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ASSIMETRIA DE “SENTIMENTOS” E CONEXÕES MITOLÓGICAS

No documento luizmarioferreiracosta (páginas 115-135)

Como foi exposto, os intelectuais-heróis brasileiros pareciam nutrir um sentimento de reverência e um juízo positivo com relação à cultura lusitana. Por isso, Gustavo Barroso e Plínio Salgado dedicaram um número muito maior de citações que valorizavam os laços de irmandade entre as nações. Ambos entendiam que compartilhavam com os intelectuais portugueses uma mesma base fundadora, a religião católica. Defendiam que os princípios do catolicismo ofereceram bases aos alicerces da nação portuguesa e, tempos depois, aos da nação brasileira, o que revelava a paridade e a intimidade entre esses dois povos.

Por outro lado, Alfredo Pimenta e Rolão Preto demonstravam um sentimento assimétrico diante da relação entre Brasil e Portugal. Enquanto os brasileiros se viam em pé de igualdade com seu par português, esses, por sua vez, adotavam um olhar superior sobre os brasileiros. No caso de Alfredo Pimenta, o que existiu foi uma mistura de mágoa, causada pela perda de influência da antiga metrópole no Brasil, e de desdenho, gerado pela constatação de que a antiga colônia estava cada vez mais inserida no círculo de influência dos EUA. No caso de Rolão Preto, a visão era mais paternalista, principalmente em relação aos movimentos conservadores e nacionalistas que surgiram no Brasil, como a AIB. Entendia que o verdadeiro nacionalismo brasileiro se projetava como a herança da civilização lusitana, fortemente ligada às tradições da terra e do modo de vida rural.

Além disso, foram poucos os contatos reais que, possivelmente, aconteceram entre estes intelectuais. No caso de Alfredo Pimenta e Gustavo Barroso, este encontro teria acontecido nos corredores da Academia Portuguesa de História. Pelo menos, é nesta direção que os documentos apontavam. Por outro lado, não podemos sugerir um local onde tenham ocorrido os supostos encontros de Plínio Salgado e Rolão Preto, pois o que conseguimos encontrar foi apenas uma carta que relatava a tentativa frustrada de Plínio Salgado visitar o “amigo” português.

Entretanto, os “desencontros” pessoais não desqualificavam a interação dos discursos político-ideológicos ocorridos entre os quatro intelectuais-heróis. Aliás, esta

questão reforça nosso argumento de que, para além dos homens, existiram as ideias míticas, que ultrapassaram os limites impostos pelas fronteiras nacionais e que de forma mais ou menos difusa estabeleceram uma relação transnacional, durante a primeira metade do século XX. Assim, a assimetria de sentimentos e os restritos contatos pessoais entre as duplas intelectuais não significava um desconhecimento mútuo naquele contexto político, marcado pelo aprofundamento da crise do pensamento liberal democrata em ambos os países. Pelo contrário, os quatro intelectuais-heróis compartilhavam de pelo menos dois ideais fundamentais na elaboração de seus discursos nacionalistas, como a autoridade tradicional católica e a forte ligação desses povos com a terra. Ao mesmo tempo, a defesa de um regime autoritário, a adoção de práticas corporativistas e, principalmente, a criação de uma mitologia com base nos dois mitos fundadores do imaginário político luso-brasileiro, o Caramuru e o Sebastianismo, corroboravam a predominância da conexão ideológica existente entre os dois lados do Atlântico.

Nesta perspectiva, é importante destacar que Portugal sempre foi uma terra fértil de heróis e um importante inventário de mitos.

Muito largos temos sido na exposição deste texto, mas foi assim necessário por sua dificuldade e por não estar até hoje entendido. Deixo muitos outros lugares do Profeta Isaias, o qual verdadeiramente se pode contar entre os cronistas de Portugal, segundo fala muitas vezes nas espirituais conquistas dos Portugueses e nas gentes e nações que por seus pregadores se converteram à Fé; que o primeiro e principal intento que neles tiveram nossos piedosíssimos reis, como se pode ver do que de El-Rei Dom Manuel, de El-Rei Dom João o II, do Infante Dom Henriques, de El-Rei Dom João o III e de El-Rei Dom Sebastião escrevem seus historiadores.

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A própria elite intelectual lusitana sempre deu um grande destaque para as mitologias em suas primeiras narrativas históricas. Este foi um dos traços culturais de Portugal que transbordou para as colônias. Como exemplo desse tipo de obra, temos a Monarquia Lusitana, de Frei Bernardo de Brito, a História do Futuro, de Padre António Vieira e a História Secreta de Portugal, de António Telmo. Nessas obras, podemos encontrar uma fusão entre fatos históricos e fenômenos míticos. Neste sentido, os textos de Frei Bernardo de Brito, cronista e religioso do mosteiro de Alcobaça, foram trabalhos pioneiros que abordaram a história lusitana do ponto de vista da mitologia.

Com razão podemos chamar a este Rey Dom Afonso o Viriato Christão, ou o primeiro Hercules Lusitano, respeitado os imensos trabalhos que passou na dilação

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da Fê, & as obras de valor estranho que executou. Ele foy hum escudo de Portugal, que defendeo de vários inimigos. Dilatou seu império das correntes do Mondego atè o rio Bethis, o qual passa por Sevilha, & atè os remotos limites do mar Oceano.

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A Monarquia Lusitana (1° Volume – 1597; 2° Volume 1609) tornou-se um verdadeiro manual nacionalista de histórias de heróis e mitos portugueses. Sua principal característica era fazer uso de uma narrativa bíblica, em estilo ricamente imaginativo. O livro descreveu como os portugueses se espalharam por várias partes do mundo e como Túbal, neto de Noé, povoou o reino da Lusitânia, a partir da criação de Setúbal. Repleta de fantasias e mitos, a obra do Frei possuía como principal objetivo “certificar pela imaginação as boas venturas que o Criador havia outorgado a Portugal” 331. Na primeira parte, trazia as histórias de Portugal desde a criação do mundo até o nascimento de Jesus Cristo.

Divididos em varias partes do mundo os [descendentes] de Noé conforme a primeira divisão, que já tocamos, Tubal filho de Iaphet com a gente de sua família, escolheu por habitação muy accõmoda da a seu golfo, a parte mais occidental de Europa... Se acostarão á terra, dobrando sempre sobre a mão direita, te que no fim de [alguns] dias, tendo já passada [uma] grande ponta de terra, chamada dos antigos Promontorio sagrado, & dos Modernos Cabo de S. Vicente... 332

Nesta lógica, a história da fundação de Portugal estaria intimamente ligada à memória de entes sobrenaturais e heróis bíblicos. Aquela pequena fração de terra que se encontrava mais a oeste da Europa foi também o lugar onde Hércules realizou importantes obras e acabou por experimentar grande simpatia e acolhimento dos nativos. O filho de Zeus e da terrestre Alcmena entrou por “terra dentro até ao grande promontório”, que hoje é conhecido como Cabo de São Vicente. Ali, teria fundado um templo onde, por séculos, se realizou rituais e sacrifícios iguais aos dos egípcios antigos. 333

A saga dos seres maravilhosos e mitológicos continuava em a História Insulada das Ilhas de Portugal sujeitas no Oceano Ocidental, de autoria do Padre António Cordeiro (1717). A história tratava do décimo nono rei da Espanha conhecido como Luso, que teria vivido no século XIV a.C. Segunda a fábula, o rei Luso, venerado pelos portugueses, foi coroado no templo de Hércules no promontório. O monarca foi de grande importância para o

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BRITO, Frei Bernardo de. Monarchia Lvsytana: vol. 3, Lisboa, 1597. p.86. Disponível em <http://books.google.com.br/books?id=dl5JAAAAcAAJ&printsec=frontcover&source=gbs_ge_summary_r&c ad=0#v=onepage&q&f=true>. Acesso em 22 fev. 2015.

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FERNANDES, Joaquim. 2012, op.cit. p. 13.

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BRITO, Frei Bernardo de. 1597, op.cit.

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desenvolvimento de Portugal, estimulando inúmeros povoamentos da região. Mediante as façanhas, os espanhóis passariam a chamar os portugueses de lusitanos e as terras ocupadas por eles de Lusitânia. A prodigiosa lenda do rei Luso tem prosseguimento com o seu filho Sículo. 334

A Luso pois, (de Hespanha o decimo nono Rei) succedeo Siculo seu filho no ano de 1476 antes da vinda de Christo, 830 depois do diluvio, e 2486 da creação do mundo. Este siculo imitando a seu avô Siceleo, foi também de Portugal com grande Armada, e exercito a Italia e fez que os Aborigenes restituíssem a Roma, e a seus Hespanhoes, e Portuguezes quanto lhes tinhão roubado, e indo logo a Trinacria, ou Sicilia, em batalha acabou de destruir aos Gigantes, que infestavão aquella Ilha, que tendo tomado do nosso Siceleo o nome Sicilia, d´este Siculo o confirmou em Sicula, ou como de antes, Sicilia; e tanto se alargarão os Portuguezes... 335

Diante de um vasto panteão de mitos, inclusive com alguns deles pagãos, é importante destacar que, apesar da forte religiosidade do país, a cultura lusitana sempre demonstrou enorme capacidade de harmonizar todos os opostos. Por exemplo, a “devoção ao Espírito Santo” conviveu relativamente bem com a religiosidade pagã.336 Ao que tudo indica, existiria uma “disponibilidade permanente” dos portugueses em desenvolver uma relação íntima com o sagrado, com o milagre, com o sobrenatural e com os sonhos. Parafraseando Fernando Pessoa, Fernandes destacou que uma das características mais marcantes de Portugal era o “excesso de imaginação”. Ou conforme sugeriu Cunha Leão, os portugueses padeciam de uma “hipertrofia mítica” e um complexo pensamento de inferioridade, resultado, talvez, da fusão de “três tipos mentais, o lírico sonhador, próximo do celta, o fáustico, de raiz germânica, e o fatalístico, de origem oriental”, o que teria gerado em alguns autores uma melancolia e um saudosismo exagerados em relação aos feitos heroicos dos portugueses no passado.337

Sérgio Campos Matos também compartilhou da ideia de que Portugal sempre teve uma forte tradição mitológica, a começar, pelo patriarca Tubal, “fundador de Setúbal” e da Lusitânia, passando pelo “Milagre de Ourique”, difundido desde o século XV e chegando às “Cortes de Lamego”, criada no século XVII. 338 Demonstrou que as “Cruzadas” e a

334

Ibid., p.17.

335

CORDEIRO, António. História Insulada das ilhas a Portugal sujeitas no Oceano Ocidental. Lisboa, 1732. p.29-30 Disponível em <http://bit.ly/1EErEEB >. Acesso em 22 fev. 2015.

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FERNANDES, Joaquim. 2012, op.cit. p. 8- 9.

337

Ibid., p.9.

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MATOS, Sérgio Campos. Historiografia e mito no Portugal oitocentista – a ideia de carácter nacional. In:

Mito e Símbolo na História de Portugal. Actas dos IV Cursos Internacionais de Verão de Cascais. Câmara

“Decadência do país” possuem uma representação de ordem mítica bastante significativa na cultura histórica de Portugal. Sendo assim, cada um dos mitos manifestados estaria articulado com “um feixe” de desdobramentos e problemas específicos e, em comum, todos eles pretendiam demarcar uma “originalidade imaginária” para a nação portuguesa. Deste modo, a história e o mito apareciam entrelaçados numa mesma “teia”, ao passo que ambos foram estimulados por um impulso nacionalista e patriótico.339

Em fins do século XVIII e início do século XIX, quando a história passou por uma profunda transformação e foi incorporado à disciplina, o método documental e científico oriundo da Academia Real das Ciências, os mitos e as fábulas acerca das origens de Portugal foram duramente atacados pelos mais céticos. Tratavam-se os tempos da crença absoluta no progresso, no racionalismo iluminista e na crítica moderna o que colocaram em xeque todas as tradições populares. Esse processo foi acelerado com a instauração do regime liberal e com as suas novas demandas culturais que, teoricamente, intentavam formar cidadãos mais instruídos e educados. Neste viés, podemos perceber que Alexandre Herculano (1810 – 1877) foi um dos nomes mais representativos do desmonte dessa tradição mítica, através das controvérsias e polêmicas que travou com os setores clericais. Mas nem sempre a história científica esteve completamente neutra diante da força de atração dos mitos. O próprio Herculano, quando jovem, admitiu que as “Cortes de Lamego” eram verdadeiras. Ou historiadores como Oliveira Martins ou Alberto Sampaio aceitaram sem maiores constrangimentos o mito da “Escola de Sagres”. 340

Na opinião de Matos, todos esses mitos de origem de Portugal atenderam à sua “função social e mental”, ora com maior intensidade, como aconteceu na sociedade do Antigo Regime, ora com menor como ocorreu ao longo do século XIX. Em última instância, as tradições mitológicas fundamentavam a crença na “excepcionalidade da história pátria”, o que acabaria consolidando na “consciência nacional” a confiança de que os portugueses eram um povo completamente diferente dos demais. Essa diferença explicava, por exemplo, a enorme desproporção entre o passado glorioso e a decadência do presente entre os feitos heroicos diante das limitações geográficas e de recursos naturais. Para além das três tradições míticas amplamente discutidas no século XIX – Túbal, o milagre de Ourique e As Cortes de Lamego – Matos ainda destacou sete “grandes tópicos” que contribuíram para transformar a história de Portugal em um episódio completamente excepcional, são eles: 1°) A ideia recorrente de uma “índole ou caráter nacional próprio”; 2°) A crença secular de

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Ibid., p. 245.

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“missão histórica da nação”; 3°) O mito do “sebastianismo”; 4°) A ideia da ausência de “despotismos” no Estado português; 5°) A noção difundida “da unidade da coroa com o povo” evitando assim os excessos; 6°) O pioneirismo entre as nações modernas, no que diz respeito a raça, língua e território; 7°) A rapidez com que Portugal alcançou o auge da prosperidade e a forma como logo caiu em desgraça. 341

Como podemos observar, os fenômenos míticos frequentemente ocuparam, nas manifestações culturais portuguesas, um lugar bastante significativo, tanto no processo de legitimidade nacional, quanto no de excepcionalidade da história da Lusitânia. Assim, os principais fenômenos mitológicos utilizados na legitimação do discurso nacionalista dos intelectuais-heróis devem ser analisados numa perspectiva transnacional, pois devido ao processo de colonização lusitana, em que ocorreu a adoção de uma mesma língua e de uma mesma visão de mundo, Brasil e Portugal experimentaram um longo e intenso trânsito de pessoas, mercadorias e principalmente de ideias.

Os Portugueses foram aqueles cavaleiros a quem Cristo abriu o primeiro caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis. Os Portugueses, aqueles cavaleiros que pisaram as ondas do mar, como os cavalos pisam o lodo da terra: In Iuto aquarum multarum; e as naus dos Portugueses, aquelas carroças que levavam pelo mar a Fé, a salvalçao: Et quadrigae tuae salvatio. E a primeira empresa e vitória desta cavalaria de Cristo foi a sujeição do mesmo mar bravo, soberbo, furioso e indignado, que ou Cristo lhe sujeitou a eles, ou eles o sujeitaram também a Cristo, para que reconhecesse e adorasse.342

Deste modo, no contexto do entre guerras, além da grave crise política e econômica, ambos os países estavam também diante de novos problemas teóricos. Segundo Ernest Cassirer, a sociedade ocidental enfrentava uma mudança drástica nas formas de pensamento político, ao mesmo tempo em que eram apresentadas novas respostas para problemas sociais antigos, que os pensadores políticos dos séculos XVIII e XIX tinham ignorado. Diante disso, surgia a mais importante e perigosa face do novo pensamento político moderno, que foi o “surto” do poder mítico. O autor demonstrava que depois de uma breve luta o fenômeno mítico acabou suprimindo o pensamento racional e se questionava como explicar este novo fenômeno que, de forma surpreendente, emergiu no horizonte político e subverteu as mais antigas ideias arraigadas na sociedade.343

341

Ibid., p. 246.

342

VIEIRA, António. História do Futuro, Esperanças de Portugal. vol.1, Lisboa: Livraria Sá da Costa/ Edição eletrônica Richard Zenker, 1953, p.105. Disponível em: <http://bit.ly/1ICtZVm>. Acesso em 22 fev. 2015.

343

CASSIRER , Ernst. O Mito do Estado. Tradução de Daniel Augusto Gonçalves Lisboa: Publicações Europa-América, Ltda. 1946. p.17.

A derrocada do pensamento racional foi completa e irrevogável e o homem, euforicamente declarado civilizado, em séculos passados, parecia ter desaprendido todos os ensinamentos intelectuais seculares. Regressava novamente aos estágios mais primitivos e rudimentares da cultura humana. 344 A propósito, Cassirer sugeria que antes de tentar definir a origem, o caráter e a influência dos mitos políticos era preciso explicar o que era um mito e como ele atuava. Neste caso, o maior dos problemas era a demasiada abundância de material empírico, pois se tratava de um tema muitíssimo explorado sob os mais diversos ângulos. O seu desenvolvimento histórico e as suas raízes filosóficas foram cuidadosamente estudados por filósofos, etnólogos, antropólogos, psicólogos, sociólogos e, mais recentemente, por historiadores. Isso, por um lado, é muito positivo, pois diante de tanta informação pode-se realizar uma espécie de “mitologia comparada” que poderia abranger praticamente todas as regiões do planeta. Mas, por outro lado, significava dizer que a teoria do mito ainda é um objeto de grandes controvérsias, uma vez que cada escola possuía definições diferentes e até mesmo contraditórias entre si. 345

De modo geral, Cassirer pretendia definir o mito como manifestação “incoerente e inconsistente”, representado por uma “teia confusa com os mais incongruentes fios”. Se os sujeitos do mito e sua ritualização são de uma infindável variedade, os motivos e as razões do fenômeno mítico são quase sempre os mesmos. Seria uma espécie de “unidade na diversidade” presente em todas as atividades e em todas as formas de cultura, assim como a arte refere-se à unidade de intuição, a ciência fornece uma unidade de pensamento, a religião e o mito transmitem “unidade de sentimento” [...]346. Igualmente à religião o mito recria a “conscientização da universalidade e a fundamental identidade da vida”. 347

Sendo assim, quando brasileiros e portugueses declaravam que suas propostas políticas-ideológicas caminhavam para o período de redenção e, consequentemente, levaria os homens a glorificação eterna, estavam na verdade resgatando elementos de uma antiquíssima tradição mitológica lusitana advinda do herói grego Ulisses, que profetizava o retorno da “Idade de Ouro”. Ulisses, além de ser um dos mais célebres personagens da galeria mitológica universal, também significava o melhor arquétipo desta época dourada marcada pela bravura dos homens e das muitas glorias conquistadas.348

344 Ibid. p.18. 345 Ibid. p.18-19. 346 Ibid. p.57. 347 Ibid. p.58. 348

FERNANDES, Joaquim. História Prodigiosa de Portugal: Mitos e Maravilhas. Vila do Conde: QUIDNOVI QN. 2012. p.19.

“Ulisses é, o que faz a santa casa À Deusa que lhe dá língua facuna; Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa Cá na Europa Lisboa ingente funda.” “Quem será estoutro cá, que o campo arrasa De mortos, com presença furinbunda? Grandes batalhas tem desbaratadas,

Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!” 349

Nesta perspectiva, podemos afirmar que os versos míticos cantados com louvor pelo poeta Luís Vaz de Camões, escritos num período de grande esplendor da cultura portuguesa durante o século XVI, continuavam embalando sonhos de orgulho dos quatro intelectuais-heróis. Logicamente, esses autores realizaram adequações nesta tradicional narrativa, dada a necessidade real de seus respectivos países periféricos, mas a essência do mito, que representava o clima triunfante e empolgante da vitória de um ideal, permaneceu inalterado. Conforme Joaquim Fernandes, ao desafiar o “grande Zeus”, Ulisses acabou por se tornar uma espécie de síntese de todas as “virtualidades do Super-Homem da cultura de massas” dos dias atuais. Todas as suas peripécias guardavam grande significado e ilustrariam o poder superior que o herói possuía. Os esforços na guerra de Troia, a derrota imposta aos temíveis ciclopes e o modo como reagiu à sedução das sereias, tudo isso era a comprovação de que numa única “entidade suprafísica”, coexistia “a força, a agudeza de espírito, a prudência, a astúcia, apoiadas pela destreza física”.350

À primeira vista, podemos afirmar, assim como fez Fernandes, que todo povo possuiu uma forma mentis, pela qual se manifestou um imaginário singular marcado por traços históricos individuais por meio dos quais as nações se identificam. Em Portugal, a ideia de singularidade histórica se apresenta em conjunto com outra, denominada pelo o autor de “centros históricos imaginários”, um tipo de “teia que concentra hábitos, comportamentos e pensamentos” que diferenciaria o português dos outros povos. Sendo assim, os estudiosos que escolhem o caminho da história das mitologias contemporâneas luso-brasileiras devem, em primeiro lugar, ter em mente a importância, tanto dos “mitos de

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