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A Asignación Familiar e o processo de sua desvinculação das proteções para os trabalhadores

2 A TRAJETÓRIA DE UM PAÍS DEPENDENTE E O DESENVOLVIMENTO DAS PROTEÇÕES SOCIAIS

2.5 A Asignación Familiar e o processo de sua desvinculação das proteções para os trabalhadores

Durante este longo processo de consolidação da hegemonia neoliberal na orientação das ações estatais, a Asignación Familiar sofreu diversas mudanças que essencialmente a foram desvinculando das proteções estabelecidas para os trabalhadores e orientando-a para os estratos mais empobrecidos.

Neste sentido, se destacam as mudanças implementadas na década de 1990, durante os governos democráticos (FILGUEIRA et al., 2004), momento no qual as políticas sociais sofreram as maiores reorientações e a AFAM também consagrou suas principais mudanças, de singular interesse para esta análise, dado que, neste contexto, se constituiu numa política focalizada nas famílias de menores rendas e foi desvinculada pela primeira vez do mundo do trabalho.

No entanto, o processo transformador desta política começou antes. A lógica liberal se expressa já desde as primeiras modificações que sofreu a política, claramente orientadas pelo princípio de outorgar liberdade ao capital, num contexto no qual o diagnóstico começa a ser que as receitas de crescimento econômico necessariamente requeriam oferecer ao capital as condições para garantir suas taxas de lucro, em detrimento da classe trabalhadora.

Neste contexto de conflito, que começa a ser processado mediante o recorte das liberdades civis e essencialmente sindicais, produto da abolição dos Consejos de Salarios, e como efeito indireto dessa abolição, a AFAM, primeiramente deixou de estar colocada no bojo das negociações trabalhistas e já no contexto ditatorial se a desarticulou como imposto

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Neste sentido os mecanismos de democracia direta (plebiscitos e referendums) impulsionados por organizações de trabalhadores, sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos de esquerda foram uma ferramenta essencial para deter algumas das reformas propostas pelo processo neoliberal. Assim, particularmente destacam-se quatro momentos, nos quais esta estratégia foi utilizada com êxito, que são: o freio a reforma das aposentadorias (em 1989 e 1994), a revogação parcial da Lei de Empresas Públicas (1992) e a revogação da Lei da Desmonopolização da empresa estatal de petróleo em (2003). (PASTORINI; MARTINEZ, 2014).

ao capital, mediante a aprovação do Decreto Lei nº 15.084, de 3 de setembro de 1980. A partir deste decreto, ao mesmo tempo em que foi estendida a cobertura para todos os trabalhadores do setor privado, as AFAM deixaram de ser subsidiadas pelos empregadores e começaram a ser financiadas com recursos do Estado, no marco de uma política geral que tinha o objetivo de reduzir os custos da mão de obra.21

Estes antecedentes pouco lembrados na literatura, embora não supusessem grandes modificações quanto ao público para o qual a política era destinada, configuraram as primeiras mudanças significativas nas suas bases originais.

Na década de 1990, no contexto democrático, a política sofreu uma segunda série de mudanças. Num contexto de ajuste fiscal, cuja lógica se desenvolveu a partir do entendimento de que as proteções estatais abrangentes são um peso insuportável do qual o Estado tem que se desembaraçar (BENTURA, 2010), a política se reduziu novamente aos setores mais pauperizados dos trabalhadores. Posteriormente, e já quando o modelo econômico projetado, tinha constituído um contingente amplo de população marginalizado dos canais de integração, a política foi reconfigurada para incorporar estes setores, abolindo a condição de trabalhador formal como critério de acesso.

Neste processo, em primeira instância, no ano 1995, com a Lei nº 16.697, de 25 de abril, lei de reforma fiscal, foi incrementado o montante para os lares de menores rendas e foi retirada a prestação dos trabalhadores que recebiam rendas de trabalho maiores que dez salários mínimos, o que significou a perda de seu caráter universal entre os trabalhadores formais.

Isto teve como consequência a redução do número de beneficiários, que passaram de 413.400 em 1994 para 346.400 no ano 1996 (DE MELO; VIGORITO, 2007; CARISTO; 2005).22

Posteriormente, no ano 1999, a Lei nº 17.139, de 16 de julho estabeleceu novas modificações, criando um regíme assistencial, paralelo ao dirigido aos trabalhadores formalizados, para aqueles lares de menores recursos, nos quais os titulares do benefício

21 Cabe a menção de que os Consejos de Salarios tinham sido suprimidos em 1968, ano a partir do qual já não

existiu mais relação entre ambos. Os Consejos de Salarios, pela sua vez, tem sofrido uma sorte e idas e vindas, dado que, iniciada a democracia são restaurados por um breve período e suprimidos novamente em 1990. Finalmente em 2005 foram restaurados. Contudo, após a sua primeira supressão e as mudanças da seguridade social, realizadas durante o período cívico militar, já não houve mais relação entre as Asignaciones Familiares e estas instâncias de negociação.

22 Segundo Mariño, Noboa e Parada (2009), a política teve outras instâncias nas que foi redirecionada para

atender de forma diferenciada aos trabalhadores mais pauperizados, mas nessas instâncias as modificações responderam a discussões que envolviam a representantes dos mesmos trabalhadores e seguiam critérios redistributivos. Esta ultima modificação no entanto, apareceu como um claro recorte, já que a quantidade de tributários caiu abruptamente atingindo o menor nível em trinta anos.

tiveram esgotado sua cobertura de seguros de desemprego, ou nos quais a mulher fosse o único sustento do lar. (URUGUAY, 1999). Modificações que pretenderam ser a resposta à expansão do setor informal do mercado de trabalho, que tinha atingido uma proporção crescente de trabalhadores nas últimas décadas. (CARISTO, 2005).

Paradoxalmente, estas reformas processadas na AFAM não estão associadas a um período de crise econômica, que se fará manifesta só em 2002, e sim a um período no qual a economia uruguaia mostrou sinais de expansão, mas que se fundamentou numa crescente perda de mecanismos de regulação do trabalho na maior parte da estrutura sócio produtiva nacional, num processo de precarização das condições de trabalho e aumento do desemprego estrutural, ao mesmo tempo em que se incrementou a concentração da riqueza. (OLESKER, 2001).

Finalmente, após a situação socioeconómica agudizada ainda mais com a crise de 2002, no ano 2004, foi criada a Lei nº 17.758, de 4 de maio, que estendeu este regíme assistencial para todos os lares com rendas menores a três salários mínimos, sendo esta a única mudança introduzida no sistema de transferências públicas como efeito amortecedor da crise até esse momento. (DE MELO; VIGORITO, 2007).

Neste processo de adequação funcional ao novo contexto, a política foi cumprindo com todas as orientações neoliberais: se desarticulou como imposto ao capital, se desconfigurou como proteção para os trabalhadores e reduziu o universo de beneficiários, focalizando-se nos grupos mais pauperizados.

Deste modo, a política passou a cumprir com as exigências, tanto ideológicas como materiais, do novo modelo instalado, nesta nova fase capitalista e a lógica liberal se expressa já desde as primeiras modificações que sofre a política. Neste processo, o raciocínio de que a política tinha que ser dirigida para atender as populações mais empobrecidas é perfeitamente legítimo desde uma perspectiva de adequação funcional ao novo modelo, mas, também opera como a naturalização de uma ordem econômica instalada e projetada sob preceitos altamente excludentes dos quais a própria política vai sendo impregnada (da ideia de quebrar o poder dos sindicatos, da ideia de dar liberdade ao mercado, da ideia de reduzir as proteções estatais a sua expressão mínima, etc.).

O conjunto de modificações da Asignación Familiar faz parte da instalação dessa ordem e dentro dela a política é encaminhada a administrar a população que tem sido marginalizada dos processos produtivos, num processo no qual começa a ser configurada como resposta à superpopulação relativa, ou em palavras de Nun (1999) a essa massa marginal, que embora nunca deixasse de ter uma presença relevante nas sociedades latino-

americanas, aumenta sua proporção no marco da instalação desse modelo concentrador e excludente que no Uruguai se afirmou como projeto político, social e econômico de integração à ordem capitalista mundial.