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Capítulo I: Ói Nóis Aqui Traveiz: contexto e processo de formação

1.2 Um espaço para a criação

De sua experiência com o “Estação Partida”, além do projeto de fugir aos moldes do profissionalismo empreendidos pelo Estado, Paulo Flores começou a ver como fundamental a necessidade de um grupo de teatro possuir um espaço próprio para a criação: o aluguel de uma temporada em uma sala de espetáculos não propiciava um convívio que pudesse levar à experimentação de novas formas de interpretação e à formação de uma identidade de grupo, uma vez que assumia um caráter funcional, relacionado à montagem de uma peça, com temporadas já pré-determinadas para terminar, além de impossibilitar a investigação de usos diferenciados do espaço. Sem contar que, à época, podia-se esbarrar com a censura do proprietário ou do responsável pelo teatro.

Sendo assim, para a formação do Ói Nóis, ele e os outros idealizadores decidiram criar seu próprio teatro: em 1977 alugaram um prédio onde funcionara uma boate, localizada na Avenida Ramiro Barcelos próximo à Avenida Farrapos, esta última uma famosa zona de prostituição da cidade e, embora desprovidos de recursos financeiros, empreenderam, juntamente com mais sete novos integrantes, a reforma do local.

A preocupação com a linguagem cênica já começou durante as reformas. Seria um teatro sem a convencional divisão entre palco e platéia e sem o formato de “palco italiano”, proporcionando que atores e público se encontrassem num mesmo plano. Para a inauguração do teatro, duas peças de Júlio Zanotta foram escolhidas: “A Divina Proporção” e “A Felicidade Não Esperneia, Patati, Patatá”. Eram textos em que a denúncia social se encontrava presente (o primeiro, com um enfoque sobre a questão da especulação imobiliária e o segundo com uma crítica à medicina), porém de forma alegórica,

valorizando uma narrativa não linear. Eram peças escritas em uma linguagem surrealista, com a utilização de muitos símbolos, o que conduzia a uma atuação não naturalista. O texto, fragmentado e não linear, dava margem a busca por um “teatro do gesto”. O trabalho corporal desenvolvido pelos atores buscou fugir ao convencionalismo predominante na época, e a nudez em cena apareceu como uma das tentativas de quebra desse convencionalismo.

Em consonância com o texto, buscou-se a criação de novas formas de encenação. A atuação se deu através de um “teatro físico” que buscava incluir os espectadores, mesmo que através de atos classificados por alguns como violentos e invasivos, como no caso de uma cena de “A Felicidade Não Esperneia...”, em que as “vísceras” (pedaços de carne crua de animais) de um dos pacientes eram arrancadas em cena e jogadas pelo ar, muitas vezes atingindo o público. Conforme aponta Sandra Alencar em seu livro “Atuadores da Paixão” (Alencar, 1997), fruto de uma pesquisa que buscou relatar a história do grupo

Para o Ói Nóis, que acabava de se formar, havia uma questão básica que, no entender de seus idealizadores, ainda não tinha sido suficientemente explorada por nenhum grupo atuante: a relação ator/ espectador. A esta questão somava-se uma série de conceitos e regras que o Grupo estava disposto a rever e, se necessário, romper, para estruturar sua proposta e construir sua própria estética.

Para tanto, seus integrantes proclamaram a quebra imediata da divisão palco/platéia e se propuseram a uma pesquisa de linguagem que atingisse o público não só pela via intelectual, mas também pela sensorial. Em oposição aos ensinamentos da escola tradicional, lançaram-se na busca de um novo tipo de interpretação – menos técnica, mais emotiva – que fosse baseada no que chamaram de teatro de vivência, e não de mera representação. Assim, reduziram significativamente o uso do texto e supervalorizaram o gesto. (Alencar, 1997: 30)

Tais opções estéticas encontram-se em consonância com as críticas empreendidas pela contracultura no campo da arte. Assumiam uma postura de confronto direto com a

postura de contemplação dos espectadores de classe média acostumados com o teatro político da “palavra”, através de uma busca por novas formas de representação e de relação com o público. O discurso político, entretanto, não era abandonado: a sua expressão em um “teatro do gesto”, ao contrário, buscava aprofundá-lo.

Quanto ao teatro, a proposta era mantê-lo aberto não apenas para a apresentação das peças, mas para a realização de outros espetáculos, como shows de rock´n´roll, por exemplo. As encenações das peças, entretanto, não tardaram a chocar parte do público e da crítica: o uso exacerbado de símbolos, a forma de encenação não naturalista, o uso da nudez em cena e as interações com o público que iam para muito além de olhares ou do toque, chegando à possibilidade deste poder ser atingido pelo leite ou por pedaços de carne crua jogados pelos atores, levaram a Polícia Federal, após a prisão de Paulo Flores e outros dois atores, a fechar o espaço, em maio de 1978, “para acabar com a anarquia”, segundo declaração do diretor do Serviço de Fiscalização de Diversões Públicas, mas com a alegação oficial de que o fechamento se dava porque o local não possuía saída de emergência em caso de incêndio.

Durante este período, que dura até o mês de agosto, o grupo permanece em atividade, desenvolvendo internamente o trabalho de “oficinas”25. A próxima montagem, “A Bicicleta do Condenado”, de Fernando Arrabal, tem sua estréia em novembro daquele ano. Com este espetáculo, dá-se a primeira experiência de incluir o espectador no espaço cênico. Além disso, o espetáculo terminava na rua, o que leva o grupo a pesquisar as possibilidades de fazer teatro de rua (hoje uma vertente no grupo tão forte quanto a de teatro de sala).