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Capítulo II – Cultura e Desenvolvimento …

2.3 Cultura, identidade e Globalização: termos no plural

A relação entre espaço e tempo no período moderno, diretamente vinculada à mudança estrutural, evidenciada no final do século XX é, produtora de um processo de deslocamento das identidades. A permeabilidade das fronteiras, característica do estilo de vida mediado pelo mercado global e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, resulta em uma fragmentação das paisagens culturais que antes forneciam uma localização precisa dos indivíduos sociais, tais como a noção de etnia, raça e nacionalidade (HALL, 2006).

Para dar uma melhor compreensão a este processo, Cardoso de Oliveira (2000) relata uma experiência concreta, através do depoimento de imigrantes brasileiros nos Estados Unidos. Por serem considerados pela rede de classificação étnica local como hispânicos, uma categoria étnica desvalorizada no país, os brasileiros, e os demais grupos latinos, querem ter uma identidade própria e lutam por isso. Ao enfatizar o processo de deslocamento, o autor analisa a presença de ambiguidades no processo de constituição das identidades brasileiras como parte do processo de surgimento de crises de identidades, sejam elas reais ou virtuais, fruto da fragmentação das paisagens culturais precisas.

Essa transformação estrutural, da qual nos falam Hall (2006) e Cardoso de Oliveira (2000), é caracterizada pelo deslocamento, ou fragmentação, que gera uma “crise de identidade”, em que o sujeito vive a descentração do seu lugar no mundo social e cultural, e de si mesmo, uma vez que as identidades se tornam desvinculadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicos.

Hall (2006) chama a atenção, desta forma, para uma compreensão histórica da identidade. Ele reconhece a possibilidade de um mesmo sujeito assumir diferentes identidades, tendo em vista diferentes momentos. Nesta perspectiva, a identidade não é um fenômeno biológico e não pressupõe um “eu” unificado e coerente. A formação das identidades pressupõe uma transformação contínua, de acordo com a maneira pela qual os sistemas culturais do entorno atribuem significados e representações àquele que se identifica.

À medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente (Hall, 2006, p.13).

relacionado ao paradigma da cultura. Este paradigma, historicamente central à antropologia, tornou-se, a partir de reformulações teóricas e metodológicas construídas, sobretudo, após a II Guerra Mundial, um campo de investigação interdisciplinar (CLIFFORD, 1998). Na Psicologia Social, são poucos os autores que têm se interessado em estudar o conceito de cultura apesar da centralidade do tema para a análise psicossocial (MELLO E SOUZA, 2003).

Para Sahlins (1997), o paradigma da cultura, no sentido antropológico, foi capaz de superar a noção de “culto”, de refinamento cultural, da qual etimologicamente é descendente. E também foi capaz de se afastar das idéias progressistas de “civilização”, a que já esteve relacionada, bem como da ideia de uma cultura original.

A concepção de cultura, como algo originário, preexistente, trouxe a idéia simplista, de uma suposta “aculturação” ou descaracterização, em decorrência do contato com a alteridade que pode gerar transformações, consideradas pelos não nativos como não condizentes à idéia de tradicional/original. Esta visão não histórica da cultura ignora que a “tradição” não é mais estática no passado do que agora. É preciso perceber que a habilidade de inovação não é uma indicação de falência e sim uma qualidade intrínseca do sistema (Sahilns, 1997).

É neste mesmo sentido que Roy Wagner (1981) enfatiza a cultura como um sistema aberto-fechado, em constante movimento, capaz de produzir significados, a partir de uma dinâmica de relação e movimento. O autor também lembra que, historicamente, a antropologia constituiu seu objeto de estudo através de uma perspectiva que buscou fixar as culturas humanas em um sistema fechado, supostamente “original”.

Ao trazer as reflexões para o campo do desenvolvimento, Sahilns (1997) dá visibilidade a intensificação do movimento anti-imperialista ocidental na segunda metade do século XX, na qual o paradigma da cultura apareceu como a antítese de um projeto colonialista de estabilização. Neste movimento, diferentes povos de todo o planeta passaram a utilizar, de forma consciente, sua “cultura” enquanto um contraponto, para marcar suas identidades e especificidades e, assim, retomar o controle de seu próprio destino. Neste mesmo sentido Lagrou (2007) ressalta que em todo mundo, as populações nativas estão passando por um processo de afirmação identitária através de mecanismos de visibilização da cultura, de sua ' autenticidade' e vitalidade.

Encontra-se nesta passagem um importante ponto: a idéia de cultura passou a ser utilizada como uma estratégia de resistência e garantia aos projetos de vida, e assim, de desenvolvimento, dos diferentes povos, sobretudo aqueles em situação de invisibilidade. Vale salientar, neste sentido, que o paradigma da cultura está diretamente relacionado à constituição de identidades e, estes devem ser compreendidos através de uma perspectiva histórica, em que a atribuição de significado ocorre a partir de um sistema de relação aberto-fechado, em movimento contínuo de transformação.

No que tange a perspectiva histórica, Hall (2006) esclarece que o tempo e o espaço são as coordenadas básicas dos sistemas de representação e, assim, diferentes épocas culturais podem produzir diferentes significações, uma vez que combinam coordenadas de espaço-tempo específicos. O atual século, como dito por Baumam (2001), carrega a marca do encurtamento das distâncias em função da velocidade do deslocamento e da informação.

Esta especificidade, iniciada no final do século XX, é denominada por Hall (2006) de “permeabilidades das fronteiras” e “aumento da transição territorial”. É justamente por se definir enquanto um espaço não plenamente estruturado, que possui uma virtualidade histórica, que os novos formatos de fronteiras se tornam um potencial na geração de transformações e novas realidades (BECKER, 2009).

É neste sentido que Hall (2006) afirma que a dinâmica das coordenadas de espaço-tempo da época gera um espaço favorável às trocas e transformações e, que a produção da identidade está diretamente relacionada ao processo de representação constituído neste período. É neste sentido que, para o autor, a permeabilidade das fronteiras pode produzir uma desintegração das identidades, como resultado do “pós-moderno” e da crescente homogeneização cultural.

O século XXI, marcado pelo aumento de tal permeabilidade, possui cada vez mais uma realidade global, no que tange a acessibilidade aos espaços, capaz de gerar a desintegração das identidades nacionais, em função do impacto da globalização sobre as identidades (HALL, 2006).

No que tange este mesmo período histórico, Boaventura de Souza Santos (2010) chama atenção ao fato de que aquilo que habitualmente designamos por “globalização” faz parte de vários conjuntos de relações sociais. O autor enfatiza que deveríamos utilizar o termo globalização apenas no plural, uma vez que se refere à diversos feixes de relações sociais que se constituem de forma histórica, através de sucessivos processos de transformação.

É esta crescente troca de informações que gera, de acordo com Garcia Canclini (2008), um processo de hibridação sociocultural, em que as estruturas que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos, práticas e saberes. O autor chama atenção à necessidade de se estudar tal processo através de uma teoria não ingênua da hibridação, que considera os limites daquilo que não se deixa, ou não quer, ou não pode ser hibridado.

Como um processo em que é possível ter acesso e se pode abandonar, a hibridação evidencia as posições dos sujeitos nas relações interculturais. Assim, falar de hibridação não é sinônimo de falar de fusão sem contradições. É desta forma que, seu estudo pode ajudar a compreensão das formas particulares de conflito geradas nos contatos interculturais, presentes tanto nas combinações de elementos étnicos ou religiosos, quanto na de produtos tecnológicos e nos processos sociais modernos e pós-modernos (CANCLINI, 2008).

Para Friedman (1990) tanto a fragmentação étnica e cultural, e o processo de hibridação, quanto a homogeneização modernista são tendências que constituem a realidade global e, desta forma, não devem ser consideradas visões opostas sobre o que está acontecendo no mundo.

Tendo em vista a pluralidade de realidades sociais e globalizações, Santos (2010) ressalta que a experiência em todo o mundo é muito mais ampla e variada do que a tradição cientifica ou filosófica ocidental reconhece, ou seja, há uma riqueza social sendo desperdiçada. A este respeito, diz que uma vez que as globalizações são feixes de relações sociais, elas envolvem conflitos e, assim, vencedores e vencidos.