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Atribuições do enfermeiro no contexto das Terras Indígenas Mura

6 RESULTADOS E DISCUSSÃO

6.4 PRÁTICAS DE CUIDADO DE ENFERMEIRAS À POPULAÇÃO INDÍGENA MURA DE

6.4.1 Atribuições do enfermeiro no contexto das Terras Indígenas Mura

As ações de saúde direcionadas à população indígena nos Polos-Base das aldeias de Pantaleão e Murutinga estão previstas no Plano distrital do DSEI/Manaus (2012-2015), construído a partir das realidades locais das comunidades situadas nos limites de atuação de cada Distrito e serve para direcionar as ações a serem realizadas pelas EMSIs nos Polos-Base. Entendendo que a presença do enfermeiro é uma característica comum a todos os DSEI(99), serão descritas para situar o leitor

sobre ações que envolvem os cuidados realizados por enfermeiras à etnia Mura nos dois Polos-Base.

No entanto, é importante considerar que existem diferenças entre os dois Polos-Base, as quais devem ser consideradas, pois são significantes em termos de dificuldade para realização das ações de saúde. Uma das principais diferenças está na localização desses polos, pois enquanto o PB de Pantaleão está localizado na sede do município de Autazes, o PB de Murutinga está localizado dentro da própria aldeia Murutinga, o que confere a esse Polo maior complexidade em termos de logística para acesso à sede do município e para encaminhamento de indígenas para tratamento no hospital localizado na sede do município.

No Plano Distrital de Saúde Indígena do DSEI/Manaus (2012-2015) são apresentados Programas da Atenção Básica que devem ser implementados nos Polos-Base das aldeias de Pantaleão e Murutinga, são eles: Saúde da Mulher e da Criança, Imunização, Saúde Mental, Doença Sexualmente Transmissível/Síndrome da Imunodeficiência Humana (DST/AIDS) e Hepatites Virais, Doenças e Agravos Não- Transmissíveis (DANT) /Hipertensão/Diabetes, Saúde do Homem, Saúde do Idoso, Sistema de Vigilância Alimentar Nutricional (SISVAN), Tuberculose/Hanseníase (MH), Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) e Vigilância Epidemiológica. Portanto, as enfermeiras são responsáveis pela implantação e realização desses programas junto à população indígena. Os programas da atenção básica são padronizados e não se diferem no âmbito da saúde indígena em termos de planejamento, ação e avaliação, porém é necessário que o profissional considere o contexto cultural para que as práticas de cuidado de enfermagem possam se aproximar das reais necessidades e demandas locais.

Juntamente com as demandas dos programas, existem doze formulários que são de responsabilidade da enfermeira preencher mensalmente com os dados obtidos nas consultas de enfermagem e nos atendimentos realizados, quais sejam: 1) Mapa diário de acompanhamento de crianças < 5 anos; 2) Acompanhamento de hipertensos e diabéticos; 3) Controle de pacientes com diagnóstico de tuberculose; 4) Mapa diário de acompanhamento de gestantes; 5) Atendimento de saúde mental; 6) Inquérito de hepatites virais; 7) Acompanhamento de sífilis em mulheres; 8) Relação de pacientes confirmados com DST/AIDS e hepatites virais; 9) Vigilância de óbitos; 10) Mapa de produção dos atendimentos no Polo-Base; 11) Consultas realizadas no pré-natal; 12) Informações mensais do programa de prevenção do câncer do colo uterino e mama.

O preenchimento desses formulários se configura em motivo de constante insatisfação por parte dessas profissionais, pois segundo seus relatos, os referidos formulários mudam frequentemente e quando estas estão adaptadas ao preenchimento desses, chegam novos formulários, burocratizando mais o serviço, sendo motivo de reclamações por parte das enfermeiras por ocuparem grande parte do seu tempo com questões burocrático-administrativas e com uma preocupação prioritária em dar respostas às demandas cobradas em forma de censos consolidados e relatórios que devem ser entregues mensalmente ao DSEI/Manaus ficando essas atividades a cargo das enfermeiras desses serviços.

Durante as viagens para acompanhar as EMSI nas aldeias foi possível observar que os profissionais repetiam corriqueiramente as ações de saúde em todas as aldeias no intuito de cumprir normas, alcançar metas e dar respostas aos formulários que deveriam ser preenchidos com as demandas atendidas durante as ações de saúde realizadas nos Polos-Base e nas aldeias.

As ações programáticas realizadas pelas enfermeiras buscavam atender às propostas do Ministério da Saúde, como promoção da saúde e prevenção de doença, para a população assistida, porém o que ficou evidenciado durante as observações em campo no contexto das terras indígenas Mura foi que as ações programáticas nesse contexto favoreciam atendimentos repetitivos, desprovidos de um olhar atento às especificidades e demandas locais, portanto desarticulados das reais necessidades de saúde dos indígenas em cada aldeia.

Nesse sentido, era comum ecoar no discurso das enfermeiras a dicotomia entre as ações que demandavam cuidados de enfermagem e os que demandavam organização e coordenação dos serviços de saúde, entendidos como trabalho administrativo, sem, no entanto, compreender a dimensão de que as duas ações são indissociáveis.

As funções burocráticas, o excesso de atividades desempenhadas por essas profissionais, eram algumas das questões que dificultavam o desempenho na oferta de cuidado de enfermagem à população indígena. As enfermeiras demonstravam maior preocupação com as atividades gerenciais, que para elas se resumiam às atividades de preenchimento de formulários e consolidação de censo, agendamento de exames e viagens de indígenas, liberação de combustível para as viagens da equipe e retorno dos indígenas para as aldeias, atividades burocráticas de organização dos serviços, elaboração de relatórios mensais, supervisão dos AIS e da equipe de enfermagem.

As enfermeiras justificavam dar prioridade às demandas burocráticas- administrativas em detrimento a uma maior aproximação com o usuário, pelas constantes cobranças que mensalmente tinham que responder ao DSEI/Manaus. Tais atividades, somadas às atividades assistenciais, ficavam sob a responsabilidade das enfermeiras. Portanto, a sobrecarga de atividades levava constantemente à mecanização das ações de saúde realizadas por essas enfermeiras.

Durante as consultas de enfermagem nos Polos e nas aldeias as ações de saúde apontadas por essas profissionais como cuidados de enfermagem se repetiam a cada atendimento, sem espaço para refletir sobre essas ações.

Resultados semelhantes foram encontrados no estudo de Jonas(100), realizado

com enfermeiros da Estratégia Saúde da Família, mostrando que a função gerencial do enfermeiro era reduzida a atividades de natureza burocrática e de organização dos serviços acarretando sobrecarga de trabalho, levando esse profissional a se posicionar em uma tensão de captura do trabalho assistencial de produção de cuidado pelo trabalho administrativo-burocrático. Esses mesmos autores apontam que a burocratização torna o trabalho do enfermeiro mecanizado, alertando para o risco de prejuízo ao usuário, haja vista a gestão ser uma atividade-meio que propicia a assistência, sendo o cuidado a atividade-fim desse processo.

Nesse sentido, fica claro que, em sua maioria, as atividades desenvolvidas pelas enfermeiras em contexto indígena em seu cotidiano, são de natureza burocrático-administrativo. Assumindo tal função, as enfermeiras, muitas vezes, acabam se distanciando das atividades assistenciais.

Portanto, os resultados demonstram que as múltiplas atividades desempenhadas pelas enfermeiras favorecem o distanciamento da relação intersubjetiva enfermeira-indígena, que implica compreensão e propicia relação de ajuda e confiança, em que a sensibilidade é inerente à prática(57). O cuidar não se

refere apenas a procedimentos, o cuidar envolve uma relação de troca entre quem cuida e quem é cuidado. Nessa perspectiva, o profissional deve assistir, proteger e considerar a resposta do sujeito do cuidado e o atendimento às suas necessidades(58).

A existência de um encontro entre culturas distintas nas relações de cuidar/cuidado de enfermeiro/indígena um olhar atento e sensível às especificidades étnicas e culturais da população indígena deve ser considerado, o que não se concretiza pelo distanciamento entre esses atores.

É importante que a enfermeira conheça os aspectos da cultura indígena, promova espaço para diálogo e aproximação e apreenda os significados do processo saúde-doença-cura que emergem de ações construídas pelos próprios indivíduos(44),

aspectos essenciais para o planejamento das ações de cuidado junto a populações etnicamente diferenciadas.