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2 A LEITURA DE TEXTOS ARGUMENTATIVOS SOB A PERSPECTIVA DOS

2.1 TEORIA DOS ATOS DE FALA: A RELAÇÃO ENTRE O QUE SE DIZ E O QUE SE

2.1.2 Atos de fala e gêneros textuais

Defendemos a ideia de que compreender a realização dos atos de fala implica considerar os aspectos cognitivos, interacionais e sociais que entram em jogo na relação entre locutor e interlocutor no evento de fala. Consideramos ainda que esses eventos estão relacionados a um propósito comunicativo e que o esforço para o sucesso desse propósito se dá por meio de vários atos de fala que compõem os macroatos de fala. Estes, por sua vez, concretizam-se nos gêneros textuais, pois é impossível interagir verbalmente a não ser por algum gênero. De acordo com Marcuschi, “Quando dominamos um gênero textual, não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2008, p.154). Dessa forma, o

ensino de leitura passa necessariamente pelo trabalho com os gêneros textuais. Nossa tarefa será analisar a composição e o funcionamento destes por meio da abordagem sociocognitiva dos atos de fala e seu papel no ensino de leitura.

Analisar os gêneros textuais como, simultaneamente, instrumento e produto das ações sociais realizadas pela linguagem é a tarefa a que se propõe Bazerman (2006). O autor se dedica a examinar o trabalho realizado pelos gêneros na sociedade, analisando como a dinâmica ordenada de produção, uso e circulação é, em parte, constitutiva da própria organização dos grupos sociais. Utilizando-se de conceitos como fatos sociais, atos de fala,

gêneros, sistemas de gêneros e sistemas de atividades o autor investiga “como as pessoas

criam novas realidades de significação, relações e conhecimento, fazendo uso de textos” (BAZERMAN, 2006, p.19).

Bazerman coloca como exemplo uma rotina típica de funcionamento dos meios acadêmicos, composta pelo seguinte continuum de ações e gêneros textuais correspondentes: a aprovação de um regulamento exigindo que os alunos cursem determinadas disciplinas para obterem a graduação; a elaboração de uma série de documentos administrativos para orientação dos alunos acerca dos critérios estabelecidos pelo novo regulamento; o envio de memorandos aos professores informando-os sobre a necessidade de oferecer tais disciplinas; a elaboração pelos docentes de propostas com as devidas adequações e a submissão à revisão por um comitê; uma vez obtida a aprovação pelo comitê, a adição das novas propostas num catálogo geral; a disponibilização do catálogo aos alunos, que preenchem formulários para selecionar e matricular-se nas disciplinas; ao final do período acadêmico, a utilização, pelo professor, de boletins para informar o desempenho acadêmico; no período seguinte, a consulta a esses boletins por um funcionário encarregado de adicionar as disciplinas no histórico do aluno para que ao final do curso o aluno receba seu diploma. Dessa forma, o autor busca mostrar que os atos de fala e suas respectivas ações sociais funcionam de forma integrada, formando sistemas.

A noção de gênero como ação social ganhou destaque com os estudos de gêneros norte-americanos, cujos principais representantes são Carolyn Miller, Charles Bazerman e John Swales. A teoria desenvolvida por eles tem duas influências principais: a Nova Retórica e as ideias de Bakhtin.

A Nova Retórica surgiu da revitalização da retórica clássica nos Estados Unidos e foi associada ao ensino da composição argumentativa. Os modelos de Toulmin, Perelman e Olbrechts-Tyteca foram amplamente utilizados no ensino da produção textual e popularizaram a retórica no contexto acadêmico. São autores que elaboram sua teoria da

argumentação tomando como ponto de partida a audiência a que a argumentação é dirigida e o efeito pretendido, destacando, assim, as noções de propósito e contexto, fundamentais para os estudos dos gêneros textuais. Ambas as noções são centrais no trabalho de Toulmin, segundo o qual o que é adequado ou convincente varia de acordo com o contexto social. De acordo com Carvalho (2007), com a influência desses autores passa-se a focar o texto como uma instância direcionada a atingir determinado propósito em dada situação social.

Bakhtin, por sua vez, afirma que o uso da língua se dá por meio de enunciados orais e escritos sempre relacionados a campos de atividade humana, refletindo as condições específicas de cada campo. O uso social da linguagem, afirma o autor, possibilita caracterizar os gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados, tão múltiplos e diversos quanto o espectro das atividades humanas. No âmbito dessa conceituação, é importante o conceito de

domínio discursivo, instância discursiva (jurídica, religiosa, jornalística, etc.) que dá origem a

vários gêneros relacionados a rotinas comunicativas institucionalizadas.

Pertencer a uma comunidade de fala nos leva a tomarmos como parâmetro o comportamento de outrem. O locutor procura antecipar a resposta do interlocutor com base em conhecimentos prévios e compartilhados sobre o contexto de enunciação, influenciando assim no modo como compõe seus enunciados. O ouvinte não é passivo e o falante reconhece isso. Dessa forma, Bakhtin enfatiza o caráter ativo e criador da linguagem como elemento que permeia nossa vida como um todo. Nas palavras do autor, “a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua” (BAKHTIN, 1997, p.290).

Diante das definições apresentadas, é possível entender porque o enfoque nos gêneros textuais foi estabelecido como central para o ensino de língua. Desde a década de 1980, admite-se de forma quase unânime que o texto é o melhor ponto de partida e chegada para o trabalho com a língua em sala de aula. Trata-se de deslocar o foco do ensino da gramática - da norma e da frase isolada - para o funcionamento da língua em situações concretas de uso.

Os textos concretizam-se em formas diversas e funcionam de modos diferentes nas mais variadas situações sociais do dia a dia; estes, por sua vez, organizam-se em gêneros textuais, que refletem a experiência de seus usuários. A partir dos gêneros pode-se desenvolver um trabalho com base em materiais que efetivamente circulam na sociedade.

O trabalho com gêneros textuais permite analisar mais do que somente o funcionamento da língua, chegando-se ao funcionamento da própria sociedade mediado pelas atividades discursivas, pois os gêneros são parte integrante da estrutura social e não apenas

reflexo dessa estrutura. Segundo Marcuschi, “Os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia” (DIONÍSIO, 2002, p.19). Os gêneros midiáticos, por exemplo, como crônicas, editoriais, artigos de opinião, etc., são fundamentais para entendermos a formação e circulação de opiniões na sociedade.

A noção de gênero passou a ser central na compreensão da linguagem, funcionando como unidade de análise. Os gêneros possibilitam explorar diversas dimensões dos eventos de fala, oferecendo maneiras de explicar o uso da língua em contextos e práticas sociais específicos. Estão ligados à capacidade humana de falar, interagir e constituir discursos. A compreensão do uso dos gêneros abre caminhos para a percepção de como a linguagem se entrelaça com as ações que constituem nossa realidade.

Cada esfera, com sua função socioideológica particular (estética, educacional, jurídica, religiosa, cotidiana etc.) e suas condições concretas específicas (organização socioeconômica, relações sociais entre os participantes da interação, desenvolvimento tecnológico etc.), historicamente formula na/para a interação verbal gêneros discursivos que lhe são próprios. Os gêneros se constituem e se estabilizam historicamente a partir de novas situações de interação verbal (ou outro material semiótico) da vida social que vão se estabilizando, no interior dessas esferas (MOTTA-ROTH, 2005, p.164-165).

É importante entendermos que a escolha de um direcionamento linguístico para o ensino de língua não se dá ao acaso, mas está ligado aos propósitos da educação nacional e consequentemente ao contexto político do país. A palavra de ordem da atual LDB (Lei 9 394/96) é cidadania, visando promover a igualdade de condições para os cidadãos. O ensino de língua a partir dos gêneros possibilita o desenvolvimento da competência comunicativa necessária para o exercício da cidadania, pois leva ao entendimento de como a linguagem media e estrutura nossas relações sociais.