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A violência sexual praticada contra o público infantojuvenil se dá, com grande frequência, no âmbito das relações familiares e afetivas entre a vítima e seu agressor, caracterizando-se, assim, como violência doméstica, conforme já narrado. Suas formas de ser são elencadas por Viviane Nogueira de Azevedo Guerra (1998) em: transgressão de poder, através do critério etário de que o adulto se vale para se sobrepor à criança ou adolescente; negação da liberdade do violentado; e um constante processo de vitimização ao abolir as vontades da criança ou do adolescente, coagindo-o a satisfazer os prazeres e interesses do sujeito ativo. Assim,

[...] portanto, a violência doméstica contra crianças e adolescentes representa todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (GUERRA, 1998, p. 32-33)

Essa desconsideração do caráter humano da criança ou do adolescente se repete em várias formas de violência, bem como nas instâncias investigadoras da agressão. Um retrato no qual os danos sofridos se multiplicam, ao mesmo tempo em que mecanismos para auxiliar a pessoa violentada são sutilmente apresentados, o que já perdura a longo tempo na história da responsabilização do autor do fato: “não se trata, então, de um problema novo, pois o esquecimento e desrespeito da vítima é histórico [...].” (PÖTTER, 2016, p. 94).

Vicente de Paula Faleiros (1998, p. 38-39), sociólogo brasileiro com grandes pesquisas sobre o fenômeno da violência sexual infantojuvenil, aponta que crianças e adolescentes “podem ser vitimizadas em qualquer idade, mas as reações e traumas são diferenciadas de acordo com a idade, assim como a capacidade da criança ou do adolescente reagir, contar, resistir e do apoio que venha a receber.” Menciona também que meninas são incisivamente mais violentadas que meninos – segundo ele a proporção é de que praticamente 90% dos casos de pessoas violentadas são do sexo feminino. Ainda, que dentre as facetas interligadas que permeiam a temática, o trauma, a vergonha e o medo acompanham a pessoa vitimizada (diante da reiterada punição dirigida à própria pessoa ofendida, praticada pela comunidade), assim como reincidência pelo abusador, repetição futura da violência suportada pela então vítima, presença de violência em todas as classes sociais, impunidade do abusador (através da tolerância por razões culturais e autoritárias), bem como complexos tratamentos pelos quais o ofendido carecerá.

É o próprio autor que prefere a expressão “vitimização” ao invés de “vítima”, sob a ótica de que a primeira reconhece o ofendido enquanto sujeito, detentor de “capacidade de compreensão” e reação de uma ou outra forma: “Trata-se de sujeito vitimizado e não de um objeto-vítima.” (FALEIROS, 1998, p. 38). A objetificação da pessoa ofendida se mostra com grande nitidez no âmbito processual, no qual a sua presença se mostra como instrumento de prova. Ou seja, trata-se de um meio probatório, fonte de prova, essencial a fim de garantir a apuração do fato delitivo e a aplicação da lei penal. Para a vítima, contudo, apenas lhe resta acompanhar e aguardar a coleta de seu depoimento e de exame de seu corpo (havendo vestígios materiais). Em termos históricos, não é diferente. Luciane Pötter (2016, p. 81) pontua que: “a vítima foi esquecida e tratada sempre como um objeto que apenas deve colaborar com a investigação criminal.” Ainda,

Não foi diferente com o Direito Penal, que é um direito punitivo-sancionador, ou com o Processo Penal, que limitou a participação da vítima à condição de testemunha- informante objetivando colaborar no esclarecimento do fato, ou, inclusive, com a Política Criminal, que procura prevenir o crime trabalhando o potencial infrator, mas esquece de oferecer programas e medidas eficazes contra a potencial vitimização e revitimização Todos direcionam o olhar para o delinquente, seus direitos e garantias.

Para o estudo das vítimas do delito surge a teoria criminológica que é a Vitimologia, cuja inserção no campo científico se deu apenas no século passado. No entanto, no Brasil ainda

não há a devida atenção à pessoa vitimizada, ao seu sofrimento, aos danos suportados e formas de superá-los, omissão que é constatada na doutrina e na atuação legislativa, salvo raras exceções – a exemplo da Lei nº 9.099/1995, que permite um sistema comunicativo e resolutivo entre autor do fato e vítima, em crimes de menor potencial ofensivo (PÖTTER, 2016). Nesse aspecto se inserem recentes introduções no mundo jurídico, como a ideia trazida pela Justiça Restaurativa4, ainda tímida no cenário nacional. Quando a abordagem se dá à luz dos infantes, observa-se que o reconhecimento de seus direitos é contemporâneo no Brasil, possibilitado através da produção jurídica normativa no plano internacional, como foi a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989). A partir da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tornou-se expresso que são sujeitos de direitos e pessoas em peculiar condição de desenvolvimento. Todavia, isso não representa automaticamente a modificação da estrutura processual penal e a efetividade no sistema de garantias do próprio ECA.

O autor do fato, por outro lado, dispõe de diversas garantias e direitos constitucionalmente assegurados (art. 5º da Carta Magna), como exige um Estado Democrático de Direito. A respeito, Pötter (2016, p. 88) adverte que:

A construção do sistema de garantias penais e processuais é direcionada, fundamentalmente, ao imputado, autor do delito; a vítima, na ótica dessas garantias, é abandonada a sua própria sorte. Na atualidade, a vítima chama a atenção como objeto de estudo da Vitimologia, mas, principalmente, evidencia-se a importância da atuação da vítima na determinação da ofensa e da punição.

Desse modo, o processo de objetificação e de vitimização das pessoas violentadas se reproduz em diferentes perspectivas, seja no contexto da própria violência ou no processo de apuração e responsabilização desenvolvido no âmbito do sistema penal, quando aquela serve exclusivamente como informante e não vê suas necessidades efetivamente atendidas. Isso se repete nos mais variados tipos de violência, não se restringindo à seara dos crimes sexuais. Contudo, é em casos como o estudado, no qual a esfera psicológica do ofendido é gravemente afetada, enquanto a criança ou o adolescente simultaneamente perpassa pela condição própria de desenvolvimento, que os danos podem ser ainda mais gravosos. A somar nesse processo

4 Trata de espécie de “nova Justiça”, dotada de lente distinta da atual, que é considerada retributiva (com ênfase

na esfera penal). Possui como uma de suas diretrizes a contribuição e participação das pessoas diretamente envolvidas no conflito, assim como a comunidade. Seus objetivos se constituem na solução de conflitos, construção da paz e da responsabilização consciente, ao ser formulada por ambas as partes envolvidas, autor e ofendido, na solução do impasse. Não há imposição de pena, que se traduz em dor sobre dor (sem atentar ao sofrimento da vítima), mas na reparação do dano sob o enfoque das necessidades, traduzidas pelo ato do autor, assim como daquela gerada à pessoa vitimizada.

vitimizatório, encontra-se o dano causado pela sociedade, que costumeiramente atua no papel de “sociedade-juiz”, valorando o comportamento dos envolvidos, em especial da pessoa vitimizada, com ênfase se for do sexo feminino (novamente apresentando o comportamento de culpabilização da vítima). Nessas três modalidades de objetificação ocorre o processo vitimizatório, que se desdobra em primário, secundário e terciário.

Maria Azevedo e Viviane Guerra (2000, p. 35) apontam, na mesma linha deste estudo, que “a vitimização não é um fenômeno isolado, mas sim um processo que se prolonga às vezes por anos [...].” Para Alvino Augusto de Sá (apud MOROTTI, 2017), em complemento, a vitimização ou processo vitimizatório consiste no “processo complexo, pelo qual alguém se torna, ou é eleito a tornar-se, um objeto-alvo da violência por parte de outrem.” Dentre os desdobramentos desse processo, a vitimização primária consiste naquela que se dá através da prática do crime, ou seja, as consequências advindas diretamente do delito. É a violação primeira, que ocasiona o sofrimento à pessoa vitimizada5. “O processo de vitimização a que é exposta a criança ou adolescente, quando sofre o abuso sexual, é denominado de vitimização primária, que desencadeia grandes ressentimentos e desequilíbrio emocional.” (PÖTTER, 2016, p. 95). Trata-se, sem dúvida, de uma das formas mais truculentas de violação dos direitos humanos básicos assegurados a toda e qualquer criança e adolescente, que ainda se fazem presentes nas mais variedades sociedades, dentre elas a brasileira.

É em casos como esse, no qual a esfera psicológica do ofendido é gravemente afetada, além da desconsideração dos prejuízos suportados pela pessoa ofendida, que outra consequência eventualmente surge: a repetição da violência. Faleiros (2007, p. 39) argumenta que “as pessoas vitimizadas tendem também a repetir a violência com outras pessoas da mesma forma em que foram vitimizadas.” Nesse aspecto vale salientar que não se está a dizer que toda pessoa violentada sexualmente irá reproduzir essa violência. Várias circunstâncias irão influenciar nesse processo, dentre elas a frequência com que violentada, devendo-se observar o que o sociólogo já pontuava, acerca das reações e traumas de cada criança (ou adolescente) serem variáveis.

5 Importa salientar que, conforme será verificado no terceiro capítulo deste estudo, diante das peculiaridades dos

sujeitos vitimizados na violência sexual infantojuvenil, em especial pelo desenvolvimento psíquico, há casos nos quais a criança não compreende o caráter da violência, não ocorrendo o sofrimento imediato. Tal circunstância, no entanto, não faz com que desapareça essa forma de vitimização, porquanto seus direitos são atingidos pela conduta do agressor, podendo advir consequências traumáticas posteriores, sobretudo na vida adulta.

A vitimização secundária, por sua vez, refere-se ao sofrimento que é causado ao ofendido pelo próprio sistema legal, responsável pela investigação da conduta do agressor. Ocorre quando há desrespeito e violação às garantias e aos direitos fundamentais de vítimas, sobretudo no curso do processo penal (MOROTTI, 2017). Também é denominada de violência institucional, em razão do caráter do seu perpetrador. Pode ser compreendida como revitimização, ao passo que essa corresponde ao processo de ampliação do trauma vivenciado pela vítima da violência, em decorrência da impropriedade dos procedimentos pelas instituições que realizam o atendimento da vítima, como as unidades escolares, a Rede de Proteção, a Delegacia de Polícia e o Poder Judiciário. Nas palavras de Evani Zambon Marques da Silva (2012, p. 11), “[...] o aviltamento que a superexposição da criança vítima – ser humano ainda em desenvolvimento – pode sofrer em um processo que não se encerra com os autos em si, com a sentença ou aplicação da pena ao réu, é estarrecedor.”

E por fim, a vitimização terciária, pouco discutida, apesar de fortemente presente. Trata-se do sofrimento causado pelo conjunto social à vítima que, no mais das vezes, já foi violentada pelas modalidades primária e secundária. Luciane Pötter (2016, p. 96) explica que essa forma de vitimização “é referida pela doutrina, em especial a espanhola, como decorrente da estigmatização que a sociedade realiza sobre a vítima.” Nos crimes sexuais essa forma de vitimização se mostra com clareza, sobretudo quando as vítimas são mulheres adultas, em contextos nos quais a sociedade busca culpabilizar a mulher, um dos comportamentos inerentes à já abordada cultura do estupro. Quando a violência é praticada em face de crianças e adolescentes, a vitimização terciária, de fato, é menos presente, tendo em vista ser comum a sociedade repudiar tal ato se perpetrado em face de infantes (ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, desacredita em sua palavra e lhe sexualiza). Contudo, no que tange a adolescentes, quanto mais próxima da juventude, desafiam-lhes os típicos julgamentos moralistas e misóginos.

Consideramos que, na terceira modalidade do processo vitimizatório, protagonizado pela própria sociedade, justamente uma das figuras incumbidas de assegurar a efetivação dos direitos infantojuvenis (a teor do que dispõe o artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente), impera uma cultura adultocêntrica. Ela corresponde ao poder de autoridade exercido pelos adultos sobre os mais jovens, que se identifica não só através da conduta do abusador, mas também por intermédio daqueles que estigmatizam o violentado, em evidência quando culpabilizam a criança ou o adolescente por apresentar comportamento “inadequado”,

como a sexualidade aflorada (que é justamente uma das reações advindas do sofrimento infligido à dignidade sexual infantil). Age do mesmo modo, quando se silencia diante de processo de violência, ou seja, quando não assume seu dever de impedir a perpetração da agressão em face de infantojuvenis, nada fazendo para interromper o sofrimento desses. Ao revés, culpabiliza-os ou desacredita em sua palavra.

Demonstra-se, nesse sentido, como Luciane Pötter (2016, p. 95) argumenta, que crianças e adolescentes, “enquanto personalidades em desenvolvimento, inúmeras vezes atacados em sua dignidade, são vítimas da cruel sociedade, da família, das instituições. São pequenos, invisíveis e mudos, e até quando gritam não são ouvidos.”