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Atleta profissional: o estatuto de pessoa e coisa

3.3 O corpo no futebol

3.3.1 Atleta profissional: o estatuto de pessoa e coisa

No movimento de escrita das seções anteriores, observa-se que o futebol como produto de relações humanas possui a capacidade de despertar sentimentos coletivos de pertença e de identificação social, em especial no Brasil, conhecido mundo a fora como o país do futebol (COUTO, 2014). Por outro lado, registrou-se que o esporte também pode implicar processos formativos pautados em um pensar e agir fragmentado, considerando o fato da eficiência e suficiência corporal objetivada de modo efetivo nos círculos profissionais corroborar para o distanciamento do processo de aquisição do que Nóbrega (2010) intitula de

“saberes corporais”.

Tendo rememorado com brevidade estes pontos, segue-se para a análise da figura do atleta profissional, que para início, vale destacar as palavras de Bento (2006):

[...] o atleta é expressão de que o homem também se cumpre e tem que cumprir e redimir através de dores e desempenhos corporais; de que o corpo é um dos campos de realização do destino da transcendência que o nosso horizonte cultural impõe a todos e a cada um. Ou seja, a cotação e o apreço, de que goza o atleta no nosso ambiente sociocultural, provam sem sofismas que o corpo constitui um meio privilegiado para enfrentar o desafio da superação e da excelência. Para cumprir o destino de perseguir a utopia da eternidade, de tornar possível o impossível, próximo o distante, alcançável o inatingível, eterno o mortal (BENTO, 2006, p. 168-169).

É perceptível nos dizeres de Bento o quanto está associada ao atleta a noção de um ser humano que existe para se efetivar como ser transcendente por meio da superação dos próprios limites, os quais se atingem via corpo. Sugere haver um preço alto a pagar pela imortalidade perseguida, mesmo que o corpo pereça, afinal, a recordação dos feitos alcançados pela dedicação e empenho máximo, físico, técnico, tático e emocional que um atleta se submete, levando o corpo a um limite extremo de produção, são capazes de atravessar e inspirar gerações inteiras.

Para Simões, Moreira e Pelegrinotti (2017) o atleta traz no corpo os marcadores biológicos e culturais do tempo e da cultura em que vive, “[...] é ao mesmo tempo totalmente biológico e totalmente cultural, existencializando sua história e sua cultura, ao mesmo tempo em que modifica essa história e essa cultura” (SIMÕES; MOREIRA; PELEGRINOTTI, 2017, p. 65). É marcante na fala dos autores, o quanto o papel social desempenhado pelo atleta é indissociável de sua figura existencial, diferenciando-o, dentre os demais papéis sociais que o ser humano enquanto ser sociocultural pode ocupar durante a vida de modo que induz a pensar no atleta como ser de humanidade, no sentido da inteireza de sua existência. Há aí um paradoxo,

tendo em vista por vezes ser negado a ele o direito ao fracasso, à derrota, à insuficiência corporal e ao erro a que todos os seres humanos estão sujeitos.

O atleta não é apenas atleta nos momentos de treinamento ou nas competições. Ele o é em todos os instantes de sua vida, da mesma forma que o ser humano não o é apenas nos períodos de descanso e de descontração, sendo-o também nas fases do desenvolvimento dos treinamentos e nas competições (SIMÕES; MOREIRA;

PELEGRINOTTI, 2017, p. 64).

É perceptível, nos autores citados, que ser atleta é uma condição existencial que repercute nas ações cotidianas, para além dos momentos de treino e competições, fato que carece de um gerenciamento da vida que corresponda às obrigações inerentes da posição social que ocupa, requerendo-se o cultivo de uma postura de vida que emana valores e disciplina.

Além disso, nota-se a condição existencial e o papel social exercido como faces da mesma moeda.

A ênfase para o cultivo de valores que possam transcender o momento da competição e repercutir nas práticas cotidianas, desenhando-se ações com forte potencial educativo, é destaque no trabalho das autoras Rubio e Melo (2019), no qual salientam:

Dentre esses valores podem ser destacados o fair play, ou jogo limpo, ou ‘ética esportiva’, definido como um conjunto de princípios éticos que orientam a prática esportiva. Presume uma formação ética e moral daquele que pratica e se relaciona com os demais atletas na competição. É a afirmação de uma conduta que afirma o uso de meios que são a própria capacidade para superar os adversários. Isso implica na contestação de quaisquer formas ilícitas que objetivem a vitória, suborno ou uso de substâncias que aumentem o desempenho. A excelência, ou espírito de superação, apresenta-se como a síntese dos valores olímpicos que está na busca do melhor de si, não apenas no âmbito da competição esportiva, mas nas ações cotidianas. Mobiliza o atleta a atingir os melhores resultados a partir da habilidade desenvolvida por meio do trabalho cotidiano e respeitoso. A competição é o momento de manifestação, realização e de confirmação de competências pessoais e sociais. Além disso, a busca por esse ideal é uma condição inerente ao esporte. O direito à igualdade e à justiça são as razões educacionais do Movimento Olímpico. A igualdade entre os competidores é condição para a manifestação da disputa justa e por isso a condenação de quaisquer meios que impeçam essa prática como a deslealdade, o doping ou a conduta antiesportiva (RUBIO; MELO, 2019, p. 22-23).

Rubio e Melo (2019) consideram ainda que os interesses econômicos em torno da prática esportiva, em especial no século XXI, prejudicou a multiplicação do ideal olímpico esportivo assentado teoricamente nos valores universais. Tais valores suplantados pelo desejo de enriquecimento deram lugar a outros mais vinculados com os interesses da atividade industrial e comercial que o processo de espetacularização, não só do futebol, mas de várias outras modalidades esportivas propaga mundialmente.

Para esse cenário, a mídia tem contribuído significativamente principalmente pela disseminação do atleta como modelo de doação e sacrifício, o que colabora para a construção

mítica de um herói que é exemplar de ser humano, a ser seguido socialmente, e também é sinônimo de sucesso socioeconômico. No entanto, Couto (2012) destaca que nem sempre o que se veicula nos meios midiáticos é compatível com a realidade vivenciada pelos jogadores profissionais. Sobre isso o autor, esclarece que uma parte verdadeira da face do futebol profissional é negligenciada, alimentando no imaginário social uma parcela falsa da ideia sobre ele, sobretudo nas crianças e jovens que vêm o esporte apenas como sinônimo de fama e ascensão social e econômica.

A definição dada por Couto (2012), para o que é ser jogador de futebol profissional expressa as exigências da profissão que estão além do que mostra a mídia:

Ser jogador de futebol profissional vai muito além de qualquer brincadeira ou diversão: trata-se de trabalho sério, duro, que exige treinamentos diários e preparação dos atletas para os jogos oficiais. Esses treinamentos são realizados, quando nos clubes de maior expressão, em modernos centros de análise científica que exige trabalho e sacrifício, proporcionando cada vez mais a eliminação do caráter lúdico e desencadeando a crescente busca pela competitividade e comercialização, características do esporte moderno (COUTO, 2012, p. 82-83).

Considerando a definição dada pelo autor, presume-se que para o jogador profissional de futebol a exploração do próprio corpo é o meio pelo qual ele agrega valor ao dom/talento, supera o adversário, arrebata a torcida e garante seu valor no “mercado”, cada vez mais exigente e competitivo. E, por último, permite superar a si, principalmente os limites que o corpo reclama ao ser acometido pelas lesões, dores físicas e psicológicas provenientes do esforço e dedicação diária no trabalho.

No futebol, a paixão e o sonho de menino são capazes de transcender às pressões da vida cotidiana, sobretudo enquanto não se chega à profissionalização; conquistado o título de profissional, essa força que alimenta as ilusões e as possibilidades de mudança da realidade, dá lugar a um esforço desmedido, tudo para não sucumbir às dificuldades encontradas no caminho e ficar à margem, no ostracismo. Tendo em vista que os dispositivos de seleção dos jogadores profissionais, cada vez mais exigentes, vêm o ser humano como mera mercadoria, marcado pela exploração do corpo e pela exclusão dos “incompetentes” - o que necessariamente não significa que o são, mas na maioria das vezes retrata a grande concorrência/competição entre atletas, empresários, clubes e torcedores.

A esses dispositivos somam-se as práticas de incorporação e melhoria do dom/talento, em Dantas (2011) o destaque é para o disciplinamento dos corpos.

Através de práticas de disciplinamento esses corpos atingem um desempenho físico cada vez maior na prática esportiva. Ou seja, trata-se do aprimoramento do individuo-produto jogador de futebol. Utilizo o termo individuo-individuo-produto porque essas pessoas

parecem não ser vistas, por muitos profissionais e torcedores, como sujeitos dotados de autonomia, ao menos relativa, mas como simples utensílios, objetos de um espetáculo. [...] que nos dias de hoje circulam pelo mercado global (DANTAS, 2011, 49-50).

No caso do futebol “[...] são aproximadamente 5.000 horas de investimentos, distribuídos ao longo de aproximadamente 10 anos, realizados diretamente no corpo, em rotinas altamente disciplinadas, extenuantes e seguidamente monótonas [...]” (DAMO, 2005, p. 14).

Tal processo produz e reforça o capital futebolístico - conceito criado pelo autor, referente ao capital corporal e ao dom para o futebol, que é variável e dependente das especializações e divisões de trabalho existente em uma equipe de futebol; a sua constituição ao mesmo tempo em que define os rumos do futebol espetáculo, é dependente dele e das demandas que suscita.

O autor discute ainda a conversão do capital futebolístico dos jogadores em capital econômico, em que:

[...] não se consegue compreender as razões pelas quais adolescentes se entregam à incorporação dos capitais futebolísticos, na intensidade e na extensão que ela exige, desconsiderando-se o fato de que eles são induzidos à percepção, desde o ponto de partida, de que são, antes de tudo, vocacionados. O dom e as representações correlatas, que estão na origem de todos os investimentos [...] do duplo estatuto a que são sujeitos os boleiros: de pessoa e coisa (DAMO, 2005, p. 15).

Por estes aspectos, é possível dizer que a configuração do esporte profissional moderno privilegia a relação causal e as oposições sensível-inteligível, corpo-mente, sujeito-objeto, que implicam um pensar e um agir fragmentado, repercutindo na identificação do ser humano como pessoa e coisa, sem autonomia para libertar o corpo das amarras impostas pelos padrões corporais e de comportamento do próprio esporte profissional ou daqueles disseminados pelas mídias.

Bento (2013) e Damo (2005) questionam a mercantilização do futebol de alto rendimento e chamam atenção para o fato da sociedade aceitar e até compactuar que no século XXI haja um meio legal em que seres humanos são vendidos e explorados sob assentimento dos mesmos e da população em geral. O que leva a sociedade a compactuar com tão grande abuso, incluindo esse fenômeno nos parâmetros da normalidade? Para Bento (2013, p.16) “é preciso e urgente difundir sonhos e ideais, com o intuito de arrebatar e libertar as pessoas do cárcere da rotina, da demência e do discurso único do senso comum” que disseminam modos de ser humano calcados em uma lógica racionalizadora e utilitarista e que pouco dão espaço para questionamentos.

Para Moreira; Scaglia e Campos (2017) por trás dos movimentos mecanizados da prática esportiva estão seres humanos movimentando-se de modo intencional em busca da própria transcendência e da ressignificação do que seja a vida por meio do esporte. É preciso dar vazão a esse sentido e fortalecer o movimento esportivo como produto/produtor de seres humanos e de práticas humanizantes.

Nas próximas seções apresentam-se os caminhos metodológicos deste estudo em busca da compreensão do significado de corpo na perspectiva dos jogadores de futebol profissional dos clubes do munícipio de Santarém, evidenciando as fases da pesquisa empírica e os resultados alcançados.