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Aspectos históricos da formação da magistratura no Brasil

Ao revisitar o histórico do Judiciário no Brasil é possível afirmar que as críticas de falta de independência, atrelamento ao sistema político e apoio aos sistemas de dominação acontecem desde o Império (KOERNER, 1998), até as recentes pesquisas de Sadek, Arantes (1994) e Feitosa (2005). Indícios há da conformação de um Judiciário mais atento às demandas do poder monárquico conformado por diversos fatores: por sua estrutura, por sua formação elitizada em Coimbra, ou ainda devido ao sistema de promoção na carreira sempre subordinado aos interesses do poder.

A magistratura foi a primeira elite letrada da colônia, recebia especial atenção quanto à sua formação acadêmica ligada aos interesses da burocracia portuguesa. A magistratura consistia num degrau para a carreira política, e a verdadeira ascensão se revelava na capacidade de unir os interesses da coroa e a resolução de conflitos locais. A habilidade para se inserir na dinâmica política tecia uma rede de relações e de trocas clientelistas capaz de viabilizar eleições e a indicação de pessoas influentes (FEITOSA, 2005).

O sistema de preparação burocrática resultante da experiência passada em Coimbra, centrada nos estudos dos códigos romanos e medievais, emprestavam à magistratura um caráter distintivo, e aproximavam juízes, advogados e clientela numa rede de amizades. A preparação dos juízes empreendia uma distância dos desafios e deveres colocados nas suas mãos, devido a sua erudição exagerada, resultando em pedantismo e formalidade (SCHWARTZ, 1979). Schwartz (1979, p. 253) descreve ainda as formas de abrasileiramento da burocracia:

A interpenetração das duas formas supostamente hostis de organização humana: a burocracia e as relações pessoais de parentesco. A sociedade colonial demonstrava uma incrível habilidade para abrasileirar os burocratas - ou até a burocracia - isto é, integrá-los dentro dos sistemas existentes de poder e apadrinhamento.

O alheamento às necessidades da sociedade, corroborada pela concepção de direito e justiça estritamente positivistas, alicerçados no afastamento e negação da política e no vazio de valores, alimentava assim uma rede de interesses e favores nos quais emaranhavam os mecanismos de promoção, nepotismo e distribuição de poderes na justiça (LEAL, 1979).

Koerner (1998) afirma a tese que atribui um papel fundamental ao Judiciário na manutenção da política patrimonialista e centralizada da gestão imperial, que sustentava a escravidão e o latifúndio. Essas características contribuíram para o alongamento do período escravagista no Brasil, mesmo após a abolição em todos os países americanos. Os magistrados não podiam interpretar a lei nem julgar segundo critérios de equidade. O julgamento se restringia aos conflitos entre particulares, não abordava conflitos entre a administração e os indivíduos, e perpetuava o poder imperial. Em verdade, era uma divisão funcional do poder soberano do Império.

Koerner (1998) descreve as propostas de reforma dos liberais e conservadores ocorridas desde 1860 com debates acalorados. A proposta liberal de reforma da magistratura reclamava pela autonomia de julgamento, estruturação da carreira, supervisão judicial do processo eleitoral, incompatibilidades do cargo e separação dos poderes dos magistrados e da polícia. Os conservadores, liderados pelo cearense, ministro José de Alencar, na sua proposta de Reforma Judiciária já em 1869 defendiam a criação da administração da justiça no País para sustentar as garantias dos magistrados. Na época se unia ao lado conservador a proposta de um controle sobre os magistrados, enquanto os liberais defendiam a autonomia plena. (KOERNER,1998) Esse debate se arrastou por décadas. 1

A República não trouxe modificações em relação a função do Judiciário no sistema de poder e apoio ao Executivo. Exemplo se dá, na pesquisa de Koerner (1998), em que a estrutura dos poderes coercitivos, como a polícia de São Paulo, recebeu mais atenção do que o Judiciário, tornando a sociedade mais uma vez objeto da repressão do Estado e não da promoção do acesso à justiça. A Reforma Judiciária implementada em 1871 incluiu a reivindicação liberal da separação dos poderes judiciais e policiais, o efeito deu-se ao contrário da cidadania, não estabeleceu uma independência do Judiciário, mas uma polícia independente de controles judiciais. Essa discricionariedade policial permanece até hoje como uma ameaça aos mais pobres (KOERNER, 1998).

Para Feitosa (2005, p. 21) as consequências dessa política permanece como um entrave ao exercício da cidadania:

Vale ainda salientar a duradoura presença do inquérito policial e da divisão de atribuições estabelecida em 1871. Num ambiente democrático, hoje regido por uma nova ordem constitucional, ainda persiste o mecanismo pensado durante a escravidão para uma transição ao trabalho livre, e destinado a garantir o uso ilimitado da violência sobre a força de trabalho. Ao se discutir a ampliação do acesso à justiça, como parte de um esforço para superar a história elitista da justiça brasileira, pouco se fala na superação de um dos mais excludentes e arbitrários instrumentos jurídicos.

A República pavimentou um Judiciário ainda distante da sociedade. Criou o Supremo Tribunal Federal em 1890, que segue um modelo americano de corte. Mas a polêmica se fixou em torno da descentralização e dualidade do Judiciário, e o papel deste no modelo federativo. A política dos governadores instituiu a mesma dinâmica do Império, em que os juízes mantinham uma posição subalterna, semelhante ou mais intensa que no Império. Os juízes estaduais não eram cobertos pela garantia da inamovibilidade, ao contrário dos juízes federais, a estabilidade destes dependia das constituições estaduais e sua fragilidade se estendia ao salário, falta de recursos e condições de trabalho, como por exemplo, a dependência das forças policiais local para execução das decisões (LEAL, 1979).

O período repressivo, aprofundado pela Era Vargas, foi precedido no Judiciário pela implantação do Tribunal de Segurança Nacional (TSN) em 1936, mais uma vez o Judiciário se fragiliza ante o poder e controle do executivo. (FEITOSA, 2005, p. 29)

A palavra final sobre a liberdade ou a prisão cabia aos delegados e chefes de polícia, que simplesmente não cumpriam as ordens judiciais ou manobravam administrativamente para inviabilizar sua execução. Para isso, transferiam presos, mantinham milhares de pessoas detidas sem qualquer registro ou acusação e adiavam por motivos diversos a sua soltura. A percepção de tal situação levava as

famílias ou os advogados a endereçarem milhares de ofícios e petições ao Ministério da Justiça solicitando providências.

O aprimoramento e centralização da legislação brasileira haurida nas normas unificadas pela edição do Novo Código de Processo Civil, Lei de Contravenções Penais, Novo Código Penal, além da reestruturação da justiça estadual, prevista pelo Novo Código de Processo, acarretaram mudanças na conformação do Judiciário. Segundo Feitosa (2005, p. 32):

O Judiciário sairia do Estado Novo mais profissional, afinado com o discurso das habilidades técnicas específicas e da neutralidade e mais distante da política. O preço da sua autonomia e da redução da ingerência do Executivo seria a construção de uma ideologia fundada na idéia de apego à lei, à ordem e de rejeição à sua politização, profundamente inserida na identidade corporativa e difundida nos posicionamentos do Judiciário. Essa ideologia permeia e reforça a posição secundária do Judiciário na cena política nacional.

Essa situação consolidou uma cultura judiciária fechada, de difícil acesso, refratária a críticas e com baixa transparência. No entanto, a conjuntura mundial passa a exigir um outro papel do Judiciário. As mudanças implementadas pela Constituição brasileira de 1988, bem como o contexto global de afirmação de direitos, ilumina o Judiciário e provoca o deslocamento e tensionamento da cultura tradicional de baixa politização do Sistema de Justiça.