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As vaquejadas: traço cultural da identidade dos “sertanejos resignados e

Para adentrarem na caatinga, os vaqueiros, montados sobre seus cavalos, usavam chapéu e guarda-peitos de couro, gibões, perneiras. Utilizavam largos peitorais e cabeçadas para proteger os animais no contato com a vegetação nativa. A entrada na caatinga não consistia em mero ato rotineiro do dia de trabalho, mas também um momento que os vaqueiros tinham para demonstrar a sua coragem, força e agilidade. A vitalidade, destreza e fortaleza dos sertanejos na lida com o gado na caatinga foi retratada por autores brasileiros como Euclides da Cunha (1963) em Os Sertões, e José de Alencar (1969) no romance O

Sertanejo, que expressaram de forma detalhada essa representação cultural sertaneja.

Manuel Correia de Andrade (1986), ao abordar a criação de gado no Agreste e Sertão, explanou as diferenças entre a apartação e vaquejada. No dizer desse autor, a apartação significava uma festa proporcionada pelo fazendeiro para tentar recompor parte do seu rebanho, com a procura dos animais bravios na caatinga. Essas investidas, posteriormente, transformaram-se em rituais festivos e de sociabilidade; organizados pelos fazendeiros, atraíam as comunidades próximas e distantes. Da apartação do gado e da busca de animais na caatinga nasceu a vaquejada, uma festa rural popular em todo o Sertão nordestino. Sobre a ocorrência dessas festas, Cascudo (1979) destaca não reconhecer registros antecedentes a 1870. Contudo, exprimiu que as vaquejadas precedem a esta data, um reflexo da exploração pecuarista que antecedia tal período.

Nessa festa popular, alguns animais, considerados selvagens, temidos pelas suas peripécias, incitavam os vaqueiros ao desejo de dominá-los. Tais animais eram enaltecidos7 na literatura de cordel, bem como em romances de vários autores brasileiros como O Sertanejo de José de Alencar (1969) como o boi Dourado e o Ruço. Da mesma forma, em Os Contos

Populares no Brasil, Silvio Romero (1954) destaca os versos populares as façanhas dos bois

Epitácio, Surubim e da Vaca Burel. Esses animais alcançaram sua fama em praticamente toda a região nordestina. A fama de outros não ultrapassava as áreas circunvizinhas. As proezas do boi e a “glória” ou honra do vaqueiro ao conseguir domar os animais famosos, lendários foram exaltados por cantadores e inspiraram os versos dos cordéis de autores regionais.

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Os animais eram enaltecidos ou exaltados na literatura de cordel, em romances e nas canções populares pelas suas peripécias, considerados como os mais temidos e que não se deixavam arrebatar ou derrubar após implacável investida dos vaqueiros. À medida que as acometidas são fúteis, os comentários do público presente propagavam-se nas cercanias, e, nas próximas vaquejadas, aquele(s) animal(is) eram motivo de desejo pelos vaqueiros na tentativa de alcançar dessa forma a fama com a derrubada ou a doma dos mesmos. Quanto maior o número de investidas dos vaqueiros sem sucesso, maior a fama do animal.

No contexto, o labor torna-se festa, a seriedade do trabalho como cumprimento da obrigação, torna-se alegria. Essa alegria se revestia no encontro com os amigos, na demonstração da habilidade, da destreza e do vigor físico dos vaqueiros.

No presente, a vaquejada da caatinga restringe-se a espaços circunscritos e não apresenta como objetivo a apartação do gado. Essa festividade é praticada durante alguns dias nos turnos matutino e vespertino, comumente entre as terças e quintas-feiras. Logo, a escolha dos referidos dias espelha uma relação com a feira semanal frequentada por esses atores e usualmente realizada em dias alternados nos municípios circunvizinhos. Esse encontro para os vaqueiros é considerado como ímpar, incomparável, momento de descontração e de rever os amigos, mostrar sua habilidade e, ou recordar os feitos passados. Como cita Machado (2002 p.344), “a festa é um dos momentos de realizar o encontro com as raízes fundantes de estabelecer parceiros, de (re)construir uma humanização perdida”. A vaquejada é considerada como um jogo para alguns dos participantes e, ou como uma brincadeira fato esse constatados nas pesquisas de Maia (2000) e Menezes e Almeida (2008).

A simbologia da vaquejada está disseminada no imaginário do sertanejo, como um ritual de interação social e entretenimento, amplamente divulgado pelos nordestinos. Essa tradição está arraigada na memória e constitui um dos exemplos da identidade territorial. Todavia, essa festa tradicional apresenta algumas mudanças. Os bois são soltos em direção da caatinga; anteriormente iriam os vaqueiros procurar os bois que estavam embrenhados no mato. Entretanto, ainda são utilizados animais rústicos denominados popularmente pé duro, muitos desses criados praticamente para este fim. De acordo com relatos de agricultores e ex- participantes da disputa, esses animais rústicos são ainda mantidos em seus estabelecimentos rurais, seu objetivo é contribuir e reforçar a continuidade da brincadeira. Esses atores sociais contribuem na logística da festa e praticamente nada auferem com a utilização dos seus animais. Geralmente, eles recebem uma ajuda ou auxílio para o deslocamento do gado, um valor simbólico

Os vaqueiros, guardiões da memória, narram as mutações da festa no decorrer do tempo. As alterações no conjunto de predicados existentes durante a brincadeira, com relação às festas e às distribuições de alimentos, evidenciam as dificuldades econômicas para a organização e manutenção na atualidade. Rotineiramente são encontrados idosos que participaram dessa festa e que, impossibilitados da disputa efetiva, repassam os ensinamentos aos seus familiares. Eles, muitas vezes, contribuem efetivamente com recursos financeiros para o pagamento da inscrição a fim de que os vaqueiros descapitalizados demonstrem o seu

talento com a lida do gado. Esses fatos remetem à discussão de Haesbaert (2007, p. 51) sobre a identidade e o retorno às territorialidades mais exclusivistas ao assinalar:

Diante da aparente perda de referenciais identitário-territoriais e/ou frente a uma crescente fragilização material e simbólica, ou ainda através de uma avaliação crítica (por aversão ou temor) em relação à velocidade das transformações e multiplicidade desses referenciais, muitos grupos se apegam às suas raízes identitárias, que se tornam assim uma espécie de último “capital” simbólico[...].

Esse pretenso apego às raízes, nos referidos atores abnegados, reflete-se como uma prerrogativa da identidade manifestada pelo temor, pela insegurança e imprevisibilidade da sua festa como uma marca identitária, um retrato da posição social e econômica dos participantes e organizadores na atualidade. Os vaqueiros, de acordo com a identidade tipificada por Bassand (1990), foram considerados por Almeida (2008) como resignados e tradicionalistas.

Essas vaquejadas tradicionais, em virtude da rusticidade das áreas nas quais são realizadas (caatinga fechada), dos tipos de animais - cavalos e bois, e da premiação8 distribuída aos vencedores, raramente atraem categorias citadinas. Os advogados, médicos e outros profissionais que poderiam ser considerados como os neorurais participam das festas organizadas nos parques de vaquejadas localizados nas fazendas e nos centros urbanos. Nessas festas organizadas em parques, os cavalos utilizados são geneticamente superiores, de alto valor comercial (quarto-de-milha) e o local de realização dessas vaquejadas (re)inventadas são pistas construídas nas quais o cavalo correrá sobre a areia sem nenhum obstáculo (MAIA, 2000). A tradicional pega do boi na caatinga consiste em festas locais, cujos atores principais e seus coadjuvantes são homens simples, cuja história está associada à criação ou lida com o gado e que perpetuam essa prática lúdica com seus descendentes, como uma legítima “identidade do grupo pelo laço territorial, indestrutível” (HAESBAERT, 2007, p. 53).

Em Sergipe, a pega do boi na caatinga continua viva no Sertão Sergipano do São Francisco. Menezes e Almeida (2008) relatam a tradição dos sertanejos com a criação do gado, sustentáculo da sua família; têm nessa brincadeira um momento de confraternização entre os seus pares e a maneira de demonstrar sua força, vitalidade e coragem.

8 A premiação nas vaquejadas da caatinga está imbuída por um valor simbólico. Muitas vezes o valor da

inscrição é superior ao prêmio recebido. Esses prêmios: bezerros, miunças (carneiro e ovelha), selas, botas e garrafas de bebidas, são adquiridos por meio da rede de sociabilidade com doações feitas pelos amigos, vizinhos, parentes e outros.

Esse sertanejo, no decorrer do tempo, deixa as suas marcas por meio das práticas desenvolvidas no meio ambiente, enfrentando as dificuldades e aproveitando as benesses oferecidas pela natureza. As práticas empreendidas pelos sertanejos e o significado das suas marcas no território auxiliam no conhecimento do modo de vida, as tradições e atividades econômicas dominantes no Sertão Sergipano. Em sequência, adentra-se na área específica da pesquisa empírica para apreender as atividades econômicas, suas alterações e as permanentes tradições.

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