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As tensões familiares e o processo de identificação das personagens

4. Questões de Sexualidade, Identidade e Poder nos romances Annie John

4.2 As tensões familiares e o processo de identificação das personagens

As relações socialmente desenvolvidas ao longo da vida moldam o ser humano e são responsáveis pelo que ele se torna na fase adulta, pois os primeiros contatos do indivíduo durante a infância terão importância incontestável para a forma que este vê o mundo, seja para afirmá-lo ou confrontá-lo o contato da criança com o mundo acontece através da relação que ela desenvolve com seus parentes e, mais adiante, com professores, colegas e outras figuras que se encaixam em sua realidade sócio-cultural. Jamaica Kincaid explora bem as ramificações que as relações familiares apresentam na vida do sujeito, suas personagens Annie, Lucy e Xuela desenvolvem a vontade de construir suas próprias identidades e isso só acontece porque as tensões que envolvem a relação mãe-filha (Annie John e Lucy) e pai-filha (The Autobiography of My Mother) as levam por esse caminho, seja através do deslocamento das personagens, seja pelo processo de rememoração todas elas saem em busca de um caminho próprio que lhes dê oportunidade para serem livres.

No romance The Autobiography of My Mother178 a personagem Xuela busca conhecer a mãe que morrera durante o parto com o intuito de sentir-se completa; para isso ela utiliza do conhecimento que tem de si mesma – já que não havia ninguém com quem ela pudesse conversar sobre o assunto. A busca por (re)conhecimento fica nítida no início de cada capítulo, pois vemos uma parte da foto de uma mulher que vai se revelando aos poucos, até que no último capítulo temos a foto inteira. Um dos momentos em que Xuela mais se sente próxima da mãe é quando a personagem sonha, nesse momento Xuela sente a presença da mãe mesmo sem conseguir visualizar seu rosto ou ouvir sua voz, essa presença representa muito para a personagem: “when I awoke, I was not the same child I had been before I fell asleep.”179 (KINCAID, 1996, p. 18) A idealização da figura materna

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Neste tópico não utilizamos a ordem cronológica dos romances porque queremos seguir a análise dessa parte levando em consideração: a ausência física da mãe, causada pela morte (The

Autobiography of My Mother), a presença física da mãe (Annie John) e ausência física da mãe,

causada pelo deslocamento geográfico da personagem (Lucy).

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107 é construída desde a infância de Xuela e seus sonhos a faziam sentir-se protegida, exatamente o que não conseguia sentir quando estava acordada, já que não tinha um lar de verdade180. Apesar do fato de a mãe estar morta ela tem muito mais importância para a personagem do que o pai, que mesmo vivo, abandona Xuela durante os primeiros anos com a lavadeira e mesmo quando a traz para morar com ele e a nova esposa, não participa ativamente da vida da filha; proporciona-lhe conforto, mas não é capaz de dar-lhe amor; proporciona-lhe uma posição social (filha de uma autoridade local), mas não mostra capacidade de ser uma figura modelo que possa ensiná-la sobre as coisas da vida.

Em Annie John também temos um pai que, mesmo presente fisicamente e participante da dinâmica da casa (como provedor da família) não significa muito para Annie; seu papel se restringe apenas a ser o mantenedor do lar, e por isso não tem a mesma importância da mãe. Nesse romance podemos analisar o relacionamento entre Annie e sua genitora (que tem o mesmo nome) em dois momentos que são opostos entre si e que representam uma ruptura significativa que pode ajudar a compreender o processo para a formação da identidade da personagem. Até certo ponto da narrativa vê-se cumplicidade entre mãe e filha, Annie sentia um amor e admiração profundos pela mãe, nesse primeiro momento Annie afirma: “how important I felt to be with my mother.”181 (KINCAID, 1985, p. 15) Essa frase mostra a existência da força da relação entre as duas; entretanto acontece uma reviravolta nessa relação, num determinado momento (que coincide com a chegada da personagem ao estágio da adolescência) tudo isso acaba, e elas passam a ser praticamente inimigas: “we both noticed that now if she said that something I did reminded her of her own self at my age, I would try to do it a different way, or, failing that, do it in a way that she could not stomach.”182 (idem, p. 87) Esse comportamento marca a segunda parte da narrativa e é nesse momento que Annie passa a se afastar da mãe e esse é um afastamento que não tem volta e que culminará na partida de Annie para a Inglaterra.

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Esse fato explica o porquê do único lugar que Xuela se sente bem seja em seu quarto, quando ela tem a oportunidade de ficar sozinha. A solidão para Xuela é, desde o princípio até o final da vida, a única forma de sentir-se segura, na solidão ninguém a decepcionará.

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“quão importante eu me sentia por estar com minha mãe.”

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“nós duas notamos que agora se ela dissesse que alguma coisa que eu fiz a lembrou de seu próprio eu na minha idade eu tentaria fazê-lo de um modo diferente, ou, na falta disso, fazer de um jeito que ela não teria estômago.”

108 Também em Lucy percebemos a sobreposição da mãe em relação ao pai, nesse caso ambos estão distantes fisicamente da personagem – graças a sua decisão de migrar para os Estados Unidos – e mesmo assim a figura da mãe continua presente durante o processo que a personagem vivencia através de sua mudança para um novo país; as lembranças que Lucy carrega consigo possuem uma função dupla e divergente: primeiro a aproximam da mãe, o que explica o fato de Lucy se comparar à ela, e depois serve de combustível para o ressentimento da personagem que passa a ver a mãe como uma traidora, já que diferentemente do pai, ela deveria nutrir por Annie um sentimento de cumplicidade, destruído pelas atitudes da mãe em privilegiar os filhos. As lembranças não surtem o mesmo efeito com o pai porque para Lucy a relação pai-filha sempre foi distante. Assim como acontece com Annie também é possível perceber que houve uma ruptura na relação mãe-filha que é determinante para o afastamento de Lucy. As atitudes da mãe passam a ser encaradas como uma forma de posse e não de amor:

I had come to see her love as a burden and had come to view with horror the sense of self-satisfaction it gave my mother to hear other people comment on her great love for me. I had come to feel that my mother’s love for me was designed solely to make me into an echo of her183 (KINCAID, 1990, p. 36)

A mãe de Lucy parecia não se importar com o verdadeiro eu da sua filha e o pai sequer a enxergava (porque estava preocupado demais com o futuro dos filhos homens); o mesmo vale para a mãe de Annie, tão preocupada em torná-la uma lady184 e o pai tão centrado em suas atividades de macho-alfa; o único parente vivo de Xuela – o pai – também não demonstra interesse real pela filha e por isso não a conhece verdadeiramente. No caso dos dois romances em que as mães se encontram vivas percebemos uma dinâmica diferente na relação com a mãe185, tanto no caso de Annie como de Lucy vemos que é “quando a menina cresce que nascem verdadeiros conflitos” (BEAUVOIR, 1980, p. 289), isso se dá porque é a partir do momento em que a menina é capaz de raciocinar e entender as coisas por

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“Eu tinha começado a ver o amor dela como uma carga e tinha começado a enxergar com horror o senso de autossatisfação que dava à minha mãe ouvir outras pessoas comentarem sobre seu grande amor por mim. Eu tinha começado a sentir que o amor de minha mãe por mim era concebido exclusivamente para me fazer um eco dela.”

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“dama”

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E no caso de Xuela, única personagem órfã de mãe, todo o conflito passa a ser canalizado apenas em direção à figura paterna.

109 si mesma que ela passa a desejar “afirmar sua autonomia contra a mãe” (idem, p. 289); é comum a mãe buscar reproduzir na filha tudo o que aprendeu186. Annie, Lucy e Xuela apresentam uma postura de afastamento desse ciclo reprodutivo, e por isso demonstram o desejo de libertar-se da dominação hierárquica e encontrar-se como indivíduos independentes, com esse objetivo as personagens tendem a trilhar o caminho mais difícil, já que, segundo Friedan (1971), é mais fácil viver a vida através de outra pessoa do que buscar ser uma pessoa completa.

As tensões reveladas no relacionamento entre mãe e filha traduzem dois caminhos que se encontram numa encruzilhada interessante: ao mesmo tempo em que a relação mãe-filha pode ser equiparada com a relação nação-pessoa, ela também indica a relação de poder patriarcal-pessoa. Em The Autobriography of My Mother Xuela sente falta da mãe e procura conhecê-la através de suas conjecturas, da mesma forma como reflete sobre a realidade de seu povo, buscando refletir sobre como sua mãe e seu povo puderam se perder na história e como a recuperação dessa história é importante para ela se firme enquanto pessoa; já em Annie John vemos uma mãe submissa que depende de seu marido para tudo (não muito diferente do que acontece em Lucy); enquanto Xuela deseja encontrar sua mãe através de suas lembranças Annie e Lucy tomam a decisão de se afastar de suas respectivas mães, seguindo o mesmo raciocínio ambas personagens querem se afastar da própria pátria a fim de encontrar um caminho que não envolva subserviência.

Essa correlação mãe-pátria também pode ajudar a entender a relação das personagens com os pais levando em consideração o que eles acabam representando nesse cenário de conflito: o dominador. O pai de Xuela representa mais fortemente essa ideia porque mesmo sendo um filho da terra assume uma posição de poder que o faz ser comparado ao colonizador branco, não só pelo cargo que ocupa, mas também pela mistura racial da qual ele é o resultado; nesse caso a revolta apresentada pela personagem é maior já que o pai se apresenta como uma

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Ao citar Gramsci, Terry Eagleton afirma que as ideologias são “como forças ativamente organizadas e psicologicamente ‘válidas’, que moldam o terreno em que os homens e as mulheres agem, lutam e se conscientizam de suas posições sociais” (1997, p. 199) e por isso ela é responsável pelo comportamento da mãe em relação à filha, pois a genitora reproduz o que acha ser o certo na educação dos filhos e das filhas; afinal ninguém, em sã consciência instruirá sua prole para o ‘caminho errado’.

110 vítima algoz187. Os pais de Annie e Lucy, assim como o pai de Xuela, representam a figura típica do homem na sociedade patriarcal: eles decidem o rumo que a família vai tomar e são peças-chave para a manutenção dessa sociedade através da educação familiar, para que isso se concretize eles precisam da cumplicidade das mães. Um exemplo bastante conciso em relação à posição do pai nessa estrutura patriarcal se materializa nos sonhos que o pai de Lucy tem para o futuro dos filhos, em detrimento aos planos pensados para o futuro da personagem. Vemos que nos três romances o pai, assim como o colonizador, explora a mulher-nação para seu bem próprio, caracterizando-as como mero objeto.

Sendo assim percebemos que Xuela está, na verdade num ambiente de exploração dupla, porque além de sofrer as consequências por fazer parte do povo colonizado a personagem, por ser mulher, enfrenta dificuldades em ser levada a sério. Nesse caso a internalização de valores age da mesma forma e através dos mesmos meios: a educação (familiar e escolar) e o convívio social; a estrutura social montada há séculos tem como objetivo traçar os destinos dos indivíduos através da raça, gênero, classe social (SAFFIOTI, 2001) e acrescentaríamos também o espaço geográfico. Para Fanon o colonialismo busca “plantar profundamente nas mentes da população nativa a ideia de que antes do advento do colonialismo sua história era uma história dominada pelo barbarismo” (2002, p. 171); o mesmo acontece com as mulheres, o patriarcalismo imbute na mulher o sentimento de incapacidade para que ela sinta a necessidade de ser protegida, essa criação de dependência em relação ao colonizador e ao homem é a ferramenta indispensável para a subordinação do colonizado e da mulher. Essa herança é muito difícil de ser aniquilada porque, como nos diz Freire (1985) sempre haverá uma ‘sombra introjetada’188 no indivíduo, que precisa entender todo esse ciclo de dependência para poder se libertar. Parece-nos que as personagens analisadas aqui cumprem bem esse papel de resistência à sombra do colonizador e também à sombra do homem, é por essa razão que a

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Esse conceito de vítima algoz explica bem o comportamento do pai de Xuela, que apesar de ser tão vítima da colonização como qualquer outra pessoa de sua terra, assume uma postura ativa na vitimização dos outros através da utilização de sua autoridade como forma de humilhar quem vem até ele.

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Freire se referia à ‘sombra introjetada’ para explicar que mesmo quando o colonizador se afasta ele continua marcando presença na vida do colonizado, através de tudo que foi internalizado por ele durante o período da colonização. As personagens kincaidianas analisadas nesse trabalho deixam clara a existência dessa sombra, quando, por exemplo, Annie reflete sobre o porquê comemorar o aniversário de uma rainha que não é nada para seu povo.

111 figura dos pais e dos amantes das personagens não têm grande importância, esse é um artifício da narrativa kincaidiana para exemplificar a necessidade de dissolução do patriarcalismo.

Esse processo de resistência e independência é muito doloroso porque influi diretamente na vida pessoal-familiar das personagens. De uma forma ou de outra Annie, Lucy e Xuela sentem ressentimento enorme pela maneira como são vistas e tratadas por seus familiares, em cada uma das narrativas vemos que elas são renegadas e sempre são postas em segundo plano; demonstrando que a ideologia repressora age constantemente desde a esfera particular (família) até a esfera pública (escola e trabalho). Em The Autobiography of My Mother a personagem sente o desprezo que vem da madrasta e a falta de afeto do pai, mas se sente ainda pior porque ambos dão tratamentos diferentes a ela (e à meia-irmã) em relação ao seu meio-irmão. Annie também é posta de lado pela mãe, não porque ela tenha outros filhos, mas porque em determinado momento da narrativa a mãe deixa de se importar com ela. O mesmo acontece com Lucy que se sente menosprezada pelos pais (principalmente pela mãe) que só pensam num futuro promissor para os filhos homens. Com exceção de Annie John vemos passagens nas narrativas que comprovam o fato de como o filho ‘varão’ é favorecido na sociedade patriarcal.

Cíntia Schwantes credita a posição secundária que a mulher ocupa nos mais diversos segmentos ao conceito de feminilidade tão propagado pela sociedade patriarcal:

Os ideais de feminilidade professados pelas sociedades ocidentais, quer sejam de Primeiro ou de Terceiro Mundos, baseiam-se no princípio de que as realizações de família, notadamente casamento e maternidade, são a fonte da realização da psique feminina – daí decorrendo as diferentes formas de exclusão à mulher. (2006, p. 10)

As três personagens afastam-se desses ideais de feminilidade e assumem uma postura de desconstrução desses ideais. Lucy revela todo seu descontentamento com o futuro que escolhem para ela, e sabe que esse futuro está relacionado ao fato de ser mulher, por isso recusa-se a segui-lo; mesmo Xuela, que acaba se casando com um homem branco, conhece as artimanhas da exclusão e se desvencilha delas através da conscientização em relação ao poder de seu corpo e

112 de sua sexualidade. Essa postura de resistência apresentada pelas personagens desses romances demonstra o desejo de desconstruir o conceito de inferioridade feminina que há tanto tempo rege as relações sociais; o mito da fragilidade189 mascara uma situação muito mais profunda, que diz respeito à questão cultural que rege nossas ações, para Beauvoir “as restrições que a educação e os costumes impõem à mulher restringem seu domínio sobre o universo” (1980, p. 479), ou seja, não é o fator biológico que determina a posição da mulher na sociedade190.

As três personagens apresentadas assumem uma atitude diferenciada em relação ao que se espera delas; Annie procura comportar-se de forma oposta a que sua mãe lhe ensina, tomando atitudes que revelam sua rebeldia ao sistema e aos ensinamentos maternos; Xuela afasta-se da figura mascarada do pai renegando tudo o que ele representa; e Lucy afasta-se da tentativa de reprodução por parte da mãe. É graças a essa desconstrução dos costumes e dos ideais de feminilidade que Annie, Lucy e Xuela se posicionam longe da exclusão e opressão próprias do sistema patriarcal-imperial.

Jamaica Kincaid aborda nesses romances o conceito de que a formação da identidade do sujeito acontece através de um longo e doloroso processo, e nele o ponto de vista individual, que engloba as experiências pessoais e as tensões desenvolvidas em relação à família, escola e sociedade; e o ponto de vista social, englobando as experiências culturalmente vividas e as tensões relacionadas ao seu lugar de origem são dois aspectos que não podem ser vistos separadamente, por essa razão quando as personagens criticam sua estrutura familiar elas também criticam a estrutura social, pois ambas representam lados de uma mesma moeda.

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Chamamos de mito da fragilidade o conceito que se sustenta na ideia de que a inferioridade feminina é algo natural, proveniente das diferenças biológicas entre homens e mulheres. Através do desenvolvimento desse mito o homem passa a ser visto como superior, e por isso é considerado o dominador, enquanto a mulher é dominada e submissa porque apresenta características ligadas à fragilidade. Nesse caso a mulher sempre necessitará de proteção, e o homem sempre será o responsável por essa proteção.

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Nosso intuito não é de negar as diferenças entre homens e mulheres, mas deixar claro que o fator cultural se sobressai ao fator biológico, afinal como nos lembra Blum: “A natureza provê; a sociedade ajuda a decidir.” (apud BRYM, 2006, p. 253).

113 São essas tensões que articulam o indivíduo e que fazem dele um produto das ‘identidades temporalizadas’191.

4.3 O Poder da Sexualidade como forma de Resistência: desconstruindo