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2 O CENÁRIO E OS ATORES : IDENTIDADES E DIFERENÇAS

2.2 As salas de aula: espaços da “fossilização”?

Dia ensolarado de abril, do penúltimo ano do século XX. Passo a manhã e a tarde em espaços extremamente familiares, não só para mim como, certamente, para grande parte das pessoas deste século. Trata-se de duas salas retangulares, de aproximadamente 40m2 cada, com grandes janelas. Embora pertencentes a duas instituições diferentes, as salas têm um mobiliário muito semelhante: dois armários de aço; aproximadamente 30 mesas pequenas, todas idênticas entre si, com suas cadeiras respectivas (acopladas às mesas numa sala, separadas na outra); uma mesa um pouco maior, à frente das demais e voltada para elas, com uma cadeira. As mesas menores se alinham uma atrás da outra, formando fileiras que às vezes estão organizadas de duas a duas, às vezes estão separadas. As duas salas têm as paredes revestidas até a metade por azulejos (brancos numa delas, de cor creme na outra), e cobertas por enfeites, trabalhos feitos por crianças, cartazes impressos. Na parede da frente de cada uma observa-se um grande painel de cimento pintado de verde e, acima dele, um relógio. Nessa parede há ainda a imagem de um santo da Igreja Católica, numa das salas, e a de uma “Nossa Senhora”, na outra. Durante a maior parte do tempo em que observo, as salas são ocupadas por um grupo de crianças e uma mulher adulta. As crianças ficam quase todo o tempo assentadas, ao passo que a mulher adulta costuma se movimentar pelos espaços existentes entre o mobiliário. A mulher detém também o direito de falar sempre que

desejar, enquanto as crianças, na maior parte das vezes, precisam pedir autorização para se manifestar.

Lembrando Delamont (1987), pode-se dizer que qualquer leitor que se deparasse com o trecho acima certamente perceberia de que tipo de sala se trata. Certamente também, já iria evocando, durante a leitura, as categorias adequadas para as descrições feitas: sala de aula, carteiras, lousa ou quadro-negro, alunos, professora... Desde o advento da escolarização em massa, a sala de aula tornou-se um cenário bastante característico, que tem atravessado praticamente incólume as sucessões de gerações, sendo familiar a grande parte dos seus membros. Entretanto, como afirma Delamont, a tarefa das Ciências Sociais “implica uma luta para transformar em coisas estranhas os cenários, acontecimentos e papéis que são familiares”, sendo que “...a tarefa do especialista de ciência social consiste em fazer estranho aquilo que é familiar.” (Delamont, 1987: 152 – 153).

Assim, aproveito, sempre que possível, os momentos em que os/as alunos/as e a professora regente não estão nas salas, e percorro os “corredores” entre as carteiras observando os cadernos, as mochilas, os trabalhos realizados... Eles me falam de uma instituição cujas funções básicas têm se conservado através de décadas, e que também tem mantido, durante esse tempo, traços essenciais de organização, que se mostram de forma semelhante nas duas salas de aula que observo. É o que revelam os cadernos, identificados por etiquetas que indicam diferentes disciplinas (Português, Matemática, Ciências, Estudos Sociais...). É o que denota a presença, sobre as carteiras, do caderno de “Para Casa”, com atividades similares às da época em que eu própria era uma aluna do Ensino Fundamental. É o que me diz uma “Avaliação de Ciências”, que entrevejo dentro de uma das pastas semi-abertas, mostrando a nota obtida pelo aluno e uma

mensagem (“Muito bem!”) da professora. É o que me segreda a simples inscrição “3ª série”, na etiqueta da régua de uma aluna... Disciplinaridade, atividades tipicamente escolares a serem realizadas pelo/a aluno/a em casa ou na escola, testes para avaliar a aprendizagem, divisão dos estudantes em “séries”... Traços que vêm sendo apontados como característicos da cultura escolar (n4, p3) em nosso século, e cujas origens remontam ao processo de “disciplinarização dos saberes e disciplinarização dos sujeitos” iniciado pelos jesuítas após o Renascimento e impulsionado, a partir do final do século XVIII, com a formação dos Estados Modernos e o processo de industrialização, e sua conseqüente necessidade de novas formas de regulação social (Varela, 1994; Popkewitz, 1994).

Entretanto, será que tudo é apenas “mesmice” e repetição, nessa “cultura escolar”? Trata-se realmente a escola de uma instituição “fossilizada”, “parada no tempo”? Seriam as experiências escolares dos alunos das duas turmas unificadas sob o peso dessa cultura?

A investigação atenta mostra-me outros indícios que sinalizam respostas para tais questões. Sobre a mesa da professora, na sala X, vejo os originais de uma “Avaliação Interdisciplinar”. No caderno de Português de um dos alunos, inscreve-se: “Registro da aula de Informática.”Em meio aos meus materiais, encontro o trabalho de pesquisa que me fora emprestado por uma das crianças da turma Y, que o realizara utilizando a Internet, tendo em vista uma atividade em grupos a ser desenvolvida na sala. Em um dos cadernos de Ciências da mesma turma, deparo-me com o registro de uma das atividades feitas: “Relatório sobre o filme assistido na aula de hoje: O Homem de Neanderthal.” São elementos que falam, mais uma vez, da necessidade de evitar os discursos estereotipados a respeito da escola e da cultura que nela se desenvolve,

buscando, na perspectiva da análise sociológica dos processos de ensino, localizar de que escola se está falando, quais são os atores e as dinâmicas sociais que nela se fazem presentes, a que propósitos serve sua forma de organização, quais são as mudanças e as permanências nos processos que coloca em ação, quais os contextos dessas mudanças e permanências... Seria necessário, como afirmam Alves, Azevedo e Oliveira (1998: 11), “olhar/ver/sentir/tocar (e muito mais) as expressões diferentes surgidas nas inumeráveis ações que somente na aparência, [...] são iguais ou repetitivas. É preciso mesmo que se busque outro sentido para o que é repetição, buscando entendê- la nas suas múltiplas justificativas e necessidades.”

As duas salas de aula, fisicamente organizadas de forma tradicional, bem como a maioria dos materiais aos quais tenho acesso, expõem instituições que efetivamente não se diferenciam por uma proposta pedagógica inovadora. Entretanto, também não me autorizam a rotulá-las de “fossilizadas”, principalmente se deixo de contemplar apenas as salas vazias e vejo entrarem e tomarem lugar os atores desse cenário: alunos e professora. Eles trazem para o interior desse espaço físico chamado “sala de aula” uma diversidade humana, social, cultural, que é preciso tentar captar. E busco fazê-lo focalizando principalmente os elementos mais diretamente relacionados ao objeto de minha pesquisa. Quem são esses alunos? Qual o seu acesso à informação fora da escola? Sabendo-se que, nas duas turmas investigadas, as crianças pertencem às classes médias, poder-se-ia afirmar que todos têm acesso amplo à informação fora da escola? Quem é essa professora? Quais as suas experiências, a sua formação, qual é o conjunto de saberes e crenças que ela traz para a sala de aula, e a partir dos quais lida com os alunos e com as informações que eles trazem?

Novas perguntas, novas iniciativas em busca de respostas. A aplicação do questionário aos alunos, as observações e as entrevistas realizadas permitem-me avançar um pouco mais no conhecimento desse universo que me propus a perscrutar.