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3. CULTURA COMUM E CURRÍCULO

3.2 As teorias de currículo

O trabalho de Silva (2003) apresenta um panorama geral das teorias de currículo. Esse panorama se forma a partir do reconhecimento de formas distintas de se pensar o currículo e a educação escolar. O autor propõe uma divisão em três tipos gerais de teorias: as tradicionais, as críticas e as pós-críticas. Mas quais são as características de cada uma delas? O que as diferencia?

Basicamente, as teorias tradicionais se apresentam como pretensamente neutras, e colocam o foco nos métodos, na didática e nas formas de organizar e planejar o ensino escolar. O conceito de eficiência é central nessa visão. O currículo é visto como uma ferramenta metódica ou burocrática da escola. Os objetivos e finalidades da educação não são discutidos, mas considerados dados a priori pelo mercado de trabalho. A tarefa da escola, de acordo com essa visão, é preparar o aluno para inseri-lo na sociedade tal qual ela é. A transformação social não é uma preocupação. O currículo não assume um caráter reflexivo e fica reduzido a uma questão de organização do trabalho escolar, e de transmissão pura e simples do patrimônio cultural “dominante”.

É evidente que essa visão de currículo é incompatível com a ideia de cultura comum defendida por Williams (2011a, 2015). Só o reconhecimento de que cultura comum é um vir a ser (ou seja, uma condição social ainda inexistente, mas possível) é suficiente para afirmar que a visão tradicional de currículo não pode ser um caminho para sua realização, uma vez que o compromisso com a transformação social é necessário.

As teorias críticas de currículo representam um avanço importante nessa área de estudos. Elas trazem à discussão a importância das relações de poder e da dominação cultural que se reproduzem por meio do currículo. A tomada de consciência desse processo e a emancipação do ser humano passam a ser vistos como objetivos importantes da educação. Por essas razões, as teorias críticas se aproximam mais da perspectiva de Williams, pelo menos em um sentido básico, uma vez que expressam um compromisso com a transformação social. A vinculação entre educação e poder também é compatível com as análises do autor galês, sendo uma discussão fundamental para nossa pesquisa.

Por outro lado, as teorias críticas apresentam uma limitação importante, pois tendem a polarizar a cultura entre ‘cultura dominada’ e ‘cultura dominante’, e não colocam a diversidade humana como conceito básico. Essa tendência de pensar a

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cultura de forma polarizada corre o risco de reproduzir o processo de massificação da cultura e do ser humano, processo esse bastante criticado por Williams (2011a).

Já as teorias pós-críticas destacam a importância da diversidade cultural e identitária. Elas superam a polarização mencionada das teorias críticas, e essa é uma contribuição importante e coerente com as ideias de totalidade, comunidade e igualdade de ser, que Williams utiliza com frequência em suas reflexões sobre cultura.

Por outro lado, um elemento com forte presença na visão pós-crítica é o reconhecimento do caráter discursivo do currículo. Essa característica não dialoga necessariamente bem com os estudos de Williams, dependendo da forma como for interpretada. Segundo essa visão, o currículo é visto como discurso socialmente construído, e como tal, possibilita ou silencia a afirmação das identidades dos diversos grupos culturais. Reconhecer que o currículo apresenta uma dimensão discursiva é algo que, por si só, não contradiz a perspectiva geral de cultura de Williams. Mas se esse reconhecimento acontecer de uma forma radical, reduzindo o currículo à sua dimensão linguística, então ele entra em conflito com uma base teórica importante do autor – o materialismo cultural. Para Williams, a base econômica de uma sociedade e suas relações de produção, ainda que não determinem completamente a forma de uma cultura, exercem influência considerável sobre ela. Sua análise da cultura se apoia sobre três dimensões (ideal, social, documental) e sobre três modos de apropriação dos padrões culturais (criação, comunicação, experiência vivida). Por isso, nessa perspectiva, não faz sentido reduzir qualquer elemento da cultura a uma única dessas dimensões.

Vale lembrar que essas categorias (tradicional, crítica, pós-crítica) são apenas classificações gerais, que visam nos oferecer uma linha de pensamento sobre o panorama histórico das teorias de currículo. Elas não precisam ser pensadas como conceitos rígidos, que nunca se misturam. No interior de cada categoria é possível encontrar diferenças específicas entre teorias específicas. Além disso, é possível conceber visões híbridas de currículo, que trazem elementos de diferentes categorias. Com esse espírito, podemos concluir, em uma primeira aproximação, que há uma forte incompatibilidade entre a visão de cultura de Williams e a visão tradicional de currículo. Por outro lado, tanto as concepções críticas quanto as pós-críticas trazem elementos compatíveis com as ideias do autor, desde que esses elementos sejam avaliados com os cuidados necessários.

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Enquanto as teorias tradicionais parecem querer isolar a escola da sociedade que a cerca, deixando ocultas as intenções políticas da educação, as outras estabelecem melhor o diálogo entre a educação escolar e a sociedade, especialmente no que se refere às relações de poder. No entanto, parece haver uma compatibilidade maior da teoria cultural de Williams com as visões críticas do currículo: a ênfase maior da categoria classe social; a base teórica no materialismo histórico; a busca de uma construção teórica que valoriza o global, o universal, e não apenas o local; o foco nas relações entre poder econômico e educação – todas essas características, em seu conjunto, apontam mais para uma visão crítica do que pós-crítica para esse referencial. Isso não significa negar as contribuições do segundo grupo, mas apenas afirmar a linha principal de trabalho para esta pesquisa. Por essa razão, é nessa direção que os estudos de currículo desta pesquisa se desenvolveram: em uma perspectiva crítica.

Ao discutir o significado geral das teorias de currículo, na introdução de seu livro, Silva (2003) apresenta duas vertentes principais: uma, a visão tradicional de teoria, é aquela que considera o currículo como uma realidade prévia, e a teoria como sendo o movimento de descrever e explicar essa realidade, de forma objetiva e verdadeira; a outra, a visão pós-estruturalista, considera que as teorias, ao tentarem descrever um objeto, participam necessariamente da criação desse mesmo objeto, como se a teoria e a realidade estivessem entrelaçadas. Nessa segunda vertente, as teorias se aproximam da ideia de um discurso sobre o currículo, e cada discurso cria noções particulares a respeito do seu objeto, sendo que essas noções podem ser incorporadas às práticas sociais reais, contribuindo para dar forma a essas práticas.

Para os fins desta pesquisa, parece não ser adequado adotar qualquer dessas vertentes isoladamente. Faz mais sentido assumirmos aqui a seguinte posição. Por um lado, há certos elementos que podem ser identificados de forma mais objetiva nos currículos existentes: os saberes explicitamente selecionados para o ensino, os objetivos educacionais declarados, as formas de ensinar que se concretizam em sala de aula, os modos de avaliação aplicados, etc. Nesse sentido um currículo pode sim ser descrito. Por outro lado, há uma série de significados e intenções que pertencem mais à forma como as pessoas e instituições interpretam o currículo. Ao descrevê-lo, como nos posicionamos com relação a ele? O que consideramos aceitável ou inaceitável em um currículo? O que não está lá, que gostaríamos que estivesse? Quais são nossas expectativas com relação ao projeto educacional?

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Em síntese, podemos dizer que há uma dimensão objetiva e uma dimensão discursiva relacionada ao currículo, nunca reduzindo a análise a apenas uma ou outra dessas dimensões. E quando avaliamos uma teoria curricular, é seguro afirmar que ela nunca é uma descrição totalmente objetiva e verdadeira. Do mesmo modo, é seguro afirmar que ela nunca é totalmente um discurso criador da realidade.

Talvez faça mais sentido pensar na ideia de uma teoria de currículo como uma construção humana, dotada de um potencial descritivo e um potencial criador. Toda teoria tem um potencial descritivo, podendo representar bem determinados aspectos da realidade, mas deixando escapar outros. E toda teoria tem um potencial criador, pois enquanto discurso pode gerar e propagar sentidos. Mas esses sentidos só se tornam realidade na medida em que um conjunto de forças sociais se mobiliza para torná-los realidade. Ou seja, uma teoria não é criadora por si só, ela precisa de condições históricas, políticas, econômicas – entre outras – para que seus significados se materializem nas relações sociais. Esse tipo de leitura é coerente com a base teórica de Williams – o materialismo cultural – e por isso pode nos orientar na construção desta pesquisa. É com esse sentido que buscamos desenvolver este trabalho.

Para identificar e compreender as possíveis relações entre a ideia de cultura comum, na linha defendida por Raymond Williams, e os estudos de currículo, é importante compreender as relações entre currículo e poder.