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3 OS IMPACTOS INDIVIDUAIS DA VIOLÊNCIA SEXUAL E A PROTEÇÃO DAS

3.2 Atendimento à vítima e responsabilização adequada do agressor

o terapeuta coloca a boneca na sua frente ela é do tamanho das meninas que seus tios gostam de apalpar

mostre onde ele colocou as mãos

você mostra o lugar entre as pernas aquele que ele arrancou com os dedos

igual a uma confissão

como você está se sentindo

você desfaz o nó da garganta com os dentes e diz bem

um pouco dormente - sessões nos dias de semana

(KAUR, 2017, p. 15) Ultrapassada a barreira do silêncio, quando a criança ou o adolescente relata o processo a que foi submetido, inicia-se (ou deveria iniciar) a persecução do caso nas instâncias públicas, responsáveis pela proteção do infante e pela responsabilização daquele identificado como violentador. Sem adentrar no trâmite dos processos judiciais que contenham a narrativa de tais fatos, questiona-se: qual é o melhor modo para atender essa criança violada na sua dignidade e também responsabilizar o autor do fato?

Em razão das constantes ameaças que são dirigidas à vítima e da significativa reiteração dos fatos, em um primeiro momento afastar a criança ou o adolescente das relações que mantém com o abusador é fundamental. O apoio da família, sobretudo se dentro dela é que o processo violador ocorre, é de extrema importância, uma vez que, se desacreditada, a vítima não só se sente mais constrangida, como também culpada pelo que sofreu, em uma clara inversão de papéis. Evidências já constatadas na prática clínica de psicologia, narradas por Santos (2012, p.

57), observam que “[...] ser acreditada em seu relato e amparada em sua dor por pessoas que lhe são significativas afetivamente é um dos fatores indispensáveis e que podem fornecer à criança a elaboração psíquica a respeito dos prejuízos emocionais causados pela violência sofrida.” Abafar o caso, como popularmente é dito, a fim de evitar a visibilidade social do nefasto problema e a desintegração da unidade familiar, só vem a prejudicar o infantojuvenil, que terá de permanecer em tais condições, cujo sigilo será retomado. Não vendo saída, nessas condições, muitos empreendem fuga e, em casos mais graves, chegam a atentar contra a própria vida.

Ser resguardado e protegido de sofrimento são, pois, medidas básicas e imediatas para evitar que futuros danos se efetivem. Pessoas que mantém frequente contato com infantojuvenis, mas estão no ambiente externo ao doméstico, representam importantes papéis para o rompimento do processo, a exemplo do professor. Considerando que a maior parte dos casos se dá dentro da própria família, narrar a violência dentro dela é extremamente penoso para a vítima (que vem sendo alvo de inúmeros constrangimentos para manter esse sigilo, por vezes até se põe em xeque a vida e a morte de algum dos seus integrantes). Esse medo, acrescido da falta de credibilidade conferida à sua palavra, pode impedi-la de romper o segredo dentro dos vínculos familiares. Inobstante isso e o fato de profissionais da educação serem vistos como figuras de proteção às vítimas (que com elas estabelecem relações de confiança), elas nem sempre estão dispostas a relatar o que estão sofrendo.

Atentar para os sinais físicos e comportamentais que indicam a presença da violência sexual contra a criança ou o adolescente é necessário e também torna o professor responsável por levá-los ao conhecimento dos órgãos públicos, como Conselho Tutelar e Ministério Público, interrompendo o ciclo de violência. A comunicação obrigatória decorre do dever de todos em zelar pelos direitos da população infantojuvenil, assim como em razão das disposições dos artigos 13 e 245 da Lei nº 8.069/1990.

Evitar que a vítima tenha de narrar o abuso inúmeras vezes é outra medida necessária, uma vez que relembrar o sofrimento é igualmente tortuoso. Pötter (2016, p. 217) leciona que “[...] uma tomada de declarações equivocadas ou com falhas, além da possibilidade de causar dano, às vezes maior que o abuso, implica relato sem conteúdo e de difícil aproveitamento como prova, para fins de condenação do acusado.” Ainda, a reiterada repetição do fato também acarreta a superexposição da criança vítima, ser humano ainda em desenvolvimento. Para

relatar o fato, deverá relembrá-lo e isso corresponde ao esforço cognitivo de memória e reconstrução do evento principal, que foi o abuso. Trata-se de reconstrução mnemônica, isto é, a reconstrução de um fato passado (PÖTTER, 2016).

Basta imaginar uma situação de relato exposto dentro da instituição escolar, levado pessoalmente ao professor que acompanha a criança vitimizada. A seguir, ao diretor da instituição, os quais questionam o infante. O fato é levado posteriormente ao conhecimento do Conselho Tutelar, que ouve mais uma vez a criança, repetindo a narrativa do processo tortuoso. O fato chega à Delegacia de Polícia, com renovação de oitiva, encaminhando-a ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Relembrar o processo e relatá-lo demasiadas vezes é aflitivo e pungente, o que tende a tornar-se mais prejudicial quando a natureza do crime é sexual e sua ocorrência se deu em face de crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento. A desorganização da estrutura psíquica e social do infante se alastra, revitimizando-a. Ninguém deseja reviver o que quer esquecer.

Aos nossos olhos, tão logo o fato seja conhecido, seja por meio de procedimento internos de disque-denúncia, por profissionais da saúde (atendimentos hospitalares, por exemplo), da educação ou do próprio Conselho Tutelar ou Ministério Público, antes da tomada de qualquer depoimento, oitiva, questionamento ou verbalização dos fatos diante da vítima, ela deve ser encaminhada a profissional da área da psicologia, o qual, fazendo uso dos mecanismos que são do seu campo e alcance, ouvirá o fato de forma acolhedora, humanizada, apta ao desenvolvimento do ofendido, além de deter condições de levar a situação ao Poder Judiciário. A escuta sensível do psicólogo auxilia fundamentalmente para a identificação do ato (inclusive a respeito de sua existência), o acompanhamento dos envolvidos (especialmente a criança ou o adolescente), tratamento e obtenção de provas para a esfera penal. Tal lógica está disciplinada pela recente Lei nº 13.431/2017 (mencionada nos capítulos antecedentes), através do procedimento de entrevista denominado de “escuta especializada”, que dispõe de sua coleta pela rede de proteção e determina seja o relato limitado ao necessário para o cumprimento de suas finalidades, devendo ser realizado em ambiente acolhedor ao infantojuvenil vítima ou testemunha da violência (BRASIL, 2017).

Para tanto, estruturais municipais devem contar com um número de servidores necessário às peculiaridades da localidade, bem como constante capacitação. É salutar frisar que tais profissionais têm maiores condições de fazer-se entender e compreender a linguagem

infantil, juvenil e sexual, assim como de transmiti-la aos operadores do Direito, minimizando problemas de comunicação (PÖTTER, 2016).

Com efeito, os psicólogos têm condições de realizar uma análise sobre a validade/autenticidade do testemunho das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, com ferramentas que a Ciência da Psicologia pode proporcionar, garantindo o bem-estar emocional das crianças e adolescentes, durante o seu depoimento ou na produção do laudo psicológico/psiquiátrico pericial, procurando reduzir os efeitos negativos que podem produzir a rememoração dos fatos. (PÖTTER, 2016, p. 219)

Há casos e casos quando essa temática se apresenta. Diferenças como a continuidade de abusos perpetrados em face de uma vítima (às vezes perdurando durante anos), em comparação ao abuso sexual único, certamente vindicam atendimentos e tratamentos diferenciados. O acolhimento social e familiar da pessoa ofendida, bem como o afastamento do agressor, são medidas aptas a diminuir bruscamente os danos quando o ato foi único, ou, por outro viés, a forma com que a violência sexual foi praticada se deu de modo tênue. Possuem prognósticos diferentes, portanto. De todo modo, a participação de profissionais da saúde mental é de grande valia, seja como tratamento, seja como prevenção da triste revitimização que costuma ocorrer na persecução da prova processual.

Nesse sentido, Cristiane Andreotti Santos (2012, p. 58) argumenta a importância da contribuição do psicólogo para a integridade de todos os envolvidos, seja a criança ou o adolescente que sofreu a violência, seja o autor e inclusive a família. Em suas palavras, especialmente quanto à pessoa vitimizada, o apoio do profissional da psicologia é essencial: “o psicólogo deve também lhe dar proteção emocional durante a revelação da violência, já que, nesse momento, ela está desprotegida e fragilizada.” Atendimentos psicossociais, portanto, são sempre recomendados, acompanhando-se o grupo familiar, fornecendo apoio terapêutico a quem sofreu o abuso, amparando a vítima ao acolher seu sofrimento e angústia, assim como ajudar na sua proteção.

Qualquer que seja o tipo de violência sexual incestuosa cometida contra a criança e, nesses casos, embora também culpado, o autor da violência deve ter atendimento psicossocial. Isso não exclui a necessária punição como forma de contenção. Tal atendimento tem sido deixado de lado na maioria dos locais onde acontece a recepção à criança e à família, o que torna a intervenção fragmentada. (SANTOS, 2012, p. 35)

A autora (2012, p. 38) também traz à luz a existência do que denomina de crianças

resilientes, as quais, “[...] são capazes de superar adversidades, situações potencialmente

adaptativos e adequados.” A resiliência se traduz, pois, na capacidade de enfrentar as situações estressantes e traumáticas vividas, com a construção de novos caminhos. Para a superação do trauma, fatores individuais (psíquicos) e ambientais precisam se reunir (como o apoio, incentivo à criatividade, boas relações, atividades religiosas). Nesse mesmo caminhar, deve-se evitar estigmatizar a criança: “Nesse sentido, é importante não colocar na criança o rótulo de vítima, porque podemos engessar a possibilidade do que ela pode vir a ser se nós a olharmos para ela o tempo todo como alguém que foi vítima. É possível reconstruir a vida a partir de uma situação de violência.” (SANTOS, 2012, p. 39). Sobre a possibilidade de enfrentamento e superação, a psicanalista Hisgail (2007, p. 42) conclui:

A criança vitimizada encontra no tratamento psicoterápico um lugar de escuta, de modo que ela possa exprimir os conflitos e os medos, além de relatar as histórias sobre a situação traumática. Apesar do estigma que envolve a vitimização, devemos situar a criança, no tratamento, para além do lugar enunciativo do trauma, como sobrevivente do abuso sexual.

A postura de ver no infante alguém além do episódio violento, como resiliente e sobrevivente ao processo traumático, torna-se roupagem necessária a todos que com ela irão trabalhar o apoio, a terapia e a superação do evento, interação necessária com o auxílio da família e da comunidade.

Retomando a breve abordagem realizada no capítulo anterior, a respeito da vitimização secundária, analisa-se, neste momento a questão da responsabilização adequada do agressor e, para tanto, torna-se necessário recordar que nem toda a pessoa que violenta outrem sexualmente é portador da perversão sexual que é a pedofilia. De um modo ou de outro, a responsabilização de ambos pelo ente público, através do Poder Judiciário, se dá na esfera penal. Abstratamente são narradas condições do cumprimento da pena, sem adentrar nas fases da persecução penal. É de se destacar mais uma vez que a responsabilização adequada discutida a seguir, em muitos casos, é uma verdadeira utopia, haja vista a considerável parcela de processos truculentos que jamais chegam ao conhecimento dos órgãos públicos.

Alessandro Baratta (1993, p. 50), jurista italiano, leciona acerca da violência no sistema do direito penal e pontua ilustremente as persistentes fraquezas que nele resistem, dentre as quais a de que “o controle penal intervém sobre os efeitos da violência e não sobre as causas da violência, isto é, sobre determinados comportamentos através dos quais se manifestam os conflitos, e não sobre os conflitos propriamente ditos.” E essa análise é de suma importância

nesta altura do estudo. A persecução penal no Brasil encontra as mais diversas carências, cuja notoriedade se expressa no sistema penitenciário. O que se assiste diariamente é a intervenção sobre a conduta do agente, sem questionamentos sobre as suas causas. Nos crimes de cunho sexual não é diferente, nos quais parcela dos autores do fato são acometidos por doenças psicológicas e o tratamento recebido no cumprimento da pena não se mostra satisfatório para buscar reverter a situação. O autor também explica que:

O controle penal intervém de maneira reativa e não preventiva. Com isto quero dizer que ele intervém quando as consequências das infrações já se produziram, mas não efetivamente para evitá-las.[...] As consequências da violência não podem ser eliminadas simbolicamente. Por esta razão, o sistema de justiça punitivo se apresenta como uma forma institucional e ritual de vingança.

A resposta estatal é a aplicação de uma pena, a qual sabidamente sozinha não é capaz de atingir suas próprias finalidades (como a reinserção social), o que dizer de reparar o dano, fornecer atendimento especializado e qualificado à vítima e responsabilizar adequadamente o agressor.

Não se está, com isso, a defender a abolição do sistema penal de responsabilização, sem a aplicação de sanções ao acusado. O que se afirma é que, pela forma como ela é concretizada, resultados benéficos não podem ser esperados. O autor necessita ser responsabilizado pelo ato que praticou e a sanção, no caso do agente ser pedófilo, requer a atuação simultânea de tratamento específico, desde que esse último seja aceito pelo indivíduo. “Não há dúvidas de que a pessoa precisa ser responsável pelos seus atos. No entanto, não somente em relação à pedofilia, mas também a diversos outros crimes ocasionados por uma doença, deve ser dispensado um tratamento adequado e específico ao autor.” (SILVA et al, 2012, p. 53).

Fani Hisgail (2007, p. 29) observa que a imposição de medidas judiciais de responsabilização devem ser complementadas com medidas terapêuticas, quando se está a falar de sujeitos portadores de transtornos de cunho sexual. Em suas palavras, “a possibilidade de o pedófilo ser reconhecido como doente pela justiça e por ele mesmo é condição básica do tratamento.” Destaca-se: é necessário que o sujeito reconheça a sua condição de doente. No entanto, a psicanalista também enfatiza a importância da existência da sanção penal, que por vezes poderá ser a única maneira de coibir a conduta do pedófilo:

As motivações e as perturbações graves dissimuladas no inconsciente, constituem um terreno desconhecido sobre os processos psicológicos em jogo. Desse modo, tende-se a reduzir a lei simbólica à norma, demonstrando ser a sanção penal a única maneira de resguardar a tentação do desejo.

Países europeus, como a França, vêm desenvolvendo pesquisas em razão da elevada demanda judicial nos crimes de natureza sexual em face de crianças e adolescentes. Medidas peculiares no intuito de evitar a reincidência estão surgindo, a exemplo do investimento no tratamento e na fiscalização, cuja vigilância persiste mesmo após a soltura da prisão do sujeito (HISGAIL, 2007). No caso da pedofilia é forçoso reconhecer que os estudos sobre o tema são iniciantes, embora a sua incidência seja demasiadamente velha, acompanhando o desenvolvimento dos povos.

As razões que conduzem à pedofilia não são plenamente conhecidas, melhor seria dizer que as pesquisas no ramo são incipientes. O tratamento é uma aposta, já que a sua cura não é reconhecida, mas o investimento nele deveria se pautar pela lógica da prevenção, a fim de evitar que atrozes delitos sejam perpetrados. Hisgail (2007, p. 112), a respeito, dispõe que:

Devemos prestar atenção aos intrincados nós que o fenômeno abrange em relação às formas de tratamento. O psicanalista jamais compactuará com o desejo sexual do pedófilo, reconhecendo que, além de ser um crime, está diante de uma patologia psíquica. Atento às vias perversas do desejo do sujeito, urge reconhecer e saber mais – no ambiente da clínica – sobre os caminhos que conduzem à libido desfocada e errante descrita na pedofilia.

A autora bem destaca que a atuação do Estado, através da privação da liberdade do indivíduo, nos moldes em que ocorre hoje, é apenas medida temporária, pois, uma vez posto novamente em liberdade, o pedófilo volta a agir, sob o ímpeto da pulsão psicológica. (HISGAIL, 2007). Portanto, além de necessariamente enfrentar as mazelas que atingem o sistema da execução penal no Brasil, a intervenção da psicologia no âmbito prisional com tratamentos e possíveis acompanhamentos posteriores ao cárcere são medidas que se mostram necessárias, e vão ao encontro da melhor responsabilização do autor da violência sexual em face de infantojuvenis.

Sem esquecer que nas situações em que o autor não é acometido pela patologia, o tratamento narrado não encontra respaldo. Nesse sentir, o cumprimento das normas brasileiras atinentes à pena, especialmente com relação à finalidade educativa, traduziria um bom caminho. Entretanto, as raízes do problema, por essa ótica, são mais profundas, exigem a retomada da

discussão sobre o respeito à condição humana, a violência como objetificação do outro e a dominação dos corpos enquanto comportamento cultural, social e histórico.