• Nenhum resultado encontrado

BALANÇO DAS RELAÇÕES INTELECTUAIS LUSO-BRASILEIRAS

No documento luizmarioferreiracosta (páginas 92-97)

Ai está a força do português: sua principal condição de permanência num mundo como o dos trópicos e o do Oriente, que se deseuropeíza e repele dos últimos jugos imperiais de europeus sobre suas populações de côr. O português não é, castiçamente, nem europeu nem imperial. À sua qualidade de europeu juntou-se de início sua condição de povo arabizado, israelitizado, orientalizado, predispondo -o a aventuras de amor sob o signo da chamada “Vênus Fôsca”.260

259

FERREIRA, Tito Lívio. Portugal no Brasil e no Mundo. vol.2. São Paulo: Academia Paulista da História, 1994. p. 13-14.

260

FREYRE, Gilberto. Um Brasileiro em Terras Portuguesas: Introdução a uma possível luso-tropicologia, acompanhada de conferencias e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Rio de Janeiro: José Olympio. 1953. p. 26.

Os anos entre 1910 e 1945 são fundamentais para se compreender a nova paridade estabelecida entre Brasil e Portugal. O fim da Monarquia portuguesa, por exemplo, sinalizava que talvez fosse possível um aprofundamento maior da relação transnacional luso-brasileira. Porém, devido ao clima de instabilidade enfrentado pela I República, com inúmeras investidas da contrarrevolução monárquica, estes laços fraternais não conseguiram se reforçar. Soma-se a isso o envolvimento de Portugal na Primeira Guerra Mundial, o que acabou por determinar um congelamento dos contatos entre ambos os países.261 Diante deste cenário, o que efetivamente aconteceu foi um diálogo bilateral restrito ao campo da retórica, em que predominou a incapacidade das duas nações de concretizar projetos de maior importância numa parceria compatível com a realidade. Apesar da realização de inúmeros eventos que procuravam manter vivo o ideal luso-brasileiro - com destaque para o reatamento e restabelecimento formal de relações diplomáticas - após os constrangimentos políticos do século XIX, Brasil e Portugal ainda continuavam separados pelo Atlântico. 262

Salvo em algumas exceções, o que existiu realmente foi um desconhecimento mútuo, por isso os dois países dificilmente conseguiram ver-se para além dos estereótipos construídos no passado. Essa falta de interesse de um pelo outro, refletia também no campo do conhecimento historiográfico. Deste modo, a história de Portugal, após 1822, quase não existe nos livros didáticos brasileiros de Educação Básica. Este desconhecimento tem se mantido praticamente inalterado nos últimos anos, a despeito das relações bilaterais terem se intensificado e também do fato de o Brasil representar um dos principais destinos dos investimentos portugueses no exterior.263 Assim, “o sonho” comunitário de “união” dos países que falavam a língua portuguesa tem sido um objetivo essencialmente de Portugal. Igualmente, a criação da ideia de “lusofonia”, sobre a qual se elaborou o projeto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), não passaria de uma mitologia exclusivamente portuguesa, 264 uma vez que o Brasil, assim como outras ex-colônias lusitanas, não parece se importar muito com a idealização desta comunidade. A principal razão para o desinteresse brasileiro está ligada à própria noção de lusofonia, que remeteria essencialmente ao processo das grandes navegações. Como resultado dessa aventura, a

261

SANTOS, Paula Marques dos & AMORIM, Paulo. As relações Portugal-Brasil na Primeira metade do século XX (1910-1945). In: As Relações Portugal-Brasil no século XX. (Coord.) SOUSA, Fernando de; SANTOS, Paula; AMORIM, Paulo. Porto: Fronteira do Caos Editores Lda. 2010.

262

Ibid., p.121-122.

263

Cf. FREIXO, Adriano de. As relações luso-brasileiras e a CPLP. Algumas reflexões em torno da ideia da lusofonia. In: As Relações Portugal-Brasil no século XX. (Coord.) SOUSA, Fernando de; SANTOS, Paula; AMORIM, Paulo. Porto: Fronteira do Caos Editores Lda. 2010.

264

língua e a cultura portuguesa foram espalhadas para todos os cantos do globo. Nesta lógica, podemos sugerir que o centro do “impasse” é o fato de que os elementos que formam esse imaginário são essencialmente oriundos de Portugal e, por esta razão, não têm o mesmo peso para os outros países lusófonos, o que significa dizer que o “discurso da lusofonia” se assenta num grande vazio para os não portugueses. 265

Contudo, as iniciativas de reaproximação entre ambos os governos quase sempre são revisitadas, principalmente no campo cultural e comercial. A título de exemplo, em 26 de setembro de 1923, Portugal e Brasil se comprometiam a formalizar um acordo que regulasse a isenção do serviço militar e da dupla nacionalidade entre seus cidadãos, mas o projeto nunca saiu do papel. Naquele mesmo ano, em 7 de dezembro, foi apresentado ao parlamento português um projeto de lei que previa a autorização de tratados comerciais com o Brasil, mediante as reduções tarifárias e aduaneiras. Entretanto, o projeto não obteve respaldo em virtude das novas disposições protecionistas, adotadas pela política econômica brasileira. Mais uma vez o que se via era o naufrágio de outra tentativa de reaproximação.266

Em contrapartida, no dia 30 de abril de 1931, ambos os Estados Novos assinaram em Lisboa o “Acordo entre a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras”, com o intuito de estabelecer a base, a unidade e a expansão da língua portuguesa. Se de fato esse acontecimento não obteve a importância pretendida, ele foi símbolo de um processo de fraternização que se configurava em determinados meios acadêmicos luso-brasileiros. Isso porque a crença na fraternidade e na existência de laços históricos e culturais, que uniam estes dois países irmãos, sempre foi um elemento fundamental da relação entre as duas nações.

De modo geral, os defensores dessa ideia fraternal utilizam a explicação de que devido à descoberta e colonização do Brasil, pelos portugueses, ambos os países teriam firmados laços de sangue insuperáveis. Esta ligação refletiu-se tanto na adoção da língua, quanto na incorporação de tradições seculares. Deste modo, as nações irmãs edificaram uma “aliança natural” e eterna, que transcendia governos, conjunturas políticas e questões ideológicas. 267 A confiança mútua estava regida pelo princípio da cordialidade e sempre mediou o nível dos contatos de Portugal e Brasil, mesmo quando ocorreram fortes abalos - como a interrupção das relações diplomáticas por conta da intromissão do governo

265

Ibid., p.67.

266

SANTOS, Paula Marques dos & AMORIM, Paulo. 2010, op.cit, p.126.

267

GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da Fraternidade Brasil-Portugal. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. 2003.

português na revolta da Armada - ou quando o Brasil exerceu pressão para que Portugal rompesse com os países do Eixo e autorizasse a construção de uma base militar em favor dos Aliados nos Açores.268

O ponto máximo da narrativa de amizade eterna ocorreu durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Neste período, o ideal luso-brasileiro transformou-se numa espécie de conduta programática da política externa de ambos os países. Conforme demonstrou Williams da Silva Gonçalves, desde a ruptura política trazida com a independência do Brasil, nunca ocorreram tantos contatos entre personalidades públicas e intelectuais durante aquele período. Esta relação transnacional pode ser ilustrada, por exemplo, pela defesa que o governo brasileiro fez do império colonial português, na África e na Ásia, apesar das diferenças essenciais entre os regimes políticos em vigor em cada país.269

Deste modo, em diversas ocasiões as autoridades políticas, de ambos os países, faziam uso deste recurso imaginário em datas comemorativas. Porém, foram em alguns debates intelectuais que a irmandade luso-brasileira atingiu um sentimento mais profundo. Sendo assim, para além das relações oficiais entre os dois governos, cabe-nos aqui analisar as relações intelectuais que se estabeleceram anteriormente a este período, durante as décadas de 30 e 40. Assim, podemos considerar que o livro Casa Grande & Senzala (1933), do escritor Gilberto Freyre, fez muito mais no processo de reconciliação entre Portugal e Brasil do que qualquer outra iniciativa política no período. 270 As teses do autor brasileiro representavam uma verdadeira revolução, pois pela primeira vez a mestiçagem de três raças – o português, o índio e o africano – era vista por um intelectual de renome como um processo positivo, que teria propiciado a formação de uma “civilização superior”. Esta nova perspectiva pretendia reverter o pessimismo e o preconceito da elite cultural branca, pelo povo brasileiro ser uma mistura de várias raças.271

Na década de 1940, a “análise histórico-sociológica da formação colonial do Brasil” presente em Casa Grande & Senzala haveria de evoluir para uma leitura em que Portugal passou a ser o foco de análise. Neste momento, o autor publicou a obra O mundo

que o Português Criou, consolidando a defesa da cultura luso-brasileira.272 Mas, foi sem

dúvida a produção Um Brasileiro em Terras Portuguêsas que melhor ilustrou esta campanha

268 Ibid., p.15. 269 Ibid., p.16. 270 Ibid., p.90. 271 Ibid., p.92. 272 Ibid., p.94

de reaproximação dos dois povos. A obra reunia algumas conferências e discursos proferidos entre os anos de 1951 e 1952 em território português e ex-colônias lusitanas da Ásia e da África. Já na introdução, Gilberto Freyre afirmava que o português guardava no seu íntimo as características marcantes do herói grego Ulisses e tentava sistematizar o conceito de “luso-tropicologia”. 273

O português como povo intensamente ulissiano que é desde os seus começos – e, no caso, a história só tem feito seguir a lenda – vem realizando o sonho que Rimbaud que, não tolerando Roche – “terre de loups” – sentia-se atraído pela “morne Ardenne”. Pelo sol. Pelo calor. Pelas mulheres pardas das terras quentes. O Rimbaud que confessava perder nessas terras “o gôsto pelo clima, pelos modos de viver e mesmo pela língua da Europa”. Que de certa altura em diante tornou-se na vida um Ulisses cujas viagens eram “des marches vers le soleil”. “Des marches vers le soleil” têm sido também as portuguesas... Esta é a grandeza portuguêsa que particularmente me atrai: o fato de ter quase um povo inteiro se antecipado a alguns Rimbauds franceses, a alguns Lawrences da Arábia ingleses, a alguns Lafcadios norte-americanos e até a alguns Humbolds alemães, na realização de uma vocação que fixa o destino de tôda uma civilização transnacional: a luso- tropical, de que o Brasil faz parte. 274

Portanto, os trabalhos de Gilberto Freyre tiveram um duplo efeito positivo para o discurso da fraternidade entre os dois países. O primeiro foi para o próprio regime salazarista, que mesmo antes de financiar a expedição do intelectual brasileiro por todos os domínios portugueses da época, já havia se beneficiado com a tese de que o português foi o elemento fundamental para unir as três raças formadoras do povo brasileiro. Esta perspectiva legitimava a ideia difundida nos meios intelectuais e governamentais de que Portugal seria um Império “criador” de novas civilizações, e não simplesmente uma metrópole exploradora. O segundo efeito positivo pode ser verificado no próprio comportamento de alguns intelectuais brasileiros, pois como veremos a seguir, esta narrativa da cumplicidade luso-tropical era muito mais evidente e direta na fala de Gustavo Barroso e Plínio Salgado do que quando comparamos com os discursos de Alfredo Pimenta e Rolão Preto. Em ambos os autores brasileiros o sentimento de irmandade era recorrente. Além disso, os dois pareciam buscar em terras lusitanas o reconhecimento pessoal e uma maneira de se integrarem ao ambiente intelectual e cosmopolita de Portugal. Em contrapartida, os autores portugueses não demonstravam qualquer tipo de interesse em fazer parte da intelectualidade brasileira e quase sempre manifestavam grande desconforto com a influência norte- americana na antiga colônia.

273

Ibid., p.13

274

3.2 ALFREDO PIMENTA E GUSTAVO BARROSO: OS COMPANHEIROS

No documento luizmarioferreiracosta (páginas 92-97)