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Formação – Migração – Memória: uma trilogia temática

4. Questões de Sexualidade, Identidade e Poder nos romances Annie John

4.1 Formação – Migração – Memória: uma trilogia temática

A escolha em analisar esses romances passa pelo reconhecimento de que existe uma conexão real entre eles, centrada na temática que eles abordam; mesmo não fazendo parte de uma ‘trilogia convencional’174 Annie John, Lucy e The Autobiography of My Mother funcionam como uma ‘trilogia temática’175. Além de recorrerem à mesma teia de assuntos (o papel da mulher na sociedade, a sexualidade, as consequências do colonialismo, o paralelo entre a relação mãe-filha com a relação entre nação-indivíduo, a construção da identidade) esses romances seguem uma espécie de roteirização no que diz respeito ao caminho das personagens até o momento em que o amadurecimento floresce; Annie, Lucy e Xuela iniciam a narrativa buscando respostas que deem sentido à vida que elas têm e é através da reflexão de suas experiências que elas superam os conflitos pessoais e seguem adiante. O amadurecimento que Kincaid imprime em suas personagens não se baseia pura e simplesmente pela passagem da idade (em cada livro a personagem se encontra mais velha), mas levando em conta as experiências vividas por elas e as atitudes que as personagens assumem ao longo da narrativa; o amadurecimento delas gira em torno da coragem e da determinação, resultado do processo de aprendizagem relacionado às experiências de vida de cada uma; esse amadurecimento também é responsável pelas novas experiências que cada personagem escolhe vivenciar.

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Normalmente a trilogia é formada por três obras que estão conectadas como um único trabalho, nesse caso indicaria um mesmo personagem que livro após livro segue uma jornada.

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A trilogia temática, por sua vez, é formada por três obras conectadas pelo tema abordado pela narrativa, dessa forma cada livro, apesar de apresentar protagonistas diferentes, explora a mesma realidade.

102 O evento morte aparece em cada romance com uma característica diferente. Em Annie John somos apresentados às primeiras experiências de Annie em relação à morte; o assunto gera a curiosidade na personagem, que passa a acompanhar cortejos e olhar alguns mortos, mesmo assim a personagem encara esses eventos com estranheza e medo, dada sua pouca idade esse universo é novo para Annie e por isso existe uma nuvem de mistério. Já no romance Lucy nos deparamos com a morte de um ente próximo à personagem – o pai – mas graças ao fato de Lucy não morar mais com a família esse evento parece ser algo distante, principalmente por que a personagem não nutre pelo pai sentimentos profundos de amor, o que ela sente por ele é quase indiferença. Só no romance The Autobiography of My Mother é que encontramos uma personagem que tem laços estreitos com a morte e por isso, ao contrário de Annie, não tem medo dela; Xuela nunca conheceu a mãe e viu todos os seus parentes (inclusive o marido) morrerem, ao afirmar no final do romance que “death is the only reality, for it is the only certainty, inevitable to all things”176 (KINCAID, 1996, p. 228) a personagem deixa claro que o evento morte fez parte de toda sua trajetória e por essa razão ela sente-se confortável com a situação e por causa de sua idade avançada espera pela morte com naturalidade. A forma como a morte é vista e encarada pelas personagens demonstra que existe um amadurecimento real que transparece durante a narrativa e a identidade das personagens é pensada e problematizada levando em conta as experiências vivenciadas por elas, experiências essas que terão impacto profundo no modo de pensar e agir de cada uma delas.

A vida em família é mais um tópico que deve ser observado com muita atenção, porque é nesse contexto que se apresenta o principal foco de conflito que as protagonistas enfrentam em sua jornada. Os três romances abordam a figura da mãe como algo determinante para o desenvolvimento das personagens, que, enquanto mulheres, teriam o papel de reconhecer a mãe como um modelo e imitá-lo, tornando-se complacente com o ambiente de subordinação comum à maioria das mulheres. Ao invés disso Annie e Lucy caminham em direção à rejeição dos valores propagados por suas genitoras; o afastamento geográfico presente em ambas narrativas (sendo que em Annie esse afastamento acontece no fim da narração e em Lucy ele se dá já no início) indica claramente o desejo de afastar-se física e

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103 emocionalmente desse ambiente dominador. No caso de Xuela a mãe continua exercendo um papel primordial na vida da personagem, no entanto o modelo a ser rejeitado passa a ser o pai, já que com a morte da mãe ele é o único parente que pode ter alguma influência na vida da personagem e graças ao seu comportamento opressor a afasta de seu convívio. É a partir desse ambiente conflituoso entre as personagens e seus genitores que as principais mudanças da narrativa acontecerão. Outro fator a ser considerado diz respeito ao florescimento das personagens em relação ao sexo. A personagem Annie ainda é muito jovem e por isso suas reflexões sobre o tema resumem-se ao seu desejo de manter-se livre e sua repulsa pela ideia de casar-se; esse desejo de não assumir nenhum compromisso também está presente na personagem Lucy, que apesar de uma vida sexual bastante ativa, não demonstra interesse em relacionar-se seriamente com ninguém. Apesar de ser a única entre as três personagens a se casar, Xuela também demonstra desprendimento em relação às relações sexuais, para ela, assim como para Lucy, o sexo deve ser uma fonte de prazer e não de obrigação; segundo Friedan o papel que a mulher desempenha na sociedade tem a ver com a mistificação da feminilidade da mulher, pois segundo a escritora americana “a voz da tradição e da sofisticação freudiana diziam que [a mulher] não podia desejar melhor destino do que viver a sua feminilidade.” (1971, p. 17) As personagens analisadas acabam contrariando essas prerrogativas (principalmente Lucy e Xuela, por já terem experiência sexual) porque desconstroem esse conceito de feminilidade. Elas descobrem que o seu corpo é um templo que é só delas, e que, por essa razão, elas devem tomar as decisões em relação a ele; o fato de Xuela não demonstrar vergonha sobre o ato de masturbar-se é uma prova irrefutável de que a personagem não tem problemas em assumir seus desejos, sua escolha pelo aborto comprova que a personagem não foge em assumir a responsabilidade por seu corpo.

A perspectiva da narrativa kincaidiana se sustenta no desejo por desmistificar o sentimento da mulher em relação a si mesma (da mesma forma que desmistifica o sentimento do indivíduo em relação ao seu lugar de origem), desconstruindo e (re)construindo valores que não ignorem a identidade feminina. Os romances apresentam uma trajetória linear responsável pelo processo de aprendizagem e,

104 consequentemente, amadurecimento das personagens; para isso faz-se necessário levar em consideração alguns aspectos, que abordaremos em seguida.

No romance Annie John encontramos uma narrativa que se desenrola através das características de um romance de formação, nele o caminho percorrido por Annie é narrado enquanto a personagem ainda é criança, a narradora mostra sua vida e seus conflitos entre a infância e adolescência e como alguns eventos (como o distanciamento da mãe) influenciam sua decisão de sair de casa. Nesse contexto em que se aborda o processo de formação da personalidade e identidade encontramos uma menina que passa por uma experiência traumática, materializada na cena da primeira menstruação.

Seguindo na mesma direção em relação ao desejo de afastar-se da figura materna aparece Lucy, nesse romance a personagem já se encontra com dezessete anos (a mesma idade que Annie tem no final do outro romance) e já saiu de casa. O início da narrativa mostra exatamente como é a chegada de Lucy aos Estados Unidos e como ela se sente desapontada com o que vê. Aqui o ponto central a ser analisado são as consequências da migração da personagem, uma vez que Lucy confirma sua busca por uma identidade que seja desvencilhada da identidade da mãe o deslocamento da personagem acaba se tornando mais que o resultado desse desejo, ele é um meio para consegui-lo.

No caso de The Autobiography of My Mother a memória é a peça chave para entendermos a vida da personagem; aos setenta anos e à espera pela morte, Xuela narra os eventos que fizeram parte de sua vida, desde a infância até a idade adulta, utilizando-se da memória para resgatar a figura da mãe com o objetivo de conhecer a si própria. Diferentemente das outras duas personagens Xuela já viveu toda uma vida e demonstra ter mais segurança sobre o que o futuro reserva para ela; as experiências que Xuela rememora são parte de sua trajetória e ajudam a explicar as escolhas que a personagem faz ao longo da narrativa.

Esses três romances sustentam-se numa tríade: a formação de Annie, a migração de Lucy e a memória de Xuela. Na condução de um romance para outro vemos que existe um fio condutor que acaba sendo justamente o que deixa esses romances com a característica de uma obra de trilogia: primeiro vemos uma

105 personagem ainda no período da adolescência, que precisa passar por determinadas experiências no âmbito familiar e escolar para descobrir a necessidade em firmar-se longe do jugo patriarcal-imperial; em seguida encontramos uma personagem que começa a narrativa com a mesma idade que a outra personagem tinha e que não mais está com sua família de sangue, mas acaba aprendendo similaridades entre sua mãe e sua patroa, essa personagem não mais frequenta a escola regular, mas já trabalha e já demonstra interesses específicos em relação ao seu futuro (como a fotografia); por fim temos uma personagem que já está no fim da vida e com muita clareza e serenidade reflete sobre os acontecimentos de sua jornada, destacando seu interesse em resgatar a história de sua mãe, porque há um reconhecimento da personagem por essa história.

Nos três romances a questão da identidade é trabalhada de maneira sutil e honesta, em todas as narrativas encontramos uma linha muito tênue entre passado e futuro, ao encararmos a identidade como sendo um conceito que está “grounded in the shifting space between the past and the future through the subject’s present agency, which results from his/her positioning within and by culture”177 (WALTER, 2003, p. 26) perceberemos que nenhuma de nossas personagens seria capaz de contar sua história, de viver suas escolhas se não desenvolvesse um senso comum capaz de conectar passado e futuro, pois para entender a construção da identidade como o resultado das experiências culturalmente híbridas que o sujeito passa a entrar em contato e que moldam a vida contemporânea ininterruptamente (WALTER, 2003) não podemos deixar de lado o papel que o passado desse indivíduo (ou dessa nação) representa para sua visão do presente e suas escolhas para o futuro.

Cada uma das personagens, em diferentes níveis e contextos, desenvolve uma identidade diaspórica, que será responsável pela maneira como as personagens encaram a vida. Entretanto a questão diaspórica é minimizada na personagem Annie porque ela só sai de casa no fim do romance; enquanto isso Xuela não chega a sair do país, no entanto separa-se constantemente de sua família. Com a personagem Lucy vemos mais fortemente essa realidade porque todo o romance é narrado já com a personagem fora de seu país.

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“aterrado no espaço de deslocamento entre passado e futuro da atividade atual do sujeito, que resulta no posicionamento dele/dela na e pela cultura”

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