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As representações do senso comum sobre os povos indígenas

Capítulo II – Cultura e Desenvolvimento …

2.6 As representações do senso comum sobre os povos indígenas

Apesar do crescente interesse global para as questões relativas à Amazônia e o desenvolvimento socioambiental, o senso comum desconhece a enorme diversidade dos povos indígenas que a habitam, assim como os processos históricos nela vividos e suas realidades atuais. Para a Fundação Nacional do Índio – FUNAI (2010), as populações indígenas são vistas pela sociedade brasileira ora de forma preconceituosa, ora de forma idealizada.

Se para população urbana prevalece uma visão ingênua, em que o imaginário social habita um passado remoto que considera o povo indígena em vias de extinção – considerados como os primeiros habitantes das terras brasileiras que sabem conviver com a natureza sem depredá-la –, para as populações rurais, os índios são "ladrões", "traiçoeiros" e "preguiçosos” (FUNAI, 2010).

É comum a produção de todo tipo de desqualificação dos indígenas através da dominação política, ideológica e econômica das elites municipais, interessadas em invadir e explorar os recursos naturais do território indígena, tais como madeira e minérios (FUNAI, 2010). O imaginário social acerca do índio, como uma categoria social primitiva e de inferioridade, foi construído historicamente até mesmo com a ajuda do material didático disponível às escolas8.

Através destas contribuições, fica evidente que os indígenas brasileiros, em pleno século XXI, parecem ainda ocupar um lugar de homogeneidade e de inferioridade no imaginário social. A famosa expressão “programa de índio” evidencia o preconceito, uma vez que é utilizada para denotar algo sem graça, chato ou entediante. Esta produção, como visto, faz parte de uma dinâmica de poder, a qual Santos (2010) tem denominado de ótica social da invisibilidade. Esta lógica move-se no campo das experiências sociais e pode move-ser superada através de uma sociologia das ausências, que é baseada em:

Uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, ativamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe (...) O objetivo da sociologia das ausências é transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças (SANTOS, 2010, p. 102).

Seja como produto da falta de conhecimento das sociedades ou da ausência, ao longo da

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Ao perceber a disseminação de tais idéias pelas próprias instituições de ensino, a FUNAI tem elaborado diversos projetos, como "O índio na literatura infanto-juvenil no Brasil", em que oferecem oficinas, apresentações teatrais, exposições, rodas de leitura e outras atividades, direcionadas tanto aos professores quanto aos alunos, com o objetivo de despertar a sociedade para a riqueza da diversidade das diferentes tradições culturais indígenas (ISA, 2010).

história, de políticas públicas voltadas ao reconhecimento deste grupo social, a figura dos indígenas se tornou ativamente produzida como homogênea ou não existente. Quando reconhecida parece, ainda, ocupar o distante lugar de inferioridade, do primitivo e do “bom selvagem”, a que o Brasil foi referido.

Para o idealizador do desenvolvimento endógeno, Pham Nhu Hô (1988), há a produção de uma fantasia sobre a alteridade, em que o hemisfério Sul se tornou o local dos etnicamente puros, culturalmente tradicionais e intocados pelas rupturas e deslocamentos da modernidade. Para o autor trata-se de uma “´fantasia colonial` sobre a periferia, mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como ‘puros` e de seus lugares exóticos apenas como ‘intocados’ ” (HÔ, 1988, p. 80).

A este respeito, Hall (2006) acrescenta que, a tendência à homogeneização global caminha lado a lado à fascinação pela diferença e pela mercantilização da etnia e da alteridade. Ou seja, o modelo de desenvolvimento regido pelas regras do mercado tem contribuído com o fortalecimento da produção de invisibilidade as realidades sociais existentes.

As contribuições de Santos (2010) e Hô (1988) denunciam a produção de uma representação baseada em uma história morta, congelada no século XVI e produzida sob o olhar do colonizador. A história contada sob o ponto de vista dos povos indígenas brasileiros praticamente inexistiu no século XX, permanecendo a “fantasia ocidental” e a lógica do pensamento colonizador como o fio condutor das representações sobre estes povos.

Apesar deste olhar construído historicamente, o final do século XX e as primeiras décadas do século XXI, evidenciam a crise socioambiental global e a necessidade de se avançar os planos de desenvolvimento, através de diretrizes sustentáveis e localmente definidas. Neste sentido, tanto o avanço tecnológico da época, como a fluidez das fronteiras e das identidades, apresentadas pelos autores, possibilitam a produção de novas representações às realidades existentes.

Neste sentido, o aumento da visibilidade internacional da Amazônia e de seus povos, como conseqüência do crescente debate sobre a crise socioambiental no século XXI, é, certamente, capaz de produzir novas representações e identidades para estes grupos. No que tange a realidade de determinados grupos indígenas brasileiros, as políticas públicas e a inserção das tecnologias audiovisuais têm proporcionado avanços ao seu “aparecimento” 9

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É neste sentido que Carneiro da Cunha (1998) revela que na década de 1990 houve um crescimento do xamanismo nas cidades através de grupos urbanos do tipo nova era, e que assim, também cresceu um movimento inovador de valorização da cultura indígena que, começava a se

9 Pontos de Cultura Indígena. Ministério do Meio ambiente. Disponível em:

propagar tanto dentro das cidades quanto nas aldeias indígenas. Neste movimento, os Pano, grupo do qual os Kaxinawa fazem parte, tem se destacado. Há a partir do século XXI um movimento crescente da promoção de festivais culturais anuais de diferentes etnias do Acre, como dos Yawanawa, dos próprios Kaxinawa e Kuntanawa, e do etno turismo, que tem atraído grupos não indígenas internacionais e nacionais que chegam à procura de obter cura física, emocional e espiritual através das cantorias rituais e medicinas da floresta.

Assim, se o atual século é marcado pela transformação estrutural, pode-se compreender que os Kaxinawa no Jordão inauguram um novo processo de constituição de identidades, uma vez que a constituição desta se localiza no espaço-tempo simbólicos. Como visto, para a antropóloga Els Lagrou (2007) que morou durante dezoito meses entre os Kaxinawa, a identidade, para estes, assim como o corpo, não são questões classificatórias, e sim, relacionais. A pesquisadora chama atenção para o fato de que a alteridade é central à constituição do eu entre os Kaxinawa e que neste processo, a alteridade é produzida pela semelhança, assim como a semelhança pela alteridade.

Lagrou (2007) identificou que para este grupo a existência humana está relacionada ao controle das fronteiras entre fenômenos e estados de ser, que por sua vez gera o equilíbrio entre estabilidade e transformação. Neste sentido, a autora diz que tanto a alteridade quanto a identidade são formadas a partir de um processo dinâmico e temporal, da relação entre forma fixa e não fixa.

Nesta perspectiva, os processos histórico-culturais vivenciados por este grupo, até mesmo antes do contato com a civilização moderna no início do século XX, estão registrados na sua tradição oral e traduzem um processo dinâmico e temporal de transformação. É interessante lembrar que a história Kaxinawa é contata por seus representantes através de períodos distintos, ou divisões do tempo, conhecidos como: “Tempo da Maloca”; “Tempo das Correrias”; “Tempo do Cativeiro” e “Tempo dos Direitos” (AQUINO & PIEDRAFITA, 1994). Cada período destes representa a produção de representações relativas à diferentes coordenadas de espaço-tempo – diferentes épocas culturais.

Tendo em vista o exposto, é interessante compreender como as especificidades do século XXI produzem um “tempo cultural” que possibilita a produção de novos sistemas de significação, representação cultural e identidades possíveis. Considerando estes aspectos, a constituição das identidades Kaxinawa está, certamente, atravessada pelas especificidades socioambientais e histórico-culturais do século XXI.

É a partir do caráter dinâmico da globalização e dos processos de hibridação que esta disponibiliza, bem como pelas novas coordenadas de tempo e espaço e pela expansão daquilo que se designa como fronteira, que, os Kaxinawa do rio Jordão parecem viver, no século XXI, um novo período histórico-cultural: Xinã Bane, o Novo Tempo ou Novo Pensamento/Conhecimento.

Se Xinã Bena designa um novo período histórico para este grupo (IKAMURU, 2011), capaz de sugerir um momento de transformações, de geração de novas representações e de novas configurações das identidades Kaxinawa, este período se torna, certamente, terreno fértil a um estudo que vise ao mesmo tempo proporcionar a necessária visibilidade sugerida pela sociologia das ausências (SANTOS, 2010) e, ao mesmo tempo ser uma investigação sobre as concepções e expectativas de desenvolvimento existentes nesta especifica realidade, contida na Amazônia do século XXI.