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O papel da família no aproveitamento do potencial informativo dos veículos:

3 O ACESSO AOS VEÍCULOS DE INFORMAÇÃO E A SOCIALIZAÇÃO INFANTIL

3.3 O papel da família no aproveitamento do potencial informativo dos veículos:

Segundo Bourdieu, (1998:76), “a apropriação do capital cultural objetivado (...) depende, principalmente, do capital cultural incorporado pelo conjunto da família”, sendo que esse “capital cultural incorporado” corresponderia a um conjunto de “disposições duráveis” em relação à cultura, as quais já “fizeram corpo” nos indivíduos, tornando-se parte integrante de sua personalidade. No caso deste trabalho, isso equivaleria a afirmar que o usufruto efetivo das possibilidades oferecidas pelos veículos de acesso à informação depende das disposições da família em relação à cultura. Essa afirmação remete a uma análise das práticas culturais nos contextos familiares, o que foge à proposta da presente pesquisa. Entretanto, principalmente nas entrevistas, foi possível obter, por meio das falas e dos exemplos dados pelos alunos, elementos que confirmam a influência da atuação dos pais, tanto em relação ao nível geral de informação da criança, quanto na determinação do tipo de uso que ela fará dos veículos de informação aos quais tem acesso.

Observou-se que, em geral, as crianças que mais e melhor expressavam, na sala de aula e nas entrevistas, conhecimentos prévios sobre os assuntos escolares abordados, foram também as que comentaram com maior ênfase e convicção a interação que mantêm com membros da família, especialmente os pais, em relação à obtenção de informações fora da escola: comentários e explicações dos pais enquanto assistem, com os filhos, a programas de TV, ou nas viagens da família; comentários sobre livros ou reportagens que leram, e incentivo à leitura pelos filhos; visitas a museus e exposições; comentários sobre aspectos relativos à própria profissão dos pais ou ao cotidiano das famílias, dentre outros.

É o que se constata, por exemplo, em diversos trechos da entrevista com

Paulo (n43, p46), da turma X. Além de enfatizar o quanto aprende com os pais e citar

vários exemplos, Paulo ilustra, por meio de sua fala, a importância de que a criança tenha sua curiosidade despertada em relação a determinados assuntos. Embora tivesse acesso a fontes de informação sobre a 2ª Guerra Mundial, como os programas do Discovery Channel e as enciclopédias virtuais de sua casa, Paulo somente começa a demonstrar maior envolvimento com o tema, e a buscar ativamente informações sobre ele, a partir da intervenção do pai. Este, assistindo junto com o filho aos programas de TV, ajuda a selecioná-los, como objetos de interesse e de conhecimento, dentre tantos outros possíveis; acrescenta informações, auxilia a entender os programas, a contextualizá-los... Enfim, ajuda Paulo a transformar os dados veiculados em informações que ele passa a utilizar – e a buscar enriquecer, acessando as enciclopédias virtuais - em seu processo pessoal de construção de conhecimentos. O mesmo acontece com a questão da ditadura, explorada pelo pai a partir de uma notícia sobre Pinochet. Para muitas crianças que tenham tido acesso à mesma notícia, sem, entretanto, ter

oportunidade de selecioná-la do emaranhado de informações e de situá-la em um contexto mais amplo, palavras como Pinochet, ditadores, exílio, podem soar como dados que pouco lhes informam...

O que esse trecho da entrevista com Paulo apresenta, enfim, é a herança cultural vista em atuação, operando no sentido de rentabilizar as possibilidades de aproveitamento, pela criança, dos veículos de acesso à informação que ela tem disponíveis em seu ambiente familiar. No caso do pai de Paulo, isso se dá por meio de um trabalho pedagógico que ele realiza com o filho. Lembrando Establet25 (apud Nogueira, 1995a), pode-se afirmar que a atuação do pai de Paulo evidencia o esforço das classes médias no sentido de transmitir e fazer frutificar a herança cultural de que dispõem. Segundo o autor, em função desse objetivo as famílias dessas camadas sociais fazem investimentos que incluem um tipo de ação pedagógica semelhante, em alguma medida, ao trabalho de um professor, gerando o que o autor chama de “pai de aluno profissional”. Porém, Establet usa a expressão para designar a estratégia de investimento das classes médias na carreira escolar dos filhos, acompanhando-a e cercando-a sistematicamente de cuidados. Enquanto isso, o que as atitudes do pai de Paulo evidenciam são estratégias que parecem dirigir-se para além da vida escolar propriamente dita, formando disposições favoráveis da criança na relação com os diferentes veículos de informação e objetos de conhecimento.

Tal constatação reforça, a partir de uma perspectiva diferente, as observações de Greenfield (1988) quanto à influência da TV sobre o desenvolvimento infantil. Essa autora cita diversas pesquisas demonstrando que as possibilidades de aquisição de conhecimentos, pela criança, por meio dos programas de TV, aumentam significativamente mediante a interação com adultos que possam comentar os

programas, discuti-los, estimulá-la a prestar atenção, dar-lhe explicações, destacar informações importantes ou emitir opiniões. Patrícia Greenfield destaca, quanto à atuação dos pais, que não basta assistir à TV junto com o filho, sendo necessária uma intervenção direta em relação ao conteúdo dos programas, no sentido de neutralizar o que qualifica como “efeitos negativos” da TV e de canalizar positivamente as possibilidades de aprendizagem por ela geradas.

Entretanto, a preocupação dessa autora volta-se para os diferentes efeitos dos veículos e as suas possibilidades educativas, bem como para as formas de potencializar tais possibilidades. A perspectiva adotada neste trabalho, por sua vez, leva a analisar sob outro enfoque os dados obtidos. Ao buscar empreender uma análise sociológica do acesso aos veículos e de seus efeitos, envolvendo uma tentativa de caracterização do mundo social como é, e não como deveria ser (Bourdieu, 1983), tal perspectiva leva a colocar em relevo a ação do capital cultural familiar como mais um dos fatores de desigualdade na apropriação dos benefícios possibilitados pelos veículos de acesso à informação. À medida que se sabe que diferentes famílias, ainda que pertencentes a uma mesmo segmento social, no sentido econômico do termo, posicionam-se de modos diferentes, não só no que se refere à posse dos veículos de informação, mas também quanto à posse do capital cultural que poderá rentabilizar o aproveitamento desses veículos, faz-se necessário incluir novos matizes no discurso sobre o acesso à informação fora da escola e na discussão sobre a “concorrência” entre o currículo escolar e o currículo extra-escolar. Retoma-se, assim, a reflexão sobre o papel da escola na criação de possibilidades de acesso a um patrimônio cultural que, tal como as outras riquezas da sociedade, distribui-se desigualmente entre seus membros.

Se nem todas as crianças, nem mesmo as das classes médias, têm, como Paulo, enciclopédias virtuais e acesso ao Discovery Channel; e se nem todas têm pais que comentam com elas sobre a 2ª Guerra Mundial ou sobre a ditadura, de modo a lhes despertar o interesse sobre o assunto, há que se indagar se não existe um papel específico a ser exercido, ainda, pela escola.

Qual o nível de autonomia da escola, como instituição inserida em uma estrutura social complexa, no sentido de criar condições mínimas de igualdade de acesso aos conhecimentos, se a desigualdade já se manifesta desde o contexto de socialização primária que é a família? Em que medida a instituição escolar contribui para superar essas desigualdades e em que medida contribui para confirmá-las e perpetuá-las? Qual o papel desempenhado pelos diferentes projetos e práticas pedagógicas a esse respeito? Trata-se de questões de antiga discussão no âmbito educacional, as quais, entretanto, merecem ser retomadas no contexto específico configurado pela “era da informação”, a fim de se levar em consideração os novos componentes trazidos em seu bojo.

Bourdieu e Bernstein, autores que se destacam quanto ao estudo do papel da escola na reprodução das estruturas sociais, evidenciam, em suas obras, que a ação da instituição escolar não se dá de forma completamente independente do contexto familiar; ao contrário, analisam a atuação da família como um dos fatores de sucesso escolar das crianças. Bourdieu26 (apud Nogueira, 1997), analisando a ajuda familiar na vida escolar dos filhos, identifica um tipo de auxílio direto, na forma de conselhos, explicações, acompanhamento na realização de tarefas, e um tipo de auxílio difuso, relacionado às vivências culturais proporcionadas, de forma geral, às crianças. Ele afirma que, à medida que se sobe na pirâmide social, intensifica-se o auxílio difuso.

Já Bernstein (1996) identifica o lar como segundo local fundamental para a aquisição do currículo acadêmico escolar, logo depois da escola. Esse autor destaca a importância de que o tempo escolar, insuficiente para sedimentar as aprendizagens previstas nos currículos, seja complementado, em casa, pelo que ele chama de “tempo pedagógico oficial no lar”, destinado à realização das tarefas de casa. O papel da família seria criar uma “disciplina pedagógica oficial no lar”, proporcionando um tempo e um espaço adequados e controlando a criança para que ela realize as atividades escolares nesse contexto. Bernstein aponta o fato de que a incapacidade de algumas famílias oferecerem esse “tempo pedagógico oficial no lar” pode ser um dos fatores da desigualdade de rendimentos escolares.

Atualmente, diante da questão da utilização, fora da escola, dos veículos de acesso à informação, torna-se possível fazer uma releitura das contribuições desses autores. Assim, pode-se afirmar que a criação de possibilidades de acesso a esses veículos; a transmissão, pelos pais, de informações variadas aos filhos, relacionadas ou não aos conteúdos escolares; a criação, no lar, de um ambiente cultural estimulante, representam formas de auxílio difuso, podendo também ser caracterizadas, numa referência ao enfoque de Bernstein, como a configuração de um tempo pedagógico não- oficial no lar. Trata-se de um tipo de auxílio e de um tempo cujos efeitos parecem se estender além da vida escolar da criança...

Um pai explica, durante o almoço, que aranha não é inseto, e sim

aracnídeo (Artur – turma X – n73, p79); uma mãe utiliza a Internet para pesquisar

temas mencionados pela criança, mesmo que não estudados na escola (Fabiana, turma X); um pai leva o filho à exposição de Salvador Dali e explica o que é “surrealismo” (Evandro, turma X); um pai, ao ler o jornal diário, faz recortes e indica sua leitura à

filha, quando acha que o assunto interessa a ela (Fernanda Costa, turma X). Todas essas constituem formas de ação e de reprodução do capital cultural familiar, as quais, além de sua influência no rendimento escolar da criança, configuram ações pedagógicas suplementares à da escola, que geram novas formas de diferenciação social, relevantes quando se vive em uma sociedade na qual a principal riqueza é o nível de conhecimento e de informação.