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CAPÍTULO 3 – OS CICLOS DE APRENDIZAGEM: PROCESSOS DE

3.1 Aspectos da emergência e desenvolvimento dos Ciclos de Aprendizagem

Conforme explicitado no Capítulo 2, a modalidade denominada como Ciclos de Aprendizagem tem suas origens na Reforma da Educação Primária Francesa (1989). Essa reforma definiu a organização do tempo escolar em três ciclos levando em conta o crescimento psicológico das crianças: a) Etapa 1: Ciclo de aprendizagens iniciais (3 a 4 anos); b) Etapa 2: Ciclo de aprendizagens fundamentais (5 a 7 anos); c) Etapa 3: Ciclo de aprofundamento (8 a 10 anos). Pode-se considerar que essa reforma buscou retomar aspectos da proposta da organização da escola em ciclos proposta no Projeto Langevin-Wallon (1946- 1947). A partir dos anos 1990, essa modalidade foi implantada na Suíça, na Bélgica, em Quebec (Canadá), no Brasil e em outros países.

Na França, os ciclos plurianuais foram justificados como uma forma de assegurar a continuidade das aprendizagens (continuidade entre os ciclos), evitar a ruptura e a fragmentação dos percursos escolares e respeitar os ritmos e especificidades dos alunos. A proposta tinha como princípios: a) garantir a qualidade do sistema educacional público; b) estabelecer condições de sucesso para todos os alunos; c) proporcionar um ensino mais adequado para a diversidade; d) introduzir uma maior flexibilidade para a organização do

trabalho docente e para a aprendizagem do aluno; e) considerar a heterogeneidade como forma de reorientar o trabalho docente; f) consolidar o trabalho em equipe entre os professores para um diálogo permanente a fim de acompanhar o desenvolvimento cuidadoso de cada criança (FRANCE, 1991). Essa nova política de organização da escolaridade em ciclos plurianuais na França propôs uma renovação progressiva das práticas pedagógicas, designando aos professores e às equipes pedagógicas uma maior responsabilidade na gestão da aprendizagem das crianças. Assim, a proposta (FRANCE, 1991) prevê um tempo para o trabalho em equipe dos professores e a criação de um conselho de professores para cada ciclo a fim de acompanhar problemas internos do ciclo.

O principal documento do Ministério da Educação da França sobre os ciclos na escola primária (FRANCE, 1991) defende que essa organização escolar em ciclos tende a evitar a fragmentação do percurso escolar por meio da flexibilização do tempo, de acordo com o ritmo e o progresso de cada aluno. No entanto, o documento destaca que o ritmo não deve ser mais lento para todos, mesmo que o ritmo de uma criança possa ser provisoriamente mais lento. O documento define a noção de ciclo da seguinte maneira:

[...] é uma noção pedagógica funcional estritamente ligada à evolução da aprendizagem de cada criança e à avaliação de seus conhecimentos. Abrange duas preocupações:

• melhor atender as especificidades de aprendizagem de cada criança;

• uma organização mais coerente das progressões graças a uma ampla perspectiva e estreita colaboração entre professores de um mesmo ciclo. (FRANCE, 1991, p. 12, tradução nossa).

Nessa proposta, o currículo foi estruturado por meio de competências (básicas, instrumentais, disciplinares e transversais) a serem adquiridas em cada ciclo. Segundo o documento (FRANCE, 1991, p. 24, tradução nossa), definir as competências que devem ser atingidas durante o ciclo “é indicar o que os professores devem realizar primeiramente. É indicar igualmente quais são as competências que o aluno deve ter adquirido para prosseguir com sucesso nas aprendizagens futuras”. Essas competências fundamentais especificam as orientações segundo as quais o professor deve construir a sua ação pedagógica, sem excluir aprofundamentos ou o alargamento, uma vez que certas competências podem estar ainda em curso de aquisição no fim de um ciclo e o seu grau de controle pode variar de um aluno a outro (FRANCE, 1991).

Em Quebec (Canadá), semelhantemente à proposta da França, a implantação dos Ciclos de Aprendizagem foi considerada um instrumento para atender os diferentes níveis de aprendizagem dos alunos por meio da pedagogia diferenciada. Os princípios definidos para os

Ciclos de Aprendizagem em Quebec foram os seguintes: a) as práticas de ensino devem levar em consideração as diferenças entre os alunos; b) as atividades de ensino dentro dos ciclos devem ser organizadas por equipes de professores; c) os procedimentos de avaliação devem ser modificados; d) a diferenciação das tarefas é uma forma de atender as necessidades de aprendizagem dos alunos (QUÉBEC, 2002). A implantação dos ciclos ocorreu de forma gradual a partir de 2000, como resultado de uma longa reflexão e projetos-piloto realizados em escolas de Quebec. O Ensino Fundamental foi organizado em seis anos de escolaridade, divididos em três ciclos de dois anos. Como parte da reforma do sistema de ensino, o currículo foi organizado por competências (conhecimentos, habilidades e atitudes a serem desenvolvidas pelos alunos). Essa maneira de estruturar o ensino foi considerada mais adequada quando se leva em conta as fases do desenvolvimento infantil e da psicologia da criança, uma vez que oferece aos alunos mais tempo para dominar as noções básicas e enfrentar as tarefas mais complexas. Além disso, essa forma de organização proporciona mais liberdade para os professores trabalharem em conjunto (QUÉBEC, [2000?]).

Na Suíça os Ciclos de Aprendizagem foram implantados nos cantões de Genebra, Fribourg, Jura, Neuchâtel, Tessin e Vaud (LANDRY, 2006)46. O sistema educacional suíço é complexo, uma vez que cada cantão tem autonomia para definir o seu sistema de ensino47. Em geral, o ensino primário é organizado em ciclos de dois anos. Na Suíça, os ciclos são entendidos como uma possibilidade de renovação do ensino primário e constitui-se em uma resposta à constatação de que as séries anuais contribuem para a produção do fracasso escolar. Tal como a proposta canadense e a francesa, em Genebra considera-se que os Ciclos de Aprendizagem permitem que os alunos possam avançar cada um em seu ritmo (BULLETIN DU GAPP, 2003).

Segundo Akkari (2010), a proposta dos ciclos na Suíça gradualmente vem sendo desvalorizada devido à incorporação, pelas políticas públicas, da importância de se obter melhores padrões de desempenho, em virtude de avaliações internacionais como o PISA, por exemplo. Essa mudança no sentido das políticas, decorrente dos modelos gerencialistas baseados na performatividade e cultura de desempenho, vem afetando a educação em diversos países (BALL, 2003).

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Os Ciclos de Aprendizagem foram implantados experimentalmente a partir de 1996 e depois em todas as escolas a partir de 2000. (BULLETIN DU GAPP, 2003).

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A Suíça é dividida em 26 cantões (estados). As línguas oficiais são: o alemão, o francês, o italiano e o romanche falados, respectivamente, em 63,7 %, 20,4%, 6,5% e 0,5% do território. Esta diversidade linguística deve-se à vizinhança da Suíça: a Itália, a Alemanha, a Áustria e a França. As propostas de ciclos têm sido implementadas com mais frequência nos cantões de língua francesa. 

Em Genebra, a implantação dos ciclos tem sido bastante debatida e conta, inclusive, com um forte engajamento dos pais48. Em um número especial do Bulletin du GAPP (2003), destinada aos Ciclos de Aprendizagem, Oestreicher (2003), presidente do GAPP, defende a política de ciclos como meio de combater o fracasso escolar. Segundo ele, desde a criação da escola obrigatória no século XIX, os grandes pedagogos denunciavam a fragmentação excessiva da escolaridade, enfatizando a necessidade de considerar a continuidade da aprendizagem. O Presidente do GAPP argumenta que, no contexto educacional, jamais os objetivos de aprendizagem foram tão explícitos e ambiciosos, em que se afirma tão claramente que todos podem e devem atingi-los. Nesse sentido, ressalta ele, os ciclos exigem uma avaliação contínua (formativa) para balizar a aprendizagem. No fim do ano, no fim do semestre ou de forma mais frequente, faz-se um balanço para informar aos pais. Os ciclos permitem que os alunos continuem a aprender no ano seguinte o que ainda não haviam aprendido. Além do mais, Oestreicher (2003) argumenta que as medidas de apoio para auxiliar os alunos com dificuldades ocorrem ao longo do ano ou do ciclo (diferenciação do ensino) e não apenas no final do ano ou do ciclo, uma vez que os ciclos permitem diversos tipos agrupamentos, de tal maneira que se pode trabalhar com a diversidade de maneira diferenciada.

Por outro lado, há posicionamentos que são desfavoráveis aos ciclos em Genebra. Há diversas manifestações da Association Refaire L’Ecole - ARLE49 contrárias a essa forma de organizar a escolaridade. No contexto das discussões para ampliação dos ciclos de dois para quatro anos, a referida associação posicionou-se afirmando que os Ciclos de Aprendizagem ao invés de diminuir a desigualdade entre os alunos a aumenta ainda mais. Segundo a Association Refaire L’Ecole, esse sistema favorece as crianças já capazes de estruturar-se e de responsabilizar-se, desfavorecendo ao mesmo tempo os outros, pois somente os alunos mais favorecidos poderão se beneficiar de um apoio externo para superar suas fraquezas. A associação argumenta que uma avaliação sem notas apresenta riscos, uma vez que privilegia a apreciação subjetiva em detrimento daquela mais objetiva, clara, universal e que fornece uma referência para o aluno, sua família e professores. A avaliação sem notas, apenas em “palavras” leva, muitas vezes, à confusão. Para a ARLE, os ciclos: a) suprimem as referências indispensáveis dos alunos; b) promovem a acumulação de lacunas, uma vez que com a justificativa de dar mais tempo para a aprendizagem, retarda-se o ritmo das aprendizagens e       

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As ideias dos pais sobre o sistema educacional são apresentadas em uma publicação chamada de Bulletin du

Groupement Cantonal Genevois des Associations de Parents d’Elèves des Ecoles Primaires et Enfantines -

GAPP.

adia-se sempre certas aquisições fundamentais para a sequência da escolaridade; c) diluem os objetivos educacionais; e) agravam o risco do fracasso a longo prazo de alunos com mais dificuldades.