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AS VOZES FEMININAS E A REPRESENTATIVIDADE SOCIAL

No documento A: AUTORIDADE, ARTE, ADULTÉRIO (páginas 37-41)

CAPÍTULO 2 SOCIEDADE – IDENTIDADE – ADULTÉRIO

2.2. AS VOZES FEMININAS E A REPRESENTATIVIDADE SOCIAL

Os discursos femininos no romance colocam ainda em questão a forma pela qual a mulher puritana se representa na sociedade. Considerando a fala de um sujeito sempre exposta a partir de uma posição histórica e cultural específicas,67 Woodward68 aponta o problema da representação fundamental à formação ou fortalecimento de identidades; portanto “quem e o que nós representamos quando falamos?” é um questionamento necessário na investigação identitária. O problema da representação feminina no seu processo de formação identitária reside, contudo, em um aspecto antecessor ao questionamento levantado, pois é “crucial conhecer quem pergunta pela identidade, em que condições, contra quem e com que propósitos.69” Acreditamos que, neste ponto da discussão, somos mais capazes de responder esses elementos cruciais para a construção identitária feminina puritana do que as mulheres de The Scarlet Letter. Sendo assim, como seriam elas capazes de questionar acerca de sua identidade? Não acreditamos que isso fosse uma preocupação para elas, uma vez que esse quem representado na fala das mulheres em A Praça do Mercado é incapaz de se auto representar. Ao mesmo tempo em que as identidades são definidas dentro da prática discursiva, na qual relações sociais e históricas dos agentes envolvidos são preponderantes para os rumos dessa definição, entendemos esse caso de representação também como fruto das relações sociais e históricas de uma cultura. Na situação local narrada em The Scarlet Letter, não acreditamos que essa impossibilidade de autorrepresentação se vincula somente à falta de autodeterminação da mulher sobre sua subjetividade, mas também ao fato de que a subserviência feminina não se limitava ao rigor hierárquico da Ordem Social Puritana.

Uma vez que ela não é capaz de ser agente de sua representação, resta-nos indagar o que a mulher puritana representa em seu discurso. Distante de representar um indivíduo, essa mulher representa um conceito feminino servil, cuja aplicação prática na sociedade esta centralizada na figura do homem. Esse conceito feminino calcado na servidão, por sua vez, não estabelece uma relação entre o ser que representa e uma subjetividade completamente capaz de se representar, pois o objeto de representação da cultura puritana não dava importância ao indivíduo, mas à coletividade; como membro desse eu coletivo, salientado por Hall como artificialmente imposto, cada membro da comunidade deveria estar comprometido com o contrato de salvação de todo o seu grupo. A resposta à questão sobre o que os puritanos representavam em seu discurso é, portanto, uma espiritualidade coletiva, alheia a individualidades e subjetividades. A situação da mulher puritana se agrava, primeiramente,

__________ 70. Baym, 1986. p 7. 71. Ibidem. p 195-196.

72. Woodward in Silva, 2009. p 71.

73. Leites, 1986. p 178 – aqui o autor se refere à restrição da mulher à universidades e demais instituições como anterior ao século XVIII, não sendo abrangendo todo o Puritanismo, no entanto The Scarlet Letter se refere a um período anterior, século XVI, permitindo-nos aplicar essa referência às mulheres apresentadas no romance.

em razão da organização hierárquica imposta pela Ordem Social Puritana. Embora não fosse a única ferramenta aplicada pelo sistema paternalista a favor da submissão feminina, tal disposição social colocava a mulher em uma posição inferior ao homem, impedindo-a de desempenhar papéis relevantes na sociedade. Esses impedimentos nos apontam para um quadro cultural que negava à mulher o direito de qualquer representação, não somente a sua, mas também a de representar qualquer outro integrante da comunidade, uma vez que a Ordem Social cerceava a mulher do direito de exercer cargos políticos, de ocupar cargos na magistratura e em qualquer repartição pública.70 Notadamente, isso se dá em razão da

natureza ter favorecido o homem em sua capacidade decisória, tornando-o mais apto para o exercício de funções administrativas de relevância comunitária - pelo menos de acordo com o princípio puritano de Hierarquia Recíproca,71 parâmetro unicamente biologizante para a determinação das representatividades sociais que torna o poder inalcançável para a mulher; encontramos, portanto, o grupo social feminino legado à submissão ao grupo social dos homens em todos os aspectos da vida pública. Entendemos que essas sujeições ao grupo masculino expressavam-se socialmente por um conjunto de incapacidades por ele ditadas. Por ser mulher, era incapaz de julgar, mas estava ao alcance das leis, cuja dosimetria era diferenciada sobre ela, sujeita a restrições morais mais severas: Por quê? Por ser mulher. Também por isso, era incapaz de governar, sujeitando-se a políticas públicas e direcionamentos de sua comunidade voltadas para o grupo social antagônico,72 mas era essencial à existência do Estado. Por ser mulher, era incapaz de frequentar universidades e outras instituições de formação de consciência,73 estando, por isso sujeita à consciência social masculina; esses cerceamentos expressavam-se inclusive no campo econômico, pois, embora consumidoras, tinham sua participação nas práticas comerciais bastante limitadas.

Dessa forma, o “o que” representado na fala das mulheres puritanas é uma espiritualidade e um valor moral construídos hierarquicamente de modo a favorecer o grupo social opressor. Como resultado dessa prática discursiva hierárquica paternalista temos um fortalecimento do homem nesse grupo social dominante. Como vemos,

A hierarquia de gênero não apenas libertou os homens de ter que viver uma vida completamente moral, mas os sustentou em seu papel de mais poderosos. A crença tradicional ocidental no valor superior dos homens tinha apoiado (e sido apoiada) um maior poder tanto legal como social do sexo masculino. As idéias do Iluminismo quanto à mulher forneceram novos argumentos para a já antiga exclusão delas da vida pública, bem como os argumentos para a nova exclusão no comércio. Os

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74. Leites, 1986. p 199.

75. in Cudd and Andreasen, 2005. p 13. 76. Ibidem.

77. in Cudd and Andreasen, 2005. p 11. “Nay, it is vain to expect that strength of natural affection which would make them good wives and mothers. Whilst they are absolutely dependent on their husbands they will be cunning, mean, and selfish; and the men who can be gratified by the fawning fondness of spaniel-like affection have not much delicacy, for love is not to be bought” Tradução Nossa.

78. Ibidem.

puritanos tinham já esperado que as mulheres tomassem parte no comércio na medida em que tinham que partilhar da gerência da economia doméstica, que produzia tanto como consumia. Mas, de acordo com a idéia iluminista de gênero, as mulheres eram por demais inocentes e elevadas para tomar parte na sujeira, rudeza e confusão, tanto da vida política quanto dos negócios.74

Esse apontamento nos mostra uma inferiorização feminina, descrita por Mary Wollstonecraft como destrutiva na Reinvindicação dos Direitos das Mulheres de 1792;75 segundo a autora, essa relação hierárquica se dispõe como uma herança presente no caráter humano, fazendo com que as mulheres sejam mais rebaixadas e limitadas tanto quanto possível pelo homem, o qual se “mantém em certo degrau manifestando suas faculdades transformando-se em soldados e homens do estado.76” O que Leites nos mostra, contudo, é que inúmeros aspectos da vida pública eram vetados à participação feminina. Considerando a importância do comércio para uma economia incipiente como a da colônia, a exclusão feminina da vida comercial/econômica restringe ainda mais a participação social do grupo feminino, submetendo-o ainda mais às direções dadas pelo grupo dominante. Para Wollstonecraft,77 “é vão esperar virtude das mulheres até que elas sejam, em certo grau, independentes dos homens”. Essa dependência, por sua vez, é o lastro que sustenta todo o ciclo de sujeição feminina; uma vez sendo aplicada a política da submissão entre os gêneros, aqueles dominantes tendem a se manter nessa posição, e sendo recompensados pela opressão que executam através da “bajulação, carinho e afeto” de suas esposas78. Isso ressalta uma submissão feminina superior ao campo da organização social hierárquica. Ainda que essa hierarquia fosse executada de maneira um pouco mais branda dentro do lar, permitindo à esposa certo posicionamento quanto aos assuntos relativos à vida familiar, sem, contudo, qualquer capacidade decisória, entendemos que a hierarquia de gêneros puritana tem extensão não somente na vida pública da colônia, refletindo-se também na vida privada de maneira a sedimentar os alicerces necessários para a construção de um grupo feminino socialmente desvozeado.

Uma vez que o objeto da representação na fala da mulher puritana não é um eu individual; a representação feminina está atrelada a uma coletividade cuja subjetividade é limitada somente à parte que lhe cabe na construção desse eu coletivo. Isso nos leva a mais uma das representatividades vedadas à mulher da Nova Inglaterra. Considerando as

__________ 79. Leites, 1986. p 44.

80. Milton in Morgan, 1966. p 20. “for although the creatures had access to God only through their superior, man” Tradução Nossa. 81. Campbell, 1990. p 211.

82. Morgan, 1966. p 21-25. 83. ibidem. p 25.

características religiosas e paternalistas da colônia, não seria de se estranhara proibição da mulher na prática do ministério religioso. Embora essa seja uma restrição comum a diversas outras culturas, a peculiaridade da sociedade retratada em The Scarlet Letter é a disposição do homem não apenas como monopolizador da representação religiosa no grupo, ocupando os cargos de ministério religioso. O que percebemos é uma sociedade em que a figura do marido ganha um status de líder religioso para toda a família, atribuindo-se a ele tanto a capacidade quanto a responsabilidade de regular suas atitudes como cabeça da família a fim de alcançar o “Amor Universal e Sagrado Afeto, abstraindo-se a si mesmo com a Divina Essência”; devendo “ligar seu próprio centro, se ele o tem, ao centro do Divino Ser.”79 Embora todos pudessem orar independentemente, todas as “criaturas tinham acesso a Deus apenas através de seu superior, o homem,80 dispondo, assim, a figura masculina como essencial ao núcleo espiritual da família, do casamento, “a pequena igreja dentro da Igreja,81” bem como de sua Ordem Social baseada na Lógica dos Relacionamentos;82 essa Lógica dos Relacionamentos era parte do discurso puritano que estabelecia a ordem das coisas de acordo com a ordem da criação, visando estabelecer modelos de relacionamentos entre as pessoas; em diversos níveis, essa Lógica constituía mais um elemento de categorização da sociedade, fortalecendo as hierarquias sociais e de gênero. Como aponta Morgan,83 esse discurso apoiava o congregacionalismo puritano, delegando força às classes dominantes (invariavelmente masculinas) de maneira a constitui-las como o único poder, estando acima até da própria democracia. Dessa forma, além da subordinação imposta ao grupo social feminino, a subordinação espiritual deste também é visível. Percebe-se, pois, a ausência de espaços sociais em que a mulher pudesse se reconhecer como indivíduo portador de subjetividades; esses espaços de performance subjetiva eram irrestritamente masculinos, não restando à mulher sequer o próprio lar, pois a organização familiar não era muito diferente da organização da igreja e da sociedade puritana.

O discurso religioso puritano moldava a família como uma instituição espiritual baseada no modelo social da colônia. Assim como os clérigos possuíam uma autoridade tanto ou mais influente quanto aquela de que dispunham os políticos e magistrados na Nova Inglaterra, dentro do lar essa autoridade era executada pelo marido em uma espécie de delegação do poder dos ministros. Sendo o marido o ente responsável pela representação de toda sua família, ele tinha em suas mãos a obrigação de zelar pela formação espiritual dos seus membros, dando-lhes lições sobre as Sagradas Escrituras e interpretando-as de forma a

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84. in Morgan, 1966. p 20. “Wives were instructed that woman was made ultimately for God but immediately for man” Tradução Nossa. 85. Morgan, 1986. p 1.

86. Ibidem. p 6. 87. Ibidem. p 7.

88. Cotton in Morgan, 1986. p 7. “If God make a Covenant to be God to thee and thine, then its thy part to see it, that thy children and servants be Gods people” Tradução Nossa.

fazer com que suas palavras ressoassem em sua casa como a própria palavra de Deus. De fato, ele era para sua esposa e os demais membros o próprio Deus dentro de casa, devendo ser adorado como tal. Segundo Jonathan Mitchel84, as “esposas eram instruídas que a mulher foi feita para Deus como propósito final, mas para o homem como propósito imediato.” Não havia, portanto, possibilidade para a existência de um eu independente daquele caracterizado pelo papel de esposa puritana, pois a subserviência ao homem era um elemento presente na educação da mulher; não percebemos essa mulher como capaz de se reconhecer na execução de um papel submisso, uma vez que suas raízes culturais estavam atreladas a políticas paternalistas reprodutoras de um pensamento androcêntrico. Tanto a educação quanto a manutenção desse sistema opressivo à mulher era legitimado nas práticas religiosas realizadas dentro e fora da Igreja. No ambiente eclesiástico, a privação da prática de liderança religiosa era expressa nitidamente por meio da exaltação do homem como o responsável pela glorificação de Deus; observa-se então a figura do cabeça da família como caminho pelo qual a família deveria seguir em direção à salvação, objetivo primordial de todo membro da comunidade puritana. Essa salvação, por sua vez, era vista mais como um resultado automático conseguido através da completa obediência às ordens sociais impostas pela Igreja do que necessariamente um bem adquirido ao final de uma vida santificada.85

No documento A: AUTORIDADE, ARTE, ADULTÉRIO (páginas 37-41)