• Nenhum resultado encontrado

IV. A trajetória nuclear do Brasil

IV.4 Atividades nucleares em uma democracia emergente (1988 atual)

É neste período, referente à etapa mais recente da trajetória política do Brasil, onde se encontra o foco de interesse desta pesquisa. A emergente democracia que sucedeu a ditadura militar trouxe consigo novas bases formais para a formulação de políticas públicas. É objetivo desta tese entender como o novo arcabouço legal e os ideais democráticos se apresentaram na formulação das políticas do ciclo do combustível nuclear.

Primeiro Presidente da República a ser eleito pelo voto popular desde 1964, Fernando Collor de Mello propôs novos rumos para a política externa brasileira ao renunciar oficialmente às explosões nucleares. Logo no ano inicial de seu mandato, Collor realizou uma cerimônia pública na base aérea da Serra do Cachimbo, onde jogou uma pá de cal sobre os poços que supostamente serviriam para testes nucleares (FOLHA DE S. PAULO, 1990; ISTO É SENHOR, 1990). Além dessa medida simbólica, Collor anunciou a nova posição brasileira em seu discurso na Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU), também em 1990 (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 1990).

Naquele mesmo ano, uma CPI foi estabelecida para investigar o programa nuclear autônomo dos militares (BRASIL, 1990a). Entre as principais descobertas da CPI estão detalhes sobre comércio ilícito de material nuclear, bem como informações sobre

38 operações financeiras ilegais que sustentaram o programa secreto. Em seu relatório final, a comissão de inquérito recomendou que o programa autônomo/paralelo fosse dissolvido, sendo algumas de suas atividades integradas ao programa civil, sujeito a salvaguardas. Também recomendou o estabelecimento de mecanismos de responsabilização para aumentar a segurança e a proteção do programa (BRASIL, 1990b).

A retomada da construção de Angra 2 ocorreu em 1994 a partir de uma decisão tomada no final do governo de Itamar Franco (ANDRADE, 2006, p. 157). A construção levaria ainda vários anos e a usina viria a operar apenas no ano 2000, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso. Como essa foi uma das decisões-chave para a produção de energia nuclear no Brasil, a continuação das obras de Angra 2 será um dos estudos de caso desta pesquisa (Capítulo 4).

Também foi durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) quando saíram do papel os planos para extrair urânio a partir do depósito mineral de Caetité, na Bahia. A decisão visava a atender à demanda por combustível nuclear, a qual foi ampliada em função da previsão de conclusão de Angra 2. A Unidade de Concentrado de Urânio (URA) começou a operar efetivamente apenas em 1999, sob a responsabilidade da INB, e continua ativa até hoje. A mineração em Caetité também será analisada em um estudo de caso mais adiante (Capítulo 2).

Em 2000, a INB e o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) celebraram um contrato para a construção de uma unidade para enriquecimento isotópico de urânio em escala comercial, na Fábrica de Combustível Nuclear (FCN), em Resende. Por meio desse acordo, a Marinha se comprometeu a fornecer as ultracentrífugas necessárias para realizar essa etapa do ciclo do combustível nuclear. Naquela época, a FCN já contava com instalações para montagem do elemento combustível, produção de

39 pastilhas e reconversão. O enriquecimento de urânio em escala comercial será um dos estudos de caso realizados nesta pesquisa (Capítulo 3).

Há poucos países no mundo que realizam a etapa de enriquecimento em seu próprio território35; a maioria que utiliza energia nuclear importa o combustível já enriquecido. Essa configuração não se dá por acaso. A tecnologia é sofisticada, cara e pode ter elevado custo político. Essa etapa é uma das mais sensíveis, uma vez que o grau de enriquecimento do urânio pode torná-lo um combustível adequado para um reator de potência ou de pesquisa ou para o núcleo de uma bomba atômica.

Quando se tornaram públicos os planos do Brasil para a instalação de uma planta comercial de enriquecimento, diversos países se mostraram apreensivos. Essa situação só não foi mais complicada porque o Brasil já não se encontrava fora do regime internacional de não proliferação nuclear. Ao longo da década de 1990, o país criou um regime bilateral de salvaguardas nucleares com a Argentina, decidiu implementar o Tratado de Tlatelolco, aceitou as inspeções da AIEA e aderiu ao TNP36. Desta maneira, as atividades nucleares foram abertas para inspeções internacionais.

Não obstante, antes da inauguração da primeira cascata de enriquecimento na FCN, houve desentendimentos entre o Brasil e a AIEA sobre os procedimentos de inspeção, em 2004. O Brasil relutava em conceder à AIEA acesso visual completo às suas centrífugas, as quais estavam cobertas por painéis de dois metros de altura. A justificativa brasileira afirmava a necessidade de proteger segredos industriais e se resguardar de tentativas de espionagem industrial, uma vez que a tecnologia utilizada de centrifugação pelo país seria supostamente superior às demais (FERNANDES, 2004). Após meses de impasse, o Brasil

35 Além das nações detentoras de armas atômicas (China, Coreia do Norte, Estados Unidos, França, Índia,

Paquistão, Reino Unido, Rússia), os seguintes países possuem plantas operacionais de enriquecimento de urânio: Alemanha, Brasil, Holanda, Irã e Japão.

36 Sobre a integração do Brasil aos instrumentos do regime internacional de não proliferação nuclear, ver

40 concordou em autorizar acesso visual – embora parcial – às centrífugas e a outros equipamentos industriais, reduzindo o tamanho dos painéis que os cobriam (CARNEIRO, 2004).

A primeira cascata de enriquecimento começou a funcionar em maio de 2006. Nos anos seguintes, outras três cascatas foram ativadas, completando, assim, o primeiro módulo da unidade em outubro de 2012. Três módulos adicionais estão previstos na primeira fase do projeto, cada um com duas cascatas de ultracentrífugas, sendo que um deles já foi instalado. No total, a instalação conta, atualmente, com seis cascatas de centrífugas, o que corresponde a uma capacidade instalada da ordem de 35.000 kg UTS/ano – aproximadamente 34% das necessidades de urânio enriquecido para uma recarga de Angra 1 (INB, 2016d, p. 15)37.

Além da inauguração da unidade de enriquecimento da FCN, a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, sucessor de Fernando Henrique Cardoso, protagonizou outros fatos importantes no campo nuclear. A retomada da construção de Angra 3 foi anunciada em 2007, no contexto do Plano Nacional de Energia 2030 (PNE 2030), lançado no mesmo ano38. Ao conceder a licença ambiental para a continuação dessas obras, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) elencou como fator condicionante um projeto para disposição final dos rejeitos radioativos de alta atividade antes do início da operação de Angra 3 (IBAMA, 2008). No Brasil, os rejeitos de alta atividade são armazenados em depósitos intermediários, em “piscinas” junto aos reatores de Angra. Ainda não existe no país um plano para um depósito definitivo, onde

37 O poder de separação de uma ultracentrífuga é medido em quilograma (kg) de Unidade de Trabalho

Separativo por ano (kg UTS/ano). Essa medida se refere ao trabalho necessário para separar isótopos de urânio no processo de enriquecimento. Quanto maior o número, maior a capacidade de enriquecimento.

38 Segundo este plano, o Brasil precisava aumentar sua produção de energia. Para tanto, uma capacidade

41 o combustível irradiado poderia ser armazenado por milhares de anos, até que deixem de ser nocivos.

A presidência de Lula também serviu para revitalizar o programa nuclear da Marinha, voltado para a construção de um submarino movido a propulsão nuclear. Tal medida foi incluída no Programa de Desenvolvimento de Submarino (PROSUB), que também prevê a construção de quatro submarinos convencionais. O PROSUB foi lançado em 2008 a partir de um acordo com a França (MONIZ BANDEIRA, 2011, pp. 308-315). Não obstante a parceria internacional, o reator naval deve ser desenvolvido pela Marinha brasileira autonomamente. A data estimada para a conclusão do submarino nuclear é 2027 (CHARLEAUX, 2017).

Outro desenvolvimento recente diz respeito à construção de um reator multipropósito no Brasil. Essa decisão foi anunciada em 2013, já no governo da Presidente Dilma Rousseff (JORNAL DA CIÊNCIA, 2013). Espera-se que o reator contribua para tornar o Brasil autossuficiente na produção de radioisótopos e radiofármacos, substâncias essenciais na medicina nuclear. Embora o projeto básico esteja pronto, a construção do reator depende do aporte de recursos (VILLELA, 2016).