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Capítulo III: Os atuadores de “Kassandra in Process”

3.3 Atuador: “indivíduo libertário”

Para os integrantes do Ói Nóis Aqui Traveiz, o uso do termo “atuadores” encontra- se associado a uma reflexão sobre esta experiência do Oficina que acabo de relatar. A influência exercida pelo Oficina não vinha através de um contato direto com o grupo ou da assistência de suas peças, mas chegava através da leitura de relatos sobre suas experiências. Particularmente o período de “Gracias Señor” inspirou seus integrantes, pois apontava para questionamentos sobre o fazer teatral, a relação com o público e entre os integrantes do grupo semelhantes aos que estimularam a formação do Ói Nóis. Entretanto, ao longo dos anos, “atuador” para o Ói Nóis ganhou contornos e significados próprios, além de interpretações particulares dadas pela experiência de seus integrantes. Creio que muitos dos sentidos dados à incorporação do termo “atuador” estejam relacionados a um momento social em que se delineou o que a autora Tânia Salem (1991) chama de “individualismo libertário”.

Em seu artigo “O ‘Individualismo Libertário’ no Imaginário Social dos Anos 60”, Salem (1991) buscou a definição de um ethos próprio dos anos 60 e 70 que perpassou “movimentos, idéias e práticas”, o qual denominou “individualismo libertário”. O “individualismo libertário” seria, segundo a autora, “uma modalidade particular de individualismo” delineada nos “anos 60”. Quanto à expressão “anos 60”, a autora destaca que, “mais do que aludir a uma periodização estrita, subjaz a ela a hipótese de que o tom moral desses anos se prolonga para além deles” (Salem, 1991: 62). Este novo ideário da época tem como característica primeira

o questionamento radical a todas as formas de poder e a todas as autoridades constituídas, tendo em vista suas inclinações normalizadoras. Com efeito, contesta-se o poder do Estado sobre os cidadãos, o dos homens sobre as mulheres, o dos médicos sobre os pacientes, o dos pais sobre os filhos, o das escolas sobre as crianças, etc. Senão, vejamos: a vertente contestadora dos anos 60 conflui para a proposta de implantação de sistemas ou estilos de vida alternativos. Os movimentos de contracultura – cuja rubrica já é, por si só, significativa – questionam o militarismo, o consumismo, o valor do trabalho e, sobretudo, a própria repressão inerente à sociedade industrial moderna. Além de uma volta à natureza e ao natural, propugnam uma forma de convivência que evoca o modelo de communitas43 – isto é, um sistema

rudimentarmente estruturado, relativamente indiferenciado e no qual os aspectos afetivos da vida social dominam sobre os jurais. O projeto de criar uma sociedade composta por indivíduos “iguais” é, ao menos, em parte vislumbrado como resposta ao fenômeno do “poder”, denunciado como um mal em si mesmo. (Salem, 1991: 64, 65)

Esta noção de individualismo contrasta com a idéia de “individualismo liberal”, em que o indivíduo é visto sob uma ótica de anterioridade em relação à sociedade, constituindo-se em valor absoluto. Segundo esta visão, a idéia de igualdade encontra-se atrelada à de primazia do indivíduo. Em consonância com Dumont (2000), a autora destaca que a moderna ideologia do indivíduo traz como conseqüência o fato de que “a sociedade, tal como qualquer outra instância pretensamente englobante, é vislumbrada como um fardo que constrange o valor quase sagrado que os modernos atribuem ao indivíduo e à liberdade” (Salem, 1991: 61). Nas sociedades tradicionais, em que a configuração ideológica se fundaria no holismo, e o valor seria dado pela primazia da sociedade sobre os indivíduos (a moderna concepção de indivíduo, aliás, nem existe tal como nas sociedades modernas), o princípio estruturante é o da hierarquia, havendo uma diferenciação valorativa em relação aos sujeitos e suas identidades sociais.

A noção de “individualismo libertário”, ou de “individualismo psicologizante- libertário”, também utilizada para definir esta outra forma de individualismo, busca uma conciliação entre o ideal de igualdade e uma representação “positiva” do social.

Ou seja, no imaginário da época (mas certamente não só dela) tais instâncias se encontram bipartidas em termos valorativos: há um social que, identificado com relações hierarquizadas, constrange a livre manifestação do indivíduo e, nessa medida, é reputado como perverso. Em contraste, o social positivamente representado confunde-se com relações igualitárias ou não englobantes: este seria enriquecedor, na medida em que favorece e até estimula o pleno desabrochar do sujeito. (Salem, 1991: 66)

Esta noção de social positivamente representado, em que o ideal de igualdade não é visto como obstáculo para existência do social, acaba influenciando também a visão de política: para a contracultura, “uma verdadeira e duradoura transformação da sociedade exige, para além de transformações na sua base material, uma revolução nos costumes e nas mentalidades” (Salem, 1991: 69).

Tal visão política presente no discurso da contracultura, de que a mudança social passa primeiramente pela mudança do indivíduo (se não primeiramente, ao menos em conjunto), encontra-se presente na noção mesma de atuador tal como é empregada pelos integrantes do Ói Nóis Aqui Traveiz, na medida em que “atuador”, ao contrário de ator, aparece como um termo que permite uma abertura maior à recepção de novos significados. Neste sentido, o “rever-se constantemente” do indivíduo entra em consonância com um rever-se enquanto “atuador”. O teatro passa a ser visto não apenas como instrumento de mudança da sociedade, como ocorria com o teatro político das décadas de 50 e 60 (sobre o qual o Ói Nóis, em seu momento de formação, lança suas críticas), mas como instrumento de mudança do indivíduo, para este, a partir dessa mudança, constituir uma relação diferente com a sociedade na qual está inserido. Pensa-se numa nova forma de fazer teatro

em consonância com os questionamentos característicos da contracultura, e o foco inicial passa a ser o atuador visto enquanto “sujeito”. Segundo Luana Fernandes, que teve o seu processo de entrada no grupo concomitante à sua participação em “Kassandra”:

É um exercício, uma aprendizagem. Tu começas fazendo a peça, e começas a aprender com ela e a ver como é que tu fazes, como a tua vida é conectada àquilo, e como essas questões são presentes... E isso também aconteceu com a “Kassandra”. Tu começas a fazer, tu começas a experimentar isso corporalmente e tu vais te dando conta de que isso é uma aprendizagem para a tua vida mesmo. A transformação no teatro se dá também em ir a um espetáculo onde tu vais ver, vais te sentir tocado e irás para a casa pensando, mas se dá de forma muito mais intensa na peça, porque tu estás fazendo aquilo e vai acontecendo toda uma transformação muito forte, porque tu estás fazendo aquilo corporalmente. Então o poder transformador do teatro se dá com o ator antes de tudo. Ele transforma o ator. E aquele texto vai te transformar de fato. E depois ele vai conseguir falar e vai tentar sinceramente provocar no outro uma transformação. Mas é como se fosse em ondas de freqüência, vai em ondas menores pr’aquele espectador. Por mais que ele se sinta profundamente tocado pela peça, que ele saia profundamente tocado, ele vai para casa depois e isso vai se dissipar. Mas o ator, aquele que está se dispondo a falar tudo aquilo sinceramente, ele vai se transformar muito mesmo. E essa transformação é visível. Eu lembro como eu era há um tempo atrás e agora e muitas coisas mudaram. E como isso vai se relacionando com o teu entorno. Como era a minha mãe há um tempo atrás e agora se relacionando comigo. Então as relações começam a ficar muito mais pessoais, o ator se transformou e começa a transformar o entorno dele. E de várias formas. De certa forma tu estás sendo um agente transformador. Mas antes tu vais te transformar. Se tu não estás dizendo uma coisa sinceramente a pessoa não vai sentir sinceramente aquilo. Pode sentir, mas é bem mais difícil.

Percebe-se, aqui, uma noção de “mudança individual” apontada enquanto processualidade. Conforme discutirei a seguir, creio que uma das dimensões desta “mudança” se dê através dos processos de interação, tal como definidos por Goffman (1992).