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Assembléia Nacional Constituinte: onde tudo começou

CAPÍTULO 2: O CENÁRIO, A HISTÓRIA E OS ATORES

2.5 Lei do Cabo: o embrião das TVs legislativas

2.5.1 Assembléia Nacional Constituinte: onde tudo começou

O cenário que antecedeu a aprovação da Lei do Cabo começou a se formar a partir da instalação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1987, quando o Brasil, recém-saído do regime militar, iniciava o processo de produção da nova Carta Magna, que seria batizada pelo então presidente da Câmara, Ulysses Guimarães, como a “Constituição Cidadã” – título relacionado à garantia de direitos nunca antes previstos em uma constituição brasileira. Para a feitura da sétima carta magna brasileira concorreram os mais diversos setores da sociedade, ávidos pela participação política que há duas décadas lhes era negada. Os corredores do Congresso Nacional voltaram a ficar lotados de representantes de organizações sociais, sindicatos, federações,

universidades, religiões, etnias, cada qual com suas reivindicações específicas39. Entre

esses grupos, estava a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação, que tinha entre suas bandeiras a criação do Conselho Nacional de Comunicação, a valorização do sistema público de comunicação e o fim dos monopólios. Durante a Assembléia Nacional Constituinte, o trabalho da Frente resultou em vitória de parte de suas reivindicações, incluídas no texto final da Constituição de 1988. Com a promulgação da Carta Magna, em outubro daquele ano, a Frente foi dissolvida, ressurgindo três anos depois, com o nome de Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), um dos principais atores no processo de aprovação da Lei do Cabo - a lei que criou as TVs legislativas.

De acordo com Sérgio Euclides Souza (1998), o processo decisório que culminou na aprovação da Lei do Cabo se deu em um momento marcado por dois fatores fundamentais para a mudança de rumo na política de comunicação no Brasil: de um lado, o processo de globalização acelerado, gerando rápidas transformações tecnológicas nos meios de comunicação com os adventos da TV a cabo, da Internet e da telefonia celular, além da rápida convergência de todos esses meios. Por outro lado, a redemocratização da política brasileira, após vinte anos de ditadura militar. É o momento em que os partidos políticos voltam a se fortalecer e novos atores sociais surgem no cenário brasileiro, exigindo seus direitos e pluralizando a esfera política. O surgimento das TVs Legislativas, previstas no texto da Lei do Cabo, teve, portanto, como mola propulsora, dois fatores conjunturais: a globalização e a redemocratização.

A regulamentação da cabodifusão no Brasil já era um assunto pautado pelos governos militares desde a década de 1970, mas todas as tentativas foram frustradas por reações da própria sociedade ou por entraves impostos pelo Executivo ou pelo Congresso Nacional. Mas, antes mesmo que se conseguisse aprovar uma lei regulamentando o setor, o serviço de TV a cabo passou a existir, na prática, sem

39As discussões em torno da nova Constituição eram divulgadas no programa Diário da Constituinte, produzido pela Radiobras. O programa era veiculado por todas as emissoras, em duas edições de cinco minutos cada. Câmara e Senado mantinham núcleos de produção para este programa.

qualquer legislação. Foi na década de 1990, durante o governo do ex-presidente Fernando Collor de Melo. Collor se utilizou de um serviço aprovado durante o governo anterior, de José Sarney, e que até então não havia sido implantado. O serviço chamava-se DISTV – Distribuição de Sinais de TV. Por meio dele, o governo destinava redes de cabo para as TVs de canal aberto que já operavam no país - na sua maioria, TVs comerciais. No governo de Sarney, não havia sido feita nenhuma concessão. Collor, por sua vez, fez cento e uma concessões. Na prática, começava ali o serviço de TV a cabo no Brasil, sem que nenhuma lei o regulamentasse.

Em 1991, o mesmo Governo Collor publicou a Portaria nº 51, onde era convocada a primeira audiência pública para discutir a regulamentação do serviço de TV a cabo no Brasil. A audiência, realizada em julho daquele ano, deu início ao processo de discussão sobre a Lei do Cabo, conduzido pela Secretaria Nacional de Comunicações (SNC), que na época correspondia ao atual Ministério das Comunicações. Já na primeira reunião, participaram diversas entidades representativas da sociedade civil reunidas no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. O FNDC foi um agente fundamental em todo o processo de discussão da TV a cabo, se tornando a voz da sociedade civil na implementação de uma política pública para o serviço de cabodifusão no Brasil e, conseqüentemente, no processo de criação de canais de acesso básico, onde estão inseridas as TVs legislativas. Participavam do Fórum intelectuais, sindicalistas, acadêmicos, advogados e profissionais de Comunicação, além de instituições representativas da sociedade, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e organizações como o Movimento Nacional em Defesa dos Direitos Humanos. Ao todo, o Fórum somava mais de trezentos grupos que se juntaram para defender a democratização do acesso aos meios de comunicação do país.

Aliados ao FNDC, estavam noventa parlamentares, reunidos na Frente Parlamentar pela Democratização da Comunicação. Assim como o FNDC, os parlamentares queriam tirar da esfera do Executivo a discussão sobre a regulamentação da cabodifusão e transferi-la para o Congresso Nacional. A idéia era

rejeitada pelos representantes das empresas, que viam no Executivo um caminho mais tranqüilo para atender aos interesses postulados pelo setor. Mas, satisfazendo o pleito dos parlamentares, em 1991 a Consultoria Geral da República decidiu que o assunto deveria ser mesmo decidido no âmbito do Congresso Nacional.

Começava ali um longo e difícil processo de negociação. A abertura das discussões com os diversos setores envolvidos se configurou em uma duro enfrentamento. Após o longo período ditatorial vivido pelo Brasil, se confrontaram, de forma árdua, os interesses das esferas pública e privada – os interesses da coletividade e os interesses do poder econômico. De um lado, estava a luta do FNDC pela democratização dos meios de comunicação. De outro, empresários de TVs comerciais, premidos pela tendência mundial de concentração da propriedade, fruto do processo de globalização, e ansiosos por dominar o novo mercado bilionário que se formava com a TV a cabo: o dos canais segmentados, voltados para públicos específicos. Além da segmentação, havia também a certeza de que o mercado consumidor de TV a cabo era formado por pessoas com poder aquisitivo bem mais elevado que a maioria do público das TVs abertas, o que significava rendimentos maiores com publicidade.

No Congresso, já tramitava, desde 1991, um projeto de lei (PL 2120/91), apresentado pelo então deputado Tilden Santiago, do Partido dos Trabalhadores (PT), regulamentando o serviço de cabodifusão e extinguindo o DISTV, implantado no Governo Collor. O projeto era, na verdade, a proposta original do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que havia sido encampada pelo deputado. No texto, o FNDC havia sugerido que, além da transmissão do sinal de canais comerciais, as operadoras de TV a cabo disponibilizassem outros oito canais de acesso básico destinados a emissoras educativas, universitárias, culturais e legislativas. O texto foi amplamente debatido na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, com a participação de todos os setores envolvidos, inclusive do governo. Na Comissão, o trabalho foi conduzido pela então deputada Irma Passoni, também do PT, que se transformou numa grande aliada das questões defendidas pelo FNDC. Mas, no final do ano de 1992, a deputada deixou a presidência da Comissão de Ciência e Tecnologia.

Em seu lugar, assumiu o deputado Maluly Neto, do PFL de São Paulo40, que não deu

prosseguimento às negociações.

Com as discussões interrompidas no âmbito do Congresso Nacional, o FNDC assumiu, sozinho, a condução do processo. Para isso, passou a travar negociações diretamente com empresários e com a empresa Telebrás (Telecomunicações Brasileiras S/A), que àquela época era a estatal de telecomunicações que detinha o monopólio do setor. O diálogo com os empresários não prosperou. Mas a parceria com a Telebrás acabou dando resultados. A empresa estava interessada em manter as negociações porque temia uma possível privatização, que poderia ocorrer com a revisão Constitucional, marcada para 1993. Além de não querer perder o monopólio das Telecomunicações, a Telebrás também estava de olho no filão da TV a cabo. A situação obrigou a empresa a se manter em negociação com o FNDC. O resultado foi a apresentação de um substitutivo ao projeto do deputado Tilden Santiago, elaborado pelo FNDC em parceria com o sistema Telebras. A nova proposta aumentava de oito para dez os canais básicos de utilização gratuita e ia além do serviço de regulamentação de TV a cabo. Em vez de tratar exclusivamente da regulamentação do serviço de cabodifusão, o novo texto falava em “serviço de teledifusão de sinais de TV por cabo”, o que tornava a regulamentação mais abrangente. O texto também estabelecia que os serviços de TV a cabo deveriam obedecer a três princípios:

d. Rede única (prestação integrada dos serviços de TV, telefonia e transmissão de dados);

e. Rede pública (garantia de que todos têm direito a usar a rede) ;

f. Participação da sociedade (através de uma comissão, formada por quinze representantes, com poder de participação na formulação de políticas públicas e na fiscalização do uso dos meios de comunicação);

40Em 2007, o Partido da Frente Liberal (PFL) mudou de nome. Passou a chamar-se DEMOCRATAS (DEM).

A falta de interlocução com os empresários também levou o FNDC a buscar na Justiça um instrumento de pressão. Através de várias ações, o Fórum denunciava as empresas que já operavam o serviço de TV a cabo no Brasil sem que houvesse uma lei regulamentando o setor. A estratégia deu certo e obrigou os empresários a voltar à mesa de negociação. A partir daí, recomeçaram as conversas em torno de um novo texto. Ao final de uma série de audiências públicas e da apresentação de diversos substitutivos, o texto original do projeto do deputado Tilden Santiago foi substituído por outro, com relatoria do deputado Khoyu Iha, do PSDB. O relatório mantinha os conceitos de rede única, pública e com participação da sociedade, previstos na proposta do FNDC e da Telebrás, além da criação dos canais de utilidade pública. Também exigia que qualquer alteração no serviço de cabodifusão deveria ser submetida ao Conselho de Comunicação Social. O texto foi aprovado pela Câmara em 19 de outubro de 1994.

No final da batalha, com a promulgação da Lei do Cabo41, em 6 de janeiro de

1995, os empresários – que eram os atores com maior força dentro processo de negociação – garantiram grandes vitórias. Mas o restante da sociedade civil também havia conquistado avanços significativos e inéditos no sentido de democratizar os meios de comunicação. A Lei previa a destinação de canais de acesso público específicos para os poderes legislativos, além dos canais universitários, comunitários e educativos-culturais em todo o país. Também foram reservados 30% dos canais disponíveis para programadores sem qualquer vínculo com as operadoras – uma forma de incentivar a produção audiovisual local e regional independentes.

O artigo 23 da Lei da Cabodifusão - onde está prevista a criação dos canais legislativos - obriga as operadoras de TV a cabo a disponibilizar, na sua área de prestação de serviço, canais básicos de utilização gratuita, assim definidos:

a) canais destinados à distribuição obrigatória, integral e simultânea, sem inserção de qualquer informação, da programação das emissoras geradoras locais de radiodifusão de sons e imagens, em VHF ou UHF, abertos e não codificados, cujo sinal alcance a área do serviço de TV a Cabo e apresente nível técnico adequado, conforme padrões estabelecidos pelo Poder Executivo;

b) um canal legislativo municipal/estadual, reservado para o uso compartilhado entre as Câmaras de Vereadores localizadas nos municípios da área de prestação do serviço e a Assembléia Legislativa do respectivo Estado, sendo o canal voltado para a documentação dos trabalhos parlamentares, especialmente a transmissão ao vivo das sessões;

c) um canal reservado para a Câmara dos Deputados, para a documentação dos seus trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões;

d) um canal reservado para o Senado Federal, para a documentação dos seus trabalhos, especialmente a transmissão ao vivo das sessões;

e) um canal universitário, reservado para o uso compartilhado entre as universidades localizadas no município ou municípios da área de prestação do serviço;

f) um canal educativo-cultural, reservado para utilização pelos órgãos que tratam de educação e cultura no governo federal e nos governos estadual e municipal com jurisdição sobre a área de prestação do serviço;

g) um canal comunitário aberto para utilização livre por entidades não governamentais e sem fins lucrativos;

h) um canal reservado ao Supremo Tribunal Federal, para a divulgação dos atos do Poder Judiciário e dos serviços essenciais à Justiça.42

No caso dos canais legislativos, a lei diz que eles deverão priorizar a documentação dos trabalhos parlamentares, especialmente a transmissão ao vivo das sessões. Pela primeira vez na história da televisão na América Latina, abria-se para o eleitor/cidadão uma possibilidade inédita de acompanhamento e fiscalização das ações de cada parlamentar. É o momento em que, segundo Letícia Renault (2004, p. 44), se reconhece que o cidadão é o primeiro interlocutor do poder:

A abertura da porta eletrônica no interior do Legislativo colocava para o cidadão um desafio que ele não mais poderia desconhecer. Se antes era ignorado nos intervalos entre uma eleição e outra, o cidadão parecia começar a ganhar ali um novo tratamento. Tratava-se do início de uma nova relação de comunicação, uma sinalização do Poder Legislativo, via televisão, em busca do cidadão/telespectador.

42O canal destinado ao Supremo Tribunal Federal não estava previsto no texto original. A Lei 8977/95 foi alterada pela Lei nº 10.461 de 17/05/2002, passando a incluir o canal do STF. Atualmente, a TV Justiça cobre, além das atividades do Supremo Tribunal Federal, as demais instâncias do Poder Judiciário e os serviços essenciais à Justiça, como Ministério Público e Defensoria Pública.