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Atuar é humano

No documento O jogo dos mestres / (páginas 50-54)

“O homem é o mais interessante p a ra o homem, e talvez deva ser a única coisa que lhe interesse. Tudo mais que nos rodeia é ou mero elemento no qual vivemos,

ou instrumento do qual nos servimos. ”

(WM. p. 97)

Não é preciso tecer muitas considerações sobre a tal “missão comercial”, apenas que ela ajuda Wilhelm a encontrar seu amigo e diretor, Serio, e a conhecer um pouco mais certos aspectos econômicos e sociais da sociedade em que vivia. Essa segunda conseqüência é confirmada pelo narrador quanto ao relatório que Wilhelm e Laertes fazem para satisfazer o desejo do pai:

“Ao redigir aquele singular trabalho, que só por diversão havia empreendido com Laertes, em que descrevia sua viagem imaginária, ele passara a prestar mais atenção às condições e à vida quotidiana do mundo real.” (WM. p.268)

Já a “missão teatral”'^ merece alguns comentários, ainda que, ao longo dos anos, a dedicação de Wilhelm ao teatro perca lugar, conscientemente, àquilo que chamo de “missão social”.

Na primeira parte da obra, o leitor se vê convencido de que a vocação de Wilhehn é o teatro. Com o desenrolar da história essa vocação v ai-se tomando incerta, vai perdendo a força inicial. Ao final, a transformação “vocacional” é uma das principais “provas” de que Wilhelm efetuou sua formação, ou melhor, de que descobriu a si mesmo, tomando-se “aquilo que já era” (lun meister). Assim estará pronto para desempenhar sua mais nova missão: educar seu filho, Félix.

E por que não falar que essa “missão teatral” talvez tenha sido o desejo primeiro do “pai”/autor, Goethe, lembrando que a primeira versão foi escrita sob o título “A missão teatral de Wilhelm Meister”?

o teatro então funciona como um porto seguro e temporário para que Wilhelm possa, logo em seguida, se lançar ao mar.

“A essa concepção do teatro corresponde inteiramente que Os

anos de aprendizado ultrapassem em sua ação o teatro, que o

teatro para Wilhelm Meister não seja uma ‘missão’, mas tão- somente um ponto de transição. A exposição da vida teatral, que constituíra todo o conteúdo da primeira versão, não ocupa aqui senão a primeira parte do romance, passando expressamente por confusão do já amadurecido Wilhelm e por desvio de sua meta.”’’’

Lukács parece dizer que o teatro nada proporcionou a Wilhelm, mas, por mais que isso seja exposto na obra, essa afirmação não está de todo certa. Sua dedicação ao teatro passa a ser uma fase de aprendizagem fundamental para que Wilhelm reflita sobre sua pessoa, mesmo que essa opção tenha sido um “desvio de sua meta” (será abordado adiante o “erro” como uma das bases educativas da Sociedade da Torre).

É através desse desvio que dois pontos básicos para a formação de Wilhelm são apresentados para o leitor e, por que não dizer, para o próprio personagem.

O primeiro ponto básico apresenta a predileção de Wilhelm pelas artes cênicas, sempre direcionando seu interesse para o caráter educativo da arte numa possível formação cultural (de um povo). O segundo é que a arte, tendo esse caráter educativo, o ajuda a se conhecer melhor, instruindo-se a si mesmo.

Sobre o primeiro ponto, o protagonista desenvolve longas digressões, de certo modo pretensiosas, sobre uma formação cultural, “utilizando” o

teatro como instrumento educativo. Isso é apontado pelo personagem Melina:

“Melina zombou sem muita sutileza dos ideais pedantes de Wilhelm, de sua arrogante pretensão de educar o público, ao invés de se deixar educar por ele.” (WM. p.343)

Ao presenciar um espetáculo de malabarismo e logo após a manifestação festiva do público com os atores, Wilhelm questiona:

“Que ator, que escritor, ou que homem mesmo, não se consideraria no auge de seus desejos, se com alguma frase nobre ou uma boa ação qualquer produzisse impressão tão unânime? Que sensação deliciosa deve ser a de poder, tão rápido quanto uma descarga elétrica, através de sentimentos bons e nobres, dignos da humanidade, excitar o povo, difundir- lhe um entusiasmo semelhante, tal como fizeram essas pessoas com auxílio de suas habilidades corporais; se fosse possível transmitir á multidão a simpatia por tudo o que é humano.” (WM. p.lOl)

Nessas palavras, esse primeiro ponto é dito sem meias palavras: seu desejo é, através da arte, transmitir idéias humanistas. Sua intenção de educar não é disfarçada, e isso é fundamental para sua história de vida.

O segundo ponto básico está diretamente ligado a essa intenção. Movido pelo impulso de “instruir-se a si mesmo”, Wilhelm procura para

si o “material educativo” que as artes cênicas podem proporcionar. Com

isso ele busca uma reflexão sobre o que há de “real” e de “humano” no mundo da fícção (também nesse sentido, talvez a obra possa ser lida como uma metafícção), como aparece, por exemplo, na longa análise que ele faz de Hamiet.

Wilhelm vive, através dos livros, das histórias, das vidas representadas, as mais diversas experiências. Mas seu fascínio pelo teatro denuncia, mais uma vez, outro interesse. É a “errata” de seus anos de

aprendizado; onde está escrito na vida de Wilhelm “fascínio pelo teatro”, lê-se “fascínio pela vida” — pelo o que há de humano, em todos os sentidos, na literatura, nos palcos, nos bastidores, nos atores, nos escritores etc.

Desde sua infência Wilhelm já se via tentado pelo teatro, mas principalmente querendo saber o que está por trás do espetáculo cênico, por aquilo que dá vida e movimento á arte; o ser humano.

“Que os bonecos não falavam por si próprios, já dissera a mim mesmo na primeira vez; que tampouco se moviam sozinhos, também já suspeitava; mas, por que tudo aquilo era tão lindo, por que pareciam falar e mover-se por si mesmos e onde

poderiam estar as luzes e as pessoasl (...) Depois de tal

descoberta, perdi-me em profundas reflexões, fiquei mais tranqüilo que antes. Depois daquela experiência tive a impressão de que não sabia absolutamente nada, e com razão, pois me faltava a coerência, e dela entretanto é que tudo depende.” (WM. p. 18) [grifos meus]

A falta de talento, a decepção com os demais atores, a impossibilidade de realizar sua meta, tudo isso contribui para Wilhehn abandonar aquela idéia fixa inicial de ser um missionário nas/das artes cênicas. Inocentemente ele desabafa ao amigo Jamo;

“O quanto ignoram completamente a si mesmos esses homens [os atores], de que modo exercem sem qualquer discernimento suas atividades, e quão ilimitadas são suas pretensões, disso ninguém tem a menor noção. Não só cada um quer ser o primeiro, como também o único; todos excluiriam, com prazer, os demais, sem ver que, mesmo com todos juntos, mal poderiam realizar alguma coisa. (...) Com que violência agem uns contra os outros! E só o mais mesquinho amor próprio, o mais tacanho egoísmo fazem unir-se um ao outro. (...) [Jamo diz;] - O que me descreveu não foi o teatro, mas o mundo, e que eu poderia encontrar em todas as classes sociais personagens e ações suficientes para suas duras pinceladas?” (WM. p.426-427)

Descoberto o “erro” vocacional e esgotadas todas as suas forças para insistir nesse erro, ele finalmente descreve sua nova e definitiva missão:

“'Deixo o teatro e me junto aos homens, cujo contato haverá de me conduzir, em todos os sentidos, a uma pura e sólida atividade.'” (WM. p.477)

No documento O jogo dos mestres / (páginas 50-54)