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3 TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL: DOS PRESSUSPOSTOS DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL ÀS RELAÇÕES SOCIAIS DA ATIVIDADE HUMANA

3.2 AS RELAÇÕES SOCIAIS NA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL

É possível encontrar muitas semelhanças entre o uso de signos e de instrumentos, como conceitos dentro de um conceito mais geral, que é o de

atividade humana mediada. Porém suas diferenças basicamente dizem respeito às

maneiras com que eles orientam o comportamento humano. Enquanto o instrumento conduz a influência humana sobre o objeto – ele é orientado externamente e sugere mudanças no objeto, sendo o meio pelo qual a atividade externa é orientada para o controle da natureza –, o signo é um instrumento psicológico orientado internamente, que não imprime modificação alguma no objeto, é o meio pelo qual a atividade interna é dirigida para o controle do próprio indivíduo. Segundo Leontiev (1978),

as aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material e espiritual que os encarnam, mas são aí apenas postas. Para se apropriar desses resultados, para fazer deles as suas aptidões, “os órgãos da sua individualidade”, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os fenômenos do mundo circundante através de outros homens, isto é, num processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade adequada. Pela sua função, esse processo é, portanto um processo de educação. (LEONTIEV, 1978, p. 290)

Desse modo, Leontiev (1978) enfatiza que a comunicação é fundamental para que o homem se aproprie da cultura, dos resultados advindos das aquisições humanas historicamente constituídas, a partir de sua relação com os outros homens. Assim, compreendemos que os sujeitos se relacionam entre si através da comunicação.

Segundo o autor (1983, p. 15), Marx conferiu um rigoroso sentido materialista à atividade, ao introduzir seu conceito na teoria do conhecimento, pois ele a considerava, em sua forma inicial e principal, a atividade prática sensível, por meio da qual as pessoas entram em contato prático com os objetos do mundo circundante. Complementando suas ideias, o autor afirma que essa é a diferença fundamental entre a teoria marxista sobre a atividade e a idealista, aquela que reconhece a atividade somente na sua forma abstrata e especulativa22.

22 Adjetivo que significa algo que se dedica à teoria sem se preocupar com a prática. “Que é teórico; que diz respeito aos objetos inacessíveis à experiência” (MICHAELIS, 2018).

Para o autor, o trabalho – na concepção marxista – é uma atividade humana fundamental para o desenvolvimento, pois por meio dele desenvolvem-se as relações sociais nas atividades coletivas e determinam-se a utilização e a criação de instrumentos e signos. Na medida em que o homem interfere no ambiente natural, na sua atividade produtiva, ele acaba tomando decisões intencionalmente, produzindo e transformando instrumentos de acordo com as suas próprias necessidades e com as necessidades sociais do grupo.

Vigotski (2007, p. 52) destaca “a invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico. Ele age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho”. A relação entre o trabalho e o uso de instrumentos, abordados anteriormente, nos indica influência do trabalho de Marx na psicologia histórico-cultural e na teoria do conhecimento. A profunda transformação realizada por Marx na teoria do conhecimento consiste

[...] em que a prática humana foi entendida como a base do conhecimento humano, como o processo em cujo curso surgem as tarefas cognoscitivas, se engendram e desenvolvem a percepção e o pensamento do homem e que ademais possui o critério da adequação e da veracidade dos conhecimentos; na prática, diz Marx, o homem deve demonstrar a verdade, a realidade e o poder, o caráter multifacetado de seu pensamento. (LEONTIEV, 1983, p. 15, tradução nossa)

Leontiev (1983) ressalta que, na realidade, o descobrimento filosófico de Marx não consiste apenas em identificar a prática como conhecimento, sem que esse exista fora do processo vital, mas como processo que, por sua natureza própria, é material e prático. Em outras palavras, o reflexo da realidade surge das relações reais da pessoa que exibe a atividade cognoscitiva com o mundo que o rodeia, está determinado pelas relações e, por sua vez, exerce influência inversa sobre seu desenvolvimento. As palavras de Marx e Engels (2007 [1845/1846]23) sobre a

concepção materialista da história afirmam que

em relação aos alemães, que se consideram isentos de pressupostos [Voraussetzungslosen], devemos começar por constatar o primeiro

23 Esta obra reúne desses textos escritos originalmente por Marx e Engels entre os anos de 1845 e 1846. Para o estudo e o entendimento dos autores, também consultamos a obra MARX, K. H; ENGELS, F. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução de José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010 e MARX, K. H. Para a questão judaica. Tradução de José Barata Moura. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

pressuposto de toda a existência humana e também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e algumas coisas mais. (MARX; ENGELS, 2007, p. 32-33, grifo dos autores)

Leontiev (1983) nos auxilia na compreensão das considerações trazidas por Marx e Engels (2007) quando explicita as três premissas da ideologia alemã que constituem elementos fundamentais necessários, três ligações cujas relações dialéticas formam um único sistema que se desenvolve por si mesmo: os indivíduos reais, as atividades deles e as condições materiais de sua vida (Figura 4).

Figura 4 – Premissas do materialismo dialético

Fonte: Sistematização da autora, baseada em Leontiev (1983).

As relações dialéticas entre o indivíduo, sua atividade e as condições materiais da sua vida são importantes para a compreensão de que não é a consciência humana que determina a vida dos homens, mas que é a vida material que determina a consciência.

Desde o início, [...], a consciência já é um produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo tempo, consciência da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente estranho, onipotente e inabalável, com o qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado; é, desse modo, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural)– e, por outro lado, a consciência da necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam constitui o começo da consciência de que o homem definitivamente vive numa sociedade. Esse começo é algo tão animal quanto a própria vida social nessa fase; é uma mera consciência

gregária, e o homem se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no homem, sua consciência toma o lugar do instinto ou de que seu instinto é um instinto consciente (MARX; ENGELS, 2007, p. 35, grifos dos autores).

Marx e Engels (2007), a partir dessas relações, distinguem os homens dos animais principalmente pela consciência, porém tratam que a principal distinção entre eles se inicia quando os homens começam a produzir seus meios de subsistência, devido principalmente ao seu modo de organização corpórea com relação ao resto da natureza. Esta ideia é complementada por Leontiev (1983), que pondera:

Na própria organização corporal dos indivíduos está implícita a necessidade de estabelecer um contato ativo como o mundo exterior, para subsistir devem agir, produzir os meios que necessitam para a vida. Ao influir sobre o mundo exterior o transformam e com isto eles se transformam também. (LEONTIEV, 1983, p. 16)

Assim, Marx e Engels (2007) consideram que, ao criarem os seus meios de subsistência, os homens produzem de forma indireta a sua própria vida material. Esse modo como os homens geram seus meios depende da natureza dos recursos encontrados e a serem aproveitados. É uma forma determinada de atividade desses indivíduos, uma forma particular de exteriorizarem a sua vida, assim como os indivíduos o são, que deve coincidir com a sua produção, com aquilo que produzem e com o modo como o fazem. No entendimento dos autores, aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção.

Ao corroborar as ideias dos autores, Leontiev (1983) considera que tudo o que os indivíduos são está determinado por sua atividade, que, por sua vez, está condicionada pelo nível de seu desenvolvimento para alcançar seus meios e formas de organização. No processo de desenvolvimento dessas relações, o indivíduo desenvolve também o reflexo psíquico da realidade. Segundo o autor,

todo o reflexo psíquico resulta de uma relação, de uma interação real entre o sujeito material vivo, altamente organizado, e a material que o cerca. Quanto aos órgãos do reflexo psíquico, eles são ao mesmo tempo os órgãos desta interação, os órgãos da atividade vital. O reflexo psíquico não pode aparecer fora da vida, fora da atividade do sujeito, obedece às relações vitais que ele realiza, não pode não ser parcial, como parciais são as próprias relações. (LEONTIEV, 1978, p. 93, tradução nossa)

Neste sentido, “a consciência humana distingue a realidade objetiva do seu reflexo, o que a leva a distinguir o mundo das impressões interiores e torna possível o desenvolvimento da observação de si mesmo” (LEONTIEV, 1978, p. 69). Martins (2015, p. 60) nos permite compreender que a consciência, por sua essência, correlaciona-se com a realidade objetiva que se encontra fora dela e, assim, “a base de ligação entre consciência e realidade objetiva encontra-se o nexo entre consciência e atividade”. No dizer da autora, a unidade entre a consciência e a atividade é um dos princípios fundamentais da psicologia.

Leontiev (1983, p. 16), ao tratar esta afirmação de Marx e Engels (2007, p. 93): “A produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real”, concebe que o pensamento e a consciência são determinados pela vida cotidiana real, pela vida das pessoas e existem somente como sua consciência, como produto do desenvolvimento de um sistema estabelecido de relações objetivas.

No entendimento de Marx e Engels (2007), os homens reais e ativos são produtores de suas representações e ideias, condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e pelas relações a ele correspondentes. Desse modo, concluem que os homens desenvolvem sua própria produção material e, ao mudarem sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos dele. Essa forma de conceber a consciência demonstra a oposição do pensamento dos autores em relação à filosofia. Para eles,

a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação direta de seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico (MARX; ENGELS, 2007, p. 93-94, inserções e grifos dos autores).

Por meio dessa analogia com a imagem formada em uma câmera escura (Figura 5), os autores enfatizam que a filosofia alemã que parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, para daí pensar no homem de carne e osso, aquela “desce do céu à terra” e difere em muito da sua concepção: eles partem dos homens realmente ativos e do seu processo de vida real, para deduzir o desenvolvimento dos reflexos ideológicos desse processo, “aqui sobe-se da terra ao céu”.

Figura 5 – Formação da imagem numa câmara escura.

Fonte: http://rede.novaescolaclube.org.br/planos-de-aula/fisica-da-fotografia

Sobre essas afirmações se assenta a perspectiva de Leontiev (1983), segundo a qual a consciência do homem é produto da sua atividade no mundo dos objetos, e essa atividade medeia sua comunicação com outras pessoas e lhe permite realizar o processo de apropriação das “riquezas espirituais” acumuladas pela humanidade. A propósito, para o autor,

o indivíduo é colocado diante de uma imensidade de riquezas acumuladas ao longo dos séculos por inumeráveis gerações de homens, os únicos seres, no nosso planeta que são criadores. As gerações morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa às gerações seguintes que multiplicam e aperfeiçoam pelo trabalho e pela luta as riquezas que lhe foram submetidas e “passam testemunho” do desenvolvimento da humanidade. (LEONTIEV, 1978, p. 267, grifos do autor)

Destarte, as relações sociais estabelecidas entre as pessoas dão lugar à substituição dos objetos na forma de imagens subjetivas na cabeça do homem, na forma de consciência. “Para que na cabeça do homem surja a imagem tátil, visual ou auditivo do objeto, é necessário que entre o homem e o objeto se estabeleça uma relação ativa” (LEONTIEV, 1983, p. 26, tradução nossa), assevera o autor. Assim, podemos concluir que a atividade humana se inicia na forma de processos externos, de contato prático com os objetos, que originam as imagens psíquicas desses.

Como produto desses processos, a realidade objetiva transforma-se em realidade subjetiva.

Leontiev (1983, p. 26, tradução nossa) afirma que “dos processos que realizam a relação ativa entre sujeito e o mundo externo dependem a educação e o caráter completo da imagem”. Dizendo isso, o autor enfatiza que, para explicar cientificamente o surgimento e as particularidades das imagens, não é suficiente estudar o mecanismo e o funcionamento dos sentidos, nem a natureza física das influências exercidas sobre eles, mas é necessário adentrar na atividade do sujeito em sua relação direta com o mundo dos objetos. Para isso, faz-se necessário compreender de modo mais amplo o estudo da unidade do sujeito e do objeto e a natureza histórica e cultural das relações do homem com o mundo dos objetos. Diante do exposto, o autor conclui que não existe, como homem, um indivíduo isolado alheio à sociedade, pois o indivíduo torna-se homem apenas como resultado do processo de sua apropriação da atividade humana.

Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento histórico da humanidade. (LEONTIEV, 1978, p. 267, grifos do autor)

Compreendemos que o pensamento humano também é produto do desenvolvimento histórico e cultural humano, pois é uma forma teórica peculiar da atividade humana decorrente da atividade prática. É na atividade que se dá a transição do objeto à sua imagem, à sua forma subjetiva. Para Leontiev (1983), a atividade do pensamento na sua forma desenvolvida, na forma de pensamento teórico, transcorre sem contato direto com os objetos do mundo material. Assim, “o pensamento teórico de uma pessoa independente não necessita de uma base sensível-objetal justificada, que pode ser representada em sua cabeça de uma forma ideal do reflexo, em forma de conhecimentos acumulados e conceitos abstratos” (LEONTIEV, 1983, p. 32, tradução nossa).

Segundo Martins (2015, p. 37), “a relação entre a apropriação e objetivação ocorre sempre em condições históricas, e, dessa forma, para que os indivíduos se objetivem como seres humanos, é preciso que se insiram na história. Essa inserção dá-se pela apropriação das atividades das gerações passadas”. Para Marx e Engels (2007), a história nada mais é do que a sucessão das diversas gerações, os legados

daquelas que precederam, no sentido que toma a partir das relações com as outras pessoas. Nas suas palavras:

A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações anteriores; portanto, por um lado ela continua a atividade anterior sob condições totalmente alteradas e, por outro, modifica com uma atividade completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui à descoberta da América a finalidade de facilitar a irrupção da Revolução Francesa, com o que a história ganha finalidades à parte e torna-se uma “pessoa ao lado de outras pessoas” (tais como: “Autoconsciência, Crítica, Único” etc.), enquanto o que se designa com as palavras “destinação”, “finalidade”, “núcleo”, “ideia” da história anterior não é nada além de uma abstração da história posterior, uma abstração da influência ativa que a história anterior exerce sobre a posterior. (MARX; ENGELS, 2007, p. 40, grifos dos autores)

Para Saviani e Duarte (2010, p. 426), é através da relação dialética entre a apropriação da atividade humana objetivada na cultura e a objetivação da individualidade, por meio da sua atividade principal, que o homem se forma e se desenvolve como representante do gênero humano.

Em nossa pesquisa, ao buscarmos compreender as relações estabelecidas em uma atividade específica – o Estágio Curricular Supervisionado na formação de professores de Matemática –, procuramos na Teoria da Atividade os aportes teóricos necessários para compreender a relação dialética entre o processo de apropriação e a objetivação de elementos da atividade dos sujeitos para sua constituição como professores.