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Capítulo 2 – O aparato burocrático-administrativo e assistencial-humanitário de

2.3 A assistência humanitária no CAR: proteção, assistência e integração, ou a construção

2.3.2 Assistência

Geraldine, como de costume, entrou para aguardar aqui dentro e não no corredor externo como os demais. Está na sala de Maria que lhe diz “Você não paga casa, está recebendo a ajuda da ‘sub’, mas a gente tem que ajudar outras pessoas também... A gente te ajudou até agora porque você tinha dificuldades, mas agora você já consegue se virar. Você tem que criar seus filhos, não é? Nossa ajuda é humanitária, uma hora termina” (Diário de Campo).

O programa de assistência busca auxiliar os refugiados e solicitantes de refúgio a suprirem suas necessidades mais imediatas com saúde, moradia e alimentação, principalmente. Também distribuem as roupas, sapatos e cobertores, fraldas e leite em pó, comprados com o dinheiro de projetos com o CONARE e com o ACNUR.

A CASP oferece ainda um auxilio de subsistência financeira de trezentos reais45 por três meses, também a partir da verba dos projetos com o CONARE. Os beneficiários deste auxílio, ao qual os gestores se referem como “sub”, são pessoas cujo caso caracteriza-se como de “alta vulnerabilidade”. Pelo que pude observar através dos relatórios de prestação de contas desse auxílio, as principais categorias de “vulneráveis” são: mulheres desacompanhadas; mulheres desacompanhadas que são chefes de família;

45 Este valor, na verdade, varia conforme o número de casos que vão receber o auxílio. Como medida de

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idosos; portadores de doenças crônicas ou em tratamento; famílias cujos pais estão desempregados; grupos como maior dificuldade de integração. Mas na verdade são as assistentes sociais, em conjunto com as advogadas, psicóloga e psiquiatra, que determinam os critérios de distribuição conforme as situações e os casos que se apresentam no momento em que chega “o dinheiro do projeto”.

A gente tem um recurso, muito pouco, do governo brasileiro para casos de alta, altíssima vulnerabilidade. (...) [Qual] então, o critério que a gente tem pra quem a gente vai ajudar? A Vanessa que está desempregada e passou por uma cirurgia e precisa de ajuda, [pois] não está conseguindo emprego, por conta disso? Mas chegou a Laurette que está em uma gravidez de risco, não pode trabalhar de jeito nenhum, e aí? Então a gente tem que ter, assim, o critério do critério do critério, porque é muito pouco pra ajudar essas pessoas. (...) Então a gente sempre senta com o social, a saúde mental, também o jurídico, pra analisar. Elas apresentam um caso “a pessoa me relatou isso, isso, isso” “Não vamos fazer assim, vamos fazer assado” “vamos pedir aqui, vamos pedir ali”. (Cristina)

Outra parte do parecer, no entanto, deve declarar que o beneficiado está buscando sair da situação de vulnerabilidade em que se encontra, quando possível. Um grupo de butaneses que não consegue encontrar trabalho devido a dificuldades com o idioma, caracterizando um grupo com dificuldades de integração, deve estar cursando aulas de português. Uma mãe desacompanhada deve matricular os filhos na escola para que possa trabalhar.

E depois de três meses a gente faz uma avaliação. Só que nesse período de três meses a gente não fica só ajudando e ele recebendo. Não. “Vamos ver um trabalho?”. Está doente? Encaminha para o serviço de saúde pra ele ir melhorando. Se não ele vai ficar sempre precisando. Mas é uma ajuda muito pequena. Pouca, no volume total dessa ajuda, para a gente distribuir para as pessoas. (...) Nós temos ajudado com subsistência, não que só isso precise, mas dentro dos nossos critérios, umas 40 pessoas. Então é pouco, mas porque não dá. Aí sai um, a gente analisa o caso de outro. (Cristina) Devido ao caráter muitas vezes emergencial destes auxílios, os solicitantes de refúgio são os mais beneficiados por eles. A assistente social Maria é a responsável pelo programa, auxiliada pelas duas assistentes sociais contratadas. Além dos tramites que envolvem o pedido do protocolo provisório (também feitos pelas assistentes sociais, apesar de não serem procedimentos que compõem diretamente o programa de

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assistência), os solicitantes e refugiados procuram o setor por três questões principais: saúde, moradia e alimentação.

2.3.2.1 Saúde

Alejandro teve seu pedido de refúgio deferido e veio à CASP para assinar o “termo de responsabilidade”. Ao terminar, entrega-o à Maria e aproveita para comentar que tem sentido fortes dores na mão. Pergunta o que pode fazer. “Onde você mora?”, pergunta Maria. Bela Vista. “Então vai ao posto de saúde de lá. Eles vão te cadastrar, aí você já pode usar o SUS!” (Diário de Campo).

Desde o momento em que recebem seu protocolo provisório, os solicitantes de refúgio já podem utilizar as Unidades Básicas de Saúde do sistema público46. Assim como hospitais públicos ditos parceiros – Hospital das Clínicas, Hospital do Carmo, Hospital CEMA, Hospital Pérola Byington, Hospital do Bom Parto – e serviços de saúde organizados pela sociedade civil, como o tratamento odontológico oferecido pelo SESC. O agendamento das consultas geralmente é efetuado pelas assistentes, exceto quando a pessoa é capaz de agendar por conta própria, por exemplo, quando já tem a carteirinha do SUS. A CASP fornece ajuda financeira para pagarem as passagens de ônibus e metrô necessárias para que cheguem ao local da consulta e para os remédios que forem preciso comprar.

A própria CASP possui uma psicóloga e uma psiquiatra, dentro do programa de Saúde Mental, ambas contratadas através de convênio firmado com o ACNUR por seis meses. Porém, para os casos mais graves contam com a parceria com o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Segundo a psicóloga do CAR, no entanto, o programa de Saúde Mental não tem sido procurado pelos solicitantes e refugiados. Uma questão que ela acredita estar influenciando essa baixa procura é o fato de o atendimento ser feito praticamente no mesmo local onde também acontece parte da decisão sobre o reconhecimento dos casos de refúgio: o setor de saúde mental não só está ao lado do de proteção, como possuem uma porta de comunicação. Para a psicóloga, os solicitantes quase não procuram o setor porque poderiam estar receosos de que as conversas com ela ou com a psiquiatra pudessem influenciar nos pareceres das advogadas.

46 Na verdade este é um “direito humano” e nenhuma unidade de atendimento de saúde pode negar este

108 2.3.2.2 Moradia

John está há um mês no Brasil, vindo da Nigéria. Veio sozinho, fugindo de ameaças de morte por ser homossexual, depois do assassinato de seu companheiro. Acabou de prestar declarações na Polícia Federal e veio preencher o questionário da CASP para pedir seu protocolo provisório. Ajudando-o nessa tarefa, pois apesar de falar inglês ele não escreve nessa língua. “Address in Brazil?”, pergunto. Ele faz uma expressão de não entendimento e responde “Don’t have place in Brazil”. Então, fui eu quem ficou confusa, “But where do you sleep?”. “Street”. Depois me conta que às vezes consegue dormir em uma Igreja. (Diário de Campo)

Conseguir moradia para os que acabaram de chegar e não têm nenhum contato no Brasil é a principal dificuldade de assistência da CASP. Tal dificuldade é destacada inclusive pelos refugiados que participaram do último “diagnóstico participativo47”. Isso porque o CAR não possui uma estrutura de albergamento e nos albergues parceiros como a Casa do Migrante, Casa das Mulheres e Arsenal da Esperança, as vagas são pouquíssimas comparadas ao número de necessitados. Não são raros os casos de pessoas que passam o dia esperando por uma vaga em um albergue, não conseguem e acabam passam a noite na rua.

Nos albergues parceiros as vagas são solicitadas pelas assistentes sociais e é necessário um encaminhamento da CASP para ocupar a vaga48.

Na terça só sei que quatorze tinham chegado, novos, precisavam de abrigamento. Não tinha em lugar nenhum. Aí alguém falou para mim “Ah liga para Carla49”. Eu falei “Gente como que eu vou ligar pra Carla?”. Ter uma vaga já é difícil, eu vou dizer “Ah, eu preciso de quatorze”. (Cristina)

47 Documento feito pelas assistentes sociais depois de um encontro que acontece anualmente no CAR para conversar com os solicitantes e refugiados para que estes deem um retorno sobre o trabalho da CASP e sobre os maiores dificuldades que enfrentam para se integrarem localmente. A produção deste tipo de documento tornou-se uma prática comum e característica em grandes projetos de desenvolvimento socioeconômico. Como muitos destes não conseguiam atingir suas metas, técnicos na área de desenvolvimento procuraram incluir em seus projetos a perspectiva dos beneficiários da intervenção realizada. Buscavam, assim, que os procedimentos aplicados fossem mais eficazes em seus resultados. Sobre essa problemática consultar Ferguson (2007).

48 É uma forma de realizar uma triagem dos casos mais “urgentes”, devido a maior “vulnerabilidade”, mas

acontecem casos em que o solicitante por conta própria consegue uma vaga nos albergues parceiros.

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A segunda opção é encaminhá-los para Tenda Social do Parque Dom Pedro, no centro de São Paulo, onde depois de uma triagem são encaminhados para albergues públicos. Neste caso, as assistentes contam que muitas vezes os solicitantes preferem ficar na rua, pois enquanto os albergues parceiros têm um público específico – migrantes –, os albergues públicos “têm todo tipo de gente” e os solicitantes sentem-se incomodados.

E aí a gente encaminhou para Tenda. Eles já deviam conhecer o serviço da Tenda por que eles não queriam ir. Então é meio complicado porque você fala “O que eu vou fazer?!”. Serviço público tem, mas é ruim. Albergues de organizações da sociedade civil, a Casa do Migrante, Casa das Mulheres, o Arsenal, não tem. E daqui pra frente vai ser mais difícil, por que com a Operação Inverno, tende a encher mais ainda. Os albergues públicos também. (Cristina)

Muitos também são os casos, como o de John, em que são acolhidos em igrejas e mesquitas, até conseguirem um albergue. Na época da pesquisa, uma mesquita em São Paulo estava abrigando muitos somalis muçulmanos, mas também já estava superlotada.

2.3.2.3 Alimentação

Bashir pergunta-me sobre a “caixa com comidas”. “A cesta básica?”, digo. Ele concorda com a cabeça. Não fala muito do português. Fica ensaiando a palavra, baixinho, “cesta básica, cesta básica”. Quando seu Francisco passa ele pede, “cesta básica!”. Seu Francisco vai buscar. Enquanto esperamos, ele me conta que, na verdade, não quer a cesta básica, “não tem fogo”. Ele vai vender os mantimentos. “Macarrão 2,00 reais”. Pergunto se ele não tem o cartão de alimentação do SESC. Ele diz que sim, me mostra o cartão e levanta os ombros como se dissesse “de que adianta?”. “Você não tem dinheiro para pagar a refeição, não é?”, pergunto. “É”. (Diário de Campo)

Duas são as formas de assistência com alimentação, ambas muito utilizadas pelos solicitantes. Se o solicitante ou refugiado morar longe do centro de São Paulo a CASP pode fornecer-lhe uma cesta básica mensal, a qual eles vêm retirar na instituição. A outra opção é fazer um cartão de alimentação do SESC-Carmo, localizado a alguns quarteirões da CASP, que possibilita refeições a baixo custo (uma média de 3,00 reais) no restaurante da instituição. Este último auxílio só é permitido para aqueles que ainda não possuem o visto que permite a permanência definitiva no Brasil, o RNE.

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Proporcionando-lhes moradia, alimentação e saúde, mais do que simplesmente oferecer um auxílio, o programa do CAR produz este refugiado com um sujeito de direito perante o Estado brasileiro. Lutar por uma política pública de moradia, por exemplo, mostra como o trabalho da CASP atua para garantir que estes sujeitos sejam reconhecidos como portadores de direitos sociais que possam ir além dos auxílios humanitários do programa. Um efeito do programa de assistência, portanto, é o de buscar criar sujeitos que possam se tornar cidadãos plenos.

No entanto, se o setor de proteção confere determinados direitos civis a estes sujeitos e o de assistência busca prover seus direitos sociais, os direitos políticos que conformariam o cidadão pleno de fato, almejado pelos gestores da CASP, por militantes da sociedade civil e pelo próprio aparato estatal, só são alcançados depois de anos e do trabalho constante do setor de integração para que este sujeito de direito não volte a “desaparecer”, se tornando ilegível para o olho do estado.