampouco que as ideologias não possam ser modificadas, e isso

ocorre porque a ideologia também é uma prática social que emerge das relações humanas.

A respeito das relações entre as ideologias e o discurso, Van Dijk (1997:111) afirma:

As ideologias são modelos conceptuais básicos de cognição social, partilhados por membros de grupos sociais, constituídos por seleções relevantes de valores socioculturais e organizados segundo um esquema ideológico representativo de autodefinição de um grupo. Para além da função social que desempenham ao defender os interesses dos grupos, as ideologias têm a função cognitiva de organizar as representações sociais (atitudes, conhecimentos) do grupo, orientando assim, indiretamente, as práticas sociais relativas ao grupo e, consequentemente, também as produções escritas e orais de seus membros.

O discurso é, portanto, uma forma de prática social orientada por ideologias presentes num dado momento histórico e social e a análise de um discurso deve ser feita considerando os processos de produção, distribuição e consumo de textos dentro de uma realidade social específica, e o conjunto desses processos constitui a prática discursiva. Entretanto, de acordo com Fairclough (2001:121), nem todo discurso é ideológico, visto que “as práticas discursivas são investidas ideologicamente à medida que incorporam significações que contribuem para manter ou reestruturar as relações de poder”, isto é, a ideologia estará presente em uma prática discursiva se se evidenciar de alguma forma uma relação de poder e dominação em determinado grupo social.

Referimo-nos aqui à dominação como “o exercício de poder social pelas elites, instituições ou grupos, que resulta em desigualdade, incluindo política, cultural, de classe, étnica, racial ou de gênero”36 e essas relações

poderão ser observadas especialmente na análise do discurso da imprensa escrita, visto que os textos jornalísticos são produzidos dentro de um contexto histórico e social e reproduzem as ideologias vigentes na sociedade.

36 VAN DIJK, Teun A. Principles of critical discourse analysis. 1993, p. 249-50. Dominance is defined here as the exercise of social power by elites, institutions or groups, that results in social inequality, including political, cultural, class, ethnic, racial and gender inequality.

Orlandi (2001:16) afirma que a AD reflete “sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua” e, portanto, trabalha a relação língua-discurso-ideologia. Entretanto, para que um discurso seja analisado conforme propõe a AD, é importante entender a natureza do poder social e da dominação.

O poder envolve o controle de um grupo sobre outros grupos, não somente na limitação da liberdade de ação do grupo dominado, mas também pela influência sobre as mentes dos membros desse grupo, por meio da persuasão, dissimulação ou manipulação, de acordo com os interesses do grupo dominante. A dominação, por sua vez, pode ser representada pelo sutil, pela rotina, pelas formas cotidianas de textos que parecem naturais e aceitáveis e, se as mentes do grupo dominado são influenciadas de modo que aceitem a dominação e atuem conforme orienta o grupo dominante, tem-se a

hegemonia.37

Para uma efetiva análise do discurso da notícia, esses conceitos são muito importantes, porque já faz parte do senso comum a noção de que a mídia pauta a sociedade determinando aquilo que deve ser sabido, discutido ou ignorado pela população, sempre conforme os critérios subjetivos de escolha do que pode ou não ser uma notícia e por quanto tempo um determinado fato deverá figurar no noticiário. Desta forma, temos que a imprensa, por meio de seu discurso, exerce sobre a sociedade uma forma de poder, visto que atende a interesses de grupos dominantes, como, por exemplo, as elites políticas, culturais e econômicas.

O fato é que a sociedade é organizada em classes ou grupos, e entre eles sempre haverá distinção de poder e, por isso, o acesso ao discurso é significativo para a manutenção das desigualdades, isto é, aquele que tiver o maior acesso à informação em todas as suas nuances consequentemente terá maior poder na estrutura social. E porque o discurso da mídia, em todas as suas especificidades, exerce uma forma de controle sobre o que

deve ser levado ao conhecimento da sociedade, a AD apresenta-se como importante instrumento de estudo das relações entre discurso e poder.

De acordo com Van Dijk (1993:257), “discurso, comunicação e outras formas de ação e interação são monitorados por cognições sociais”, assim como nosso entendimento sobre eventos sociais ou sobre instituições sociais e relações de poder também o são38. Isto implica que a compreensão que

temos de determinados discursos está sujeita aos modelos de situação que temos armazenados em nossas memórias, de modo que somos capazes de inferir e de atribuir significados ao discurso. Adiante, no sub-item 3.3.2 deste capítulo, trataremos da questão desses modelos de situação como forma de interação no discurso da notícia.

Dissemos que esta tese nortear-se-á principalmente pela teoria de Van Dijk (1988), que trata da notícia como discurso, à qual associamos outros estudos acerca da estrutura e do discurso da notícia para a constituição de nosso referencial teórico, conforme prossegue.

3.2 Os gêneros informativos notícia e reportagem

A mídia, em geral, exerce grande influência sobre o comportamento da sociedade, determinando padrões de consumo, impondo modismos sociais que devem ser seguidos e também selecionando o que deve ser de conhecimento público ou não e, para isso, utiliza gêneros textuais específicos cujas características contribuem para que os objetivos dos enunciadores sejam alcançados.

Bazerman (2005:38), a respeito dos gêneros textuais, afirma que “essas características estão intimamente relacionadas com as funções principais ou atividades realizadas pelo gênero” e, nesse sentido, é possível afirmar que os textos noticiosos, da forma como são apresentados nos jornais impressos, têm a função de levar o leitor a crer que determinada

38 Discourse, communication and (other) forms of action and interaction are monitored by social cognition. The same is true for our understanding of social events or of social institutions and power relations.

informação seja a expressão da realidade, isto é, a forma de organização e apresentação da informação em uma estrutura que determina, por exemplo, o destaque tipográfico do título e a hierarquização dos fatos que deverão compor o lide induz o leitor a acreditar que tais informações sejam as mais importantes e, portanto, aquelas que devam ser de conhecimento público.

Charaudeau (2006:233-4)39 explica que a forma como se estruturam

as notícias nas páginas de um jornal deve-se às exigências de visibilidade,

legibilidade, inteligibilidade e dramatização, próprias da imprensa. A

exigência de visibilidade determina as formas de apresentação e disposição das notícias no espaço informativo do jornal; a exigência de legibilidade, porque se refere principalmente ao entendimento, determina uma forma de redação acessível ao maior número possível de leitores; a exigência de inteligibilidade trata de esclarecer o porquê e o como das notícias, e a exigência da dramatização, porque é implícita, insinua-se nas formas de redação dos textos e de seus títulos, “dependendo da imagem que o jornal procura fazer de si”. Para o autor, essas exigências não se dissociam entre si, mas se complementam e contribuem para a caracterização dos gêneros da imprensa escrita.

Ainda de acordo com Charaudeau (id.:206-7), os gêneros da imprensa escrita são “o resultado do cruzamento entre um tipo de instância

enunciativa, um tipo de modo discursivo, um tipo de conteúdo e um tipo de dispositivo”, isto é, há um enunciador que transforma um fato em notícia,

conforme sua noticiabilidade, e o divulga em um meio midiático e, consoante às especificidades desses gêneros, poderá haver outras classificações, como reportagem, editorial, crônica, artigos, entre outros. Entretanto, a classificação dos gêneros da imprensa escrita é variável, conforme a corrente de pensamento.

Melo (2003) apresenta as classificações europeias, norte-americanas, hispano-americanas e brasileiras e propõe, para o jornalismo brasileiro, uma classificação dos gêneros da imprensa escrita a partir da divisão do

jornalismo em dois núcleos de interesse: “a informação (saber o que passa) e a opinião (saber o que se pensa sobre o que passa)”. Assim, pois, o autor refere-se a jornalismo informativo e jornalismo opinativo e adota como critérios de classificação o agrupamento dos gêneros de acordo com a intencionalidade dos relatos e a identificação dos gêneros de acordo com a natureza estrutural desses relatos. De acordo com o autor, o jornalismo informativo compreende os gêneros nota, notícia, reportagem e entrevista, e o jornalismo opinativo compreende os gêneros editorial, comentário, artigo,

resenha, coluna, crônica, caricatura e carta.40

O corpus desta tese é composto por textos pertencentes aos gêneros notícia e reportagem, relativos, portanto, ao jornalismo informativo, na classificação de Melo (2003:65), para quem a distinção entre esses gêneros “está exatamente na progressão dos acontecimentos, sua captação pela instituição jornalística e a acessibilidade de que goza o público.” Entretanto, ainda que tenhamos dois gêneros distintos41, ambos pertencem à categoria

dos gêneros informativos e apresentam semelhanças estruturais entre si, sendo possível, pois, analisá-los de acordo com a teoria de Van Dijk (1988), que exporemos ainda neste capítulo.

É importante ressaltar, porém, que Van Dijk (1988)42 não faz distinção

entre esses dois gêneros, porque foca seus estudos em textos noticiosos publicados na imprensa escrita, que trazem novas informações sobre eventos políticos, sociais ou culturais recentes, isto é, refere-se à categoria dos gêneros informativos da imprensa escrita em geral e, para isso, emprega o termo “discurso noticioso” para se referir ao discurso em sua totalidade, incluindo o seu formato físico, e adota o conceito de notícia como “um texto ou discurso no rádio, TV ou jornal, no qual uma nova informação é dada sobre eventos recentes”, embora trate apenas da imprensa escrita.

40

MELO, José Marques de. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro, 2003, p. 44-66, passim.

41 A notícia é o relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social. A reportagem é o relato ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações que são percebidas pela instituição jornalística. Ibidem, 65-6.

No entanto, ainda que não seja possível fazer a distinção precisa entre os dois gêneros, apoiaremo-nos em Lage (2001:114), para quem a notícia é “mais breve, sumária e pouco durável” e a reportagem é “mais extensa, mais completa, mais rica na trama de relações entre os universos de dados”

É, pois, devido às características desses gêneros que propomos realizar uma análise do discurso da imprensa escrita, porque a AD pode revelar os implícitos e as possíveis intenções que subjazem nesse discurso:

Assim como outros tipos de discurso, as notícias deixam muitas coisas sem serem ditas. (...) Diversas formas de implicações semânticas, pressuposições, sugestões e associações têm sido descritas. Elas podem ser inferidas por meio de itens lexicais que trazem a análise para o campo da estilística lexical ou por meio de proposições ou sequências de proposições.43 (Van Dijk, 1988:69)

Muito do que não é dito nos textos noticiosos da imprensa escrita deve-se a critérios subjetivos dos sujeitos que estão envolvidos no processo de construção da notícia, isto é, as instituições que controlam a veiculação da informação e os jornalistas que escrevem a notícia. Esses critérios referem-se aos “valores-notícia”, sobre os quais trataremos no sub-item 3.3.1 deste capítulo. Entretanto, somado a esses valores, há o perfil do leitor instituído como potencial receptor dessa notícia, o qual, no julgamento dos redatores, deverá ser capaz de fazer inferências e, finalmente, compreender a notícia em sua totalidade, orientado pelas proposições iniciais do texto. Assim, pois, estamos nos referindo a um acordo tácito que há entre redatores e leitores, segundo o qual há uma série de saberes e crenças partilhados que permitem a validação desse discurso, que normalmente é orientado por posturas ideológicas socialmente aceitas.

Nesse quadro, a AD nos fornece os subsídios que permitem identificar quais estratégias discursivas são utilizadas pela imprensa escrita para que suas proposições iniciais sejam decodificadas, interpretadas, compreendidas

43 Much like other discourse types, news leaves many things unsaid. (...) Several types of the unsaid semantic implications, presuppositions, suggestions and associations have been described. These may be inferred from single lexical items, which would bring their analysis into the field of lexical stylistic, or from propositions and proposition sequences.

e por fim reproduzidas por seus leitores, a fim de repercutir as posturas ideológicas presentes no discurso.