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IV. 6.2.1) Continuidade da dedicação à música conjugada com outras formas de

IV.9) Assumir-se como cantor

Quando os participantes do estudo mencionaram dificuldades enfrentadas em seu trabalho, muitos assinalaram a questão da falta de reconhecimento da profissão e do profissional (como está descrito no Item IV.4.10 do presente texto). Ficou claro que é comum a ocorrência de situações nas quais a atividade profissional de cantar não é vista como trabalho formal, mas sim como hobby ou diversão. Relatos que evidenciam existência de preconceito explícito em relação a algum aspecto do trabalho do cantor (às vezes em relação a alguma característica do próprio cantor) também foram feitos (Itens IV.4.12, IV.4.13, IV.4.14, IV.4.15).

Relatos do tipo mencionado acima ajudam a justificar uma questão inusual que foi apresentada aos entrevistados em busca de informações sobre estratégias utilizadas quando se defrontam com situações em que devem declarar a natureza de sua atividade profissional. Essa questão indagava como o indivíduo se identifica ao se apresentar a outras pessoas. O entendimento foi o de que a maneira como a pessoa se identifica para outras pessoas fornece elementos úteis para a discussão de traços identitários. Considerou-se que tal questão seria aplicável àqueles cuja única atividade profissional é a de cantor, mas que seria de especial interesse no caso dos participantes que atuam em mais de uma esfera profissional.

Alguns entrevistados mencionaram que a maior parte das vezes em que uma pessoa é apresentada a alguém ou conhece alguém e precisa se identificar, não há menção direta à atividade profissional que exerce, utilizando-se na interação apenas o próprio nome. Nesses casos, considerou-se o conteúdo da resposta que aparecia a seguir, ou seja, o que é dito quando há necessidade de identificar o que a pessoa faz em termos profissionais.

As respostas foram classificadas em quatro categorias: a) respostas de participantes com outra atividade que mencionam uma ou outra profissão dependendo do contexto em que estiverem; b) respostas de participantes com outra atividade que sempre mencionam as duas profissões, independentemente do contexto em que estejam; c) respostas de participantes com outra atividade que sempre destacam a atividade profissional que não a de cantor(a) por ocasião de apresentações; d) respostas que mencionam diretamente a profissão de cantor(a).

Na primeira categoria de respostas (cantor com outra atividade profissional que menciona uma ou outra dependendo do contexto) foram classificados cinco entrevistados (Alceu Valença, Chico Buarque, Clara Nunes, Tom Jobim e Vanessa da Mata). As respostas desses participantes estão transcritas a seguir. A resposta da participante Clara Nunes toca diretamente no tema do preconceito, relacionado ao fato de algumas pessoas julgarem que cantar é diversão e não trabalho.

Geralmente como cantor. Na noite quando vou fazer meu show, como cantor: [Alceu Valença]. Mas quando eu vou fazer um trabalho de produção musical, quando eu vou trabalhar com produção dentro do estúdio, é como produtor. (Alceu Valença)

Dependendo do lugar onde vou ou do que estou fazendo. Tanto que na minha carteira de documento eu tenho os dois cartões. Cartões da música e o cartão da corretora. Entendeu? Então isso aí varia muito. Dependendo do lugar aonde eu tô. (Chico Buarque)

Depende da onde eu estou. Se eu vou em algum lugar buscando a parte artística, vou me apresentar como cantora. Até porque existe um certo preconceito, assim, se você for falar:

“Ah, sou advogada.” As pessoas ficam achando assim que você não é tão cantora assim. Que você tá brincando de, entendeu? Inclusive até um amigo meu que toca violão, e muito bem por sinal, ele também falou assim: “Ó. Não é pra você esconder, mas, eu sei que as pessoas têm esse preconceito.” Ele também é engenheiro, formado em engenharia, e ele largou e ele vive só de tocar mesmo. Porque ele é excelente. Então ele mesmo falou: “Ah, rola um certo preconceito”, eles acham que você tá brincando ali. Mas se eu estiver num fórum, se eu estiver exercendo a profissão de advogada, eu vou me colocar como advogada. Não menciono nem que eu sou cantora. A não ser que a pessoa descubra, que pergunte, fale alguma coisa aí eu falo. (Clara Nunes)

Depende. Se você quiser me contratar, você me procura e fala assim: “Ah, [Tom Jobim], eu ouvi falar de você, tô com seu contato, queria que cê tocasse no casamento da minha filha.” – aí eu vou me apresentar como cantor, como banda. “Ah, eu ouvi falar de você, que tem um estúdio, queria saber quanto custa pra gravar uma música?” “Custa tanto. Vem aqui em casa, vamo conhecer, você vem ver meu trabalho.” (Tom Jobim)

Depende da onde que eu vou. Por exemplo, se eu tô num lugar, um meio mais acadêmico, eu me apresento como professora. Se eu tô no meio acadêmico, por exemplo, o [nome de escola] deu um coquetel de qualquer coisa informal, mas: “Quem é?” “Sou a professora [Vanessa da Mata]”. Eu tenho duas vidas diferentes, dois ramos diferentes. Uma pessoa que tá no lado do professor nem sempre vai me ver como cantora. Então eu sou conhecida como cantora, no ramo de cantora e como professora, no ramo de professora. Agora quando alguém me pergunta, vou num banco, faço uma ficha: “O que que você é?” “Sou professora e cantora”. Ou “Cantora e professora.” (Vanessa da Mata)

A segunda categoria de respostas (participantes com mais de uma atividade profissional que não omitem a condição de cantor) abrigou três entrevistados (Elis Regina, Frejat e Moraes Moreira). Suas respostas aparecem abaixo:

Alguém pergunta minha profissão. Eu sou funcionária pública e sou cantora. E produtora cultural. (Elis Regina)

Cantor. É. E músico, quer dizer, cantor e instrumentista. Na verdade eu cantava antes. Eu não tinha responsabilidade de tá tocando. Hoje eu toco pra me acompanhar cantando, entendeu?

(Frejat)

Como cantor e instrumentista. Porque o meu lado guitarrista junto com a minha voz ele é muito presente. Tanto é muito atuante no repertório. Faço com que o meu violão ou a minha guitarra, a minha forma instrumentista, ela aflore no momento do meu show. Eu sou meio dividido entre essas coisas. São duas paixões. (Moraes Moreira)

Na terceira categoria de respostas - participantes com outra atividade que, de início, omitem a atividade profissional de cantor, ainda que a outra atividade também seja ligada à música - foram identificados cinco casos (Bob Marley, Jorge Ben Jor, Jorge Vercilo, Luiz Melodia e Xororó). As transcrições das respostas dadas aparecem abaixo:

Músico. Eu não respondo cantor, respondo músico. Eu sou baixista. A atividade é instrumentista e canto por obrigação, porque eu tenho que ganhar dinheiro. E eu tenho que me acompanhar, pra não ficar atrelado com ninguém. Dependendo de ninguém. Então aprendi a pegar o violão e me virar. (Bob Marley)

Aí eu não tenho o menor problema em falar [quando perguntado]. Não tem problema em falar que sou músico profissional. Não seria espontâneo meu falar. Primeiro lugar a questão de até por ser uma profissão meio lúdica é, dá a entender assim, de repente vai dar aquela sensação que tô querendo mostrar. Querer tirar onda de artista. (Jorge Ben Jor)

Eu gosto de música, eu gosto de cantar, eu não encaro isso como um trabalho. É um hobby lucrativo, mas eu ainda encaro isso como uma diversão, como um momento de descontração. É, geralmente quando perguntam, eu falo que sou professor de inglês, porque é a atividade que está reconhecida na carteira. Mas eu costumo acrescentar, lógico, que eu sou cantor, que eu canto na noite e tal. (Jorge Vercilo)

Primeiro eu me apresento como cidadão [Luiz Melodia]. Daí, eu sou músico. Eu me apresento como músico. Me apresento: sou [Luiz Melodia]. Se não perguntam fica o [Luiz Melodia]. Se perguntam o que é que você faz, aí, sou músico. (Luiz Melodia)

Me apresento como músico porque tenho carteira profissional de músico. (Xororó)

A quarta categoria de respostas - identificar-se como cantor(a), sem contornos – reuniu seis entrevistados (Adriana Calcanhoto, Alcione, Beyoncé, Leonardo, Nara Leão, Rita Lee). Estão reproduzidas na seqüência as manifestações de apenas três entrevistados, uma vez que as respostas dos outros três são quase idênticas à resposta de Adriana Calcanhoto:

Como cantora. Eu sou cantora. Eu falo minha profissão: Eu sou cantora. Me apresento como cantora. (Adriana Calcanhoto)

Cantora. Normalmente eu, se a pessoa não me conhece, eu sou [Alcione]. Simplesmente [Alcione]. Agora, se a pessoa me pergunta: [Alcione], você faz o que na vida? Eu tenho o maior orgulho de dizer: Eu sou cantora, da noite. Ainda falo da noite. Por causa do barzinho. Essa coisa dessa ligação, do barzinho. (Alcione)

Como [Leonardo]. Eu sou [Leonardo], sou cantor. Canto. Ah, “cê faz o quê?” Canto. “Você é quem?” Eu sou [Leonardo]. “Mas eu já ouvi falar em você.” Que bom! Vai no show. Compra o ingresso. Paga, entra. Quem não me conhece eu apresento. Eu não gosto de me apresentar, rotular. Sou [Leonardo]. Ah, “e o que você faz da vida?” Eu canto. “Você canta?” Canto. As pessoas acham assim: “Você canta? Nossa. É quebrado.” Pensa que a gente passa fome. Ô raiva. (Leonardo)

Algumas respostas de participantes deixam claro que há percepção do preconceito com o qual o cantor tem que lidar cotidianamente, pelo menos o cantor que, como os que colaboraram com a presente investigação, precisam apresentar-se com freqüência para platéias de tamanho limitado – ainda que seja possível admitir que manifestações preconceituosas poupem cantores famosos e ricos.

Como boa parte dos entrevistados não sobrevive exclusivamente do trabalho de cantor, em parte devido à dificuldade de assegurar rendimentos expressivos com essa atividade no

contexto em que vivem, a identidade social de cantor precisa ser valorizada por outros aspectos da profissão, como os que já foram mencionados na seção anterior do presente texto.

O fato de apenas seis participantes identificarem-se de pronto como cantores em situações nas quais essa identificação é requerida pode ser visto como indicativo de que fora da cena artística – já que em tal cena os aspectos positivos estão ressaltados – a condição de cantor pode ser vivida com algum grau de desconforto. Esse desconforto pode ser inferido a partir das respostas em que a condição de cantor é omitida, ou omitida em determinados contextos, ou mesmo quando não é omitida, mas é sempre mencionada em associação com outra atividade como estratégia atenuante, como se estivesse dizendo “sou cantor, mas também tenho uma atividade tradicional” (é claro que a menção associada de duas atividades nem sempre é exemplo da estratégia sugerida).

Todo o extenso conjunto de situações marcantes, prazerosas, de reconhecimento e de aplauso que os cantores experimentam, se mostra insuficiente, no caso de alguns entrevistados, para extinguir o desconforto que resulta da percepção que eles têm de ser objeto de preconceito em alguns contextos. Tal situação de ambigüidade já estava sugerida quando os entrevistados falaram das dificuldades da profissão, conforma especificado na seção IV.4. É importante assinalar que esse mesmo tipo de ambigüidade também pode estar presente no dia-a-dia de outras profissões, com diversas intensidades. Uma condição profissional em que exista tal ambigüidade pode ser vivida como estressante, aumentando a probabilidade de insatisfações e dúvidas sobre a continuidade do trabalho, o que foi, de fato, mencionado por alguns entrevistados.

Uma faceta dessa mesma ambigüidade mencionada acima, especialmente vinculada à atividade de cantores, pode ser constatada no fato de que, diferentemente do que ocorre na maior parte das profissões, trata-se de atividade que é objeto de registro nos meios de comunicação tradicional, seja como anúncio, seja como notícia, seja como tema de apreciação

crítica, além de estar presente como registro sonoro ou de imagem nos repositórios que podem ser acessados na internet. Perguntados a respeito de manterem arquivos com informações a seu próprio respeito publicadas na imprensa, todos os participantes informaram que o fazem. Dois participantes relataram que a responsabilidade de manter o arquivo a seu respeito é de terceiros e um informou que guarda apenas materiais antigos, ressaltando que precisa atualizar seu arquivo.

É compreensível que essa providência seja adotada por razões práticas, e não apenas por vaidade pessoal. Como já foi comentado na seção IV.8.8, esses registros constituem os itens que poderão integrar o currículo do cantor. Ter informações publicadas na imprensa e fazer arquivo das mesmas, portanto, além de auxiliar a divulgação da carreira e a comprovação sobre atuação no cenário cultural capixaba, também é aspecto importante a ser considerado para a compreensão da identidade social do grupo.