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Aspectos da inserção da Costa Rica no pensamento moderno: questão de

O período da primeira metade do século XIX é marcado por uma onda de imigrantes europeus que inculcaram nas elites locais a ideia de modernidade (LATOUR, 2009), aderindo ao Iluminismo, o liberalismo, a maçonaria e a ideologia do progresso em sua versão capitalista e positivista. O reflexo disso é sentido principalmente em San José, que passa por esse processo de europeização cultural. Tal processo está associado ao crescimento urbano acelerado que, por sua vez, foi responsável por alimentar uma crescente cultura urbana, representada especialmente pela criação da imprensa, porta voz do discurso de identidade nacional. Em contraste, os camponeses e artesãos estavam mais vinculados a suas comunidades aldeãs e foram capazes de manter uma identidade local com profundas raízes católicas e coloniais. Essas diferenças locais se aprofundam nas décadas seguintes (MOLINA & PALMER, 2012). De acordo com Acuña (2002), essas classes de trabalhadores, em geral representadas por indígenas, negros e mulatos, foram e continuam sendo invisibilizadas da “comunidade imaginada” costarriquenha, processo se se deu a partir da criação pelas elites de uma pretensa comunidade homogênea, branca e de origem europeia.

Los adalides del progresso – abogados, médicos, educadores y periodistas – empezaron a extender, con mesiánico celo, los valores del patriotismo, el capitalismo, la ciencia, la higiene y la pureza racial. Los sectores populares fueron alentados a ajustar su vida cotidiana al calendario y al reloj, a controlar pasiones y vicios, y a identificarse con el ideal burgués de la familia nuclear como base de la moral y la prosperidade (MOLINA & PALMER, 2012:70).

Esses fatores sociais estão intimamente relacionados com a expansão do cultivo do café pelo Vale Central e outras localidades, garantindo estímulo e diversificação ao mercado interno. No entanto, à medida que o café proporcionou o enriquecimento de pequenos e médios produtores, ele foi prejudicial aos camponeses mais pobres que tiveram suas terras comunais privatizadas, enquanto os indígenas foram condicionados a ocupar áreas montanhosas, condenados a um processo de exclusão e esquecimento (MOLINA & PALMER, 2012). A substituição de florestas nativas por campos de cultivo e pastos dá o tom da “modernização” costarriquenha. Apesar disso, observam-se também, alguns esforços oficiais de conservação da natureza como controle de queimadas, preservação de florestas e

70 bacias hidrográficas, bem como leis de controle de caça já eram observadas no país antes mesmo da chegada do século XX (EVANS, 1999).

Data desse período um fato histórico muito relevante no imaginário social do país. Em 1855, uma onda de ataques armados vindos da Nicarágua sacode o panorama social e político da Costa Rica. O mercenário filibustero William Walker deteve por um curto período o controle do país com o intuito de controlar o território, que é estrategicamente beneficiado pela geografia local, e cuja intenção era a construção de um canal interoceânico na América Central. Walker foi repelido por uma coalizão do exército regular da Costa Rica complementado com milícias camponesas, que limitou o controle de Walker ao extremo norte do país. No ano seguinte e com a ajuda britânica, a fronteira estava garantida, e em 1860, Walker foi morto (MOLINA & PALMER, 2012).

Toda uma agitação revolucionária em curso, além da batalha contra William Walker ainda nos primeiros anos como Estado-Nação, reforçam o que Acuña (2002) chama de processos de consolidação da Costa Rica com base na instituição militar e na unificação das elites em torno da produção cafeeira.

Nesse contexto, entram em cena os programas reformistas que acentuam o embate entre Estado e Igreja, aprofundando a divisão cultural entre os setores urbanos e populares. O meio encontrado para superar esse conflito foi a difusão sistemática, através da imprensa, do aparato educativo e dos estatutos públicos. Além disso, buscou-se construir uma identidade nacional centrada na “Campaña Nacional” da batalha contra William Walker e na figura de Juan Santamaría, mártir naquela peleja (MOLINA & PALMER, 2012). Para conformação da identidade típica costarriquenha, foi dado aos vizinhos, especialmente os nicaraguenses, o papel de “Outro” que contrapõe toda e qualquer suposta „superioridade‟ costarriquenha em uma conotação negativa.

Sabendo do grande potencial explicativo contido na categoria identidade, já que “a construção da vida, das instituições e da política em torno de identidades culturais coletivas é historicamente a regra, e não a exceção” (HAESBAERT, 1999:170; CASTELLS, 2002), faço uma breve explanação acerca dessa categoria de análise. Para a Antropologia, identidade e alteridade estão inter-relacionadas, pois “a identidade é construída a partir do olhar do outro” (CLAVAL, 1999:14). Alteridade e identidade refletem o que Taylor (1994) chama de busca por reconhecimento. Ademais, a identidade é uma “noção elusiva” (CLAVAL, 1999:15) que

71 deve ser analisada através do discurso, já que se trata de uma construção cultural. Ela funciona através da seleção de elementos que caracteriza, ao mesmo tempo, o indivíduo e o grupo, promovendo um processo de classificação/distinção que “legitima um existir social onde a percepção das diferenças é fundamental para a afirmação do grupo cultural” (HAESBAERT, 1999:175).

No entanto, a identidade não está inscrita somente no plano simbólico. “(...) a relação tecida entre história e o espaço fornece uma base aparentemente material à realidade: ela lhe proporciona um território” (MARTIN apud CASTELLS, 1999:16). O sentimento identitário confere ao território sua base material, pois a dimensão concreta do espaço geográfico é um componente estruturador da identidade, que pode ser definida de forma ampla como um “processo relacional, dialógico, inserido numa relação social” (HAESBAERT, 1999:174). Afinal, ao conter uma característica espacial, a identidade “pode dar mais consistência e eficácia ao poder simbólico (...) [através dos] referenciais concretos aos quais ela faz referência para ser construída” (Ibid, 1999:178).

Todas as identidades estão localizadas no tempo e no espaço. Elas têm aquilo que Edward Said chama de suas “geografias imaginárias”: suas “paisagens” características, seu senso de “lugar”, de “casa/lar”, ou heimat, bem como suas localizações no tempo – nas tradições inventadas que ligam passado e presente (...) (HALL, 2005:71-72).

Acuña (2002) reforça que a invenção da noção de diferença da sociedade costarriquenha funciona como imagem fundamental da criação da identidade nacional. Em oposição à Nicarágua, o “Outro” da Costa Rica, a primeira imagem criada da nação reflete um interesse das elites em alcançar maior autonomia política. Em se tratando de um período tenso da história das Américas, tempo no qual estouravam guerras pela independência contra a Espanha, a Costa Rica forma sua imagem em contraponto às outras pretensas nações centro- americanas, especialmente a Nicarágua. Esse contraponto é expresso no caráter pacífico da Costa Rica em contraste com as sucessivas guerras ocorridas na região, mesmo que para isso as elites tivessem que recorrer à “engenharia social” (Ibid, 2002) para superar o localismo existente nas cidades do Vale Central.

72 Desse período que se estende até inícios do século XX, fica uma imagem nacional construída em favor de uma autonomia política e idealizada como espelho invertido das nações vizinhas, em especial da Nicarágua. Tal imagem foi forjada principalmente pelas elites costarriquenhas que buscavam sobrevalorizar seu país. Com poucos negros até então14, e com os indígenas ou já integrados às classes mais baixas da sociedade ou isolados em regiões mais remotas, a Costa Rica emerge com uma aura europeia, pacifista e neutra, fruto de uma etnicidade homogênea. É interessante notar que, a partir do momento em que o café passa a ser uma mercadoria altamente valorizada internacionalmente, a consciência emanada pelas elites do Vale Central se espraia pelo país e se fixa na consciência nacional.

Nesse ponto é cabível a discussão acerca de se a identidade social construída pelas elites costarriquenhas no século XIX também é uma identidade territorial. Identidade territorial é uma

identidade em que um dos aspectos fundamentais para sua estruturação está na alusão ou referência à um território, tanto no sentido simbólico quanto concreto. Assim, a identidade social é também uma identidade territorial quando o referente simbólico central para a construção dessa identidade parte do ou transpassa o território (HAESBAERT, 1999:178).

A identidade territorial, ao recorrer a uma dimensão histórica contida no imaginário social, recorre ao espaço a fim de “condensar” a memória de grupo, tendo como exemplo clássico a criação de monumentos históricos nacionais (HAESBAERT, 1999). Na Costa Rica de finais do século XIX dois eventos históricos e uma característica fundiária com claras vinculações espaciais foram utilizados na criação do imaginário social em torno da identidade: a anexação de Guanacaste, transformada em data comemorativa; a Campaña Nacional que derrotou William Walker, que transformou áreas de batalhas em sítios históricos; além da estrutura fundiária com base na pequena propriedade territorial.

14A presença de população de origem negra, em geral afro-caribenha, na Costa Rica só se fez presente no país

com esse processo já consolidado. Para maiores informações, ver SOTO-QUIROS, R. Un otro significante en la identidade nacional costarricense: el caso del inmigrante afrocaribeño, 1872-1926. In Boletín nº 25 AFEHC: Mestizaje, Raza y Nación en Centroamérica: identidad tas conceptos, 1524-1950, 2006.

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