• Nenhum resultado encontrado

4 A DINÂMICA DAS RELAÇÕES ENTRE OS HOMENS QUE POSSUEM

4.2 AS RELAÇÕES SOCIAIS NO SERTÃO DO RIO PIRANHAS

Neste momento do trabalho são analisadas procurações e nelas é possível perceber o movimento de indivíduos que, quando interessados em zelar seu patrimônio, expediam procurações concedendo direitos a outros para que cuidassem e administrassem seus bens, tanto no espaço em que viviam como em outros espaços. Inventários também são apreciados mais uma vez. Além disso, documentos do Arquivo Histórico Ultramarino foram incorporados a analise, mesmo que num diálogo sucinto. Voltando o olhar para a documentação que constitui o corpus documental desta pesquisa, percebe-se indivíduos demarcando espaços de sobrevivência, se localizando, se situando, ocupando posições, defendendo-as ou lutando por elas (SILVEIRA, 2007, p. 33). As ações desses sujeitos, possivelmente, teriam como resultado a geração de estratificações sociais e a acumulação de riquezas.

Ao trabalhar o tema das redes de sociabilidade entre os séculos XVIII e XIX, Maria Fernanda Martins afirma que a prática relacional não se refere simplesmente a aspectos econômicos, posto que ela conecta-se “[...] à necessidade de estabelecer alianças vantajosas do ponto de vista material ou de manutenção dos bens e propriedades da família [...]” (MARTINS, 2007, p. 409).

Interessa aqui observar estes últimos aspectos e também como eles se encontram intimamente relacionados com a análise que esta pesquisa pretende realizar, uma vez que se percebe na documentação indivíduos expressando, através de procurações, suas preocupações no estabelecimento de compromissos que resultariam em vantagens materiais, na medida em que demonstravam um intenso cuidado com seus bens e propriedades.

Nas décadas mais recentes, as sociedades consideradas de Antigo Regime têm sido um tema muito frequentado pela historiografia, e nessas produções a suposta centralização típica do absolutismo vem sendo cada vez mais contestada (como foi visto no tópico anterior). Antonio Manuel Hespanha (s./d.), em suas elaborações assinala que dentro do paradigma corporativo em Portugal estabeleceram-se relações de amizade e cumplicidades entre magistrados responsáveis pela administração que, apesar de terem concorrido para o enfraquecimento do poder local, não contribuíram para o fortalecimento do poder da Coroa.

Nesse sentido, Maria de Fátima Gouvêa (2004, p. 97) afirma que, na medida em que são desmistificadas as ideias de absolutismo, centralização do Estado e concentração de poderes na pessoa do rei, torna-se possível perceber singularidades e mecanismos específicos que orientavam as práticas sociais, políticas e econômicas.

Ao tratar acerca da nobreza da terra do Rio de Janeiro, João Fragoso (2007, p. 69), por exemplo, chama a atenção para a formação de teias de alianças entre as famílias da fidalguia, objetivando a hegemonia política ou sua simples manutenção no poder. Essas abordagens dão visibilidade a aspectos importantes, permitindo analisar a dinâmica interna da Colônia no período estudado. No entanto, não se pode fazer uso das mesmas sem um senso crítico, pois se existiram “relações horizontais” no período colonial existiram também “relações verticais”. No que se refere ao sertão do Rio Piranhas, é importante apreender as relações sociais e até que ponto elas funcionaram como um mecanismo através do qual os colonos buscaram a manutenção de seus interesses e sua afirmação enquanto detentores de poder e cabedal e como geradoras de elementos constitutivos de uma Cultura Política.

O patrimônio dessas famílias, além do acúmulo de possessões, envolveu o estabelecimento de diversificados laços de poder entre os componentes das famílias e as autoridades em várias instâncias. Pode-se imaginar, então, que o patrimônio possui uma

dimensão econômica, em virtude de envolver a propriedade de uma extensa gama de bens, além de uma dimensão política, “por implicar no exercício e na manutenção de um poder que buscava se refazer geração após geração” (PESSOA, 2003, p. 165). E aí, quando se começa a se observar o momento da partilha nos inventários, nota-se a preocupação em perpetuar o desenvolvimento dessas riquezas no seio da própria família ou mesmo daqueles que fizessem parte do círculo de amizade.

Deve-se concordar, portanto, com Pessoa, quando ele diz que nas sociedades sertanejas as relações de favor nasciam como elemento integrante mesmo do sistema de dependência e dominação que se instituía, uma vez que

[...] as relações de cunho pessoal vivenciadas entre os patrões e/ou administradores e seus vaqueiros e entre os vaqueiros e seus fábricas estavam ligados a uma produção de meios de subsistência voltada para o atendimento das necessidades da grande exploração agrícola, permitindo que ela se concentrasse na produção voltada diretamente para o mercado. (PESSOA, 2003, 182).

Voltando a analisar o testamento de Luís Peixoto Viegas, ao qual já se fez referência, tem-se uma visão do modo como se davam as relações sociais no sertão do Rio Piranhas. Foi testamenteiro do sargento mor o tenente Felipe Leite Ferreira, que também foi inventariante59: é justamente aí onde podem ser percebidas as relações de amizade entre aqueles que ocupavam postos importantes nos órgãos administrativos. No que diz respeito às testemunhas que presenciaram o testamento, estavam presentes o alferes Nicolau Rodrigues dos Santos, o licenciado Felipe Bento de Santiago, José Caetano, José Rodrigues da Silva e o tabelião João Antonio Pereira.

O referido Nicolau Rodrigues dos Santos devia ao sargento mor Luis Peixoto Viegas a quantia de 15$160 (inventário de 1783), já no “inventário da demência” (1783) está a informação de que Nicolau Rodrigues dos Santos devia ao sargento mor Luis Peixoto Viegas 4$000. Não é possível identificar a razão desta mudança, o que leva a pensar que talvez parte da dívida tenha sido paga. Remontando à primeira metade do século XVIII, se verá Luís Peixoto Viegas aparecendo na condição de testemunha de diversos documentos, a exemplo da procuração de “[...] Vital Vieira”, da escritura de venda “que faz Felipe Delgado de Figueiredo”, da escritura de venda “que faz João Pereira de Mendonça”, do “papel de liberdade lançado em nota a requerimento de Hellena preta forra que foi de José de Sousa

Lima” e em vários outros documentos60. Através do exame de suas dívidas ativas e passivas se pode ter uma visão da rede de dependência em que Luís Peixoto Viegas estava inserido.