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o Futuro do pretérito

No documento O jogo dos mestres / (páginas 77-80)

O narrador se pretende um biógrafo confiável e quer mostrar as nuances da formação herói, valorizando-a como algo importante para o seu “mundo” do “futuro”.

É importante reparar, então, que a narração é feita de (e para) uma perspectiva desse futuro, mais distante do que a perspectiva do herói. Se traçássemos uma linha temporal (histórica) evolutiva, veríamos que o narrador conliece as conseqüências dessa história mais do que qualquer um — mais do que o herói, que a vivenciou, e mais até do que o autor, que a criou (pois é o único a viver essas conseqüências).

Herdeiro das diversas transformações dos mundos anteriores — tanto o do autor quanto o do herói — ele conta a história para um leitor que estaria num fiituro ainda mais distante, em relação a nós, do que o dele, embora nós leitores a estejamos lendo hoje, “ainda” no século XX/XXI. Isto complica um pouco sua narração, que precisa de vez em quando ser interrompida para, de forma sutil, expor acontecimentos que ainda não vivenciamos.

Esse narrador se apresenta logo na introdução — “O jogo das contas de vidro: Introdução à sua História num Estudo ao Alcance de Todos” (O jogo. D.Quix.) — como um pesquisador do “pouco material biográfico” de Josef Knecht. Ele avisa que será o responsável pelo enfoque dado a essa biografia e nessa introdução coloca os leitores a par de algumas tendências que 0 levaram a optar por esse enfoque. Essa explicação se dá por ser esse narrador um membro da “ordem castálica” (a mesma ordem a que pertenceu o herói), e o narrador acha necessário que a vida desse herói

seja de conhecimento não apenas dos fiitiiros membros dessa ordem, mas do púbhco em geral.

“O que temos a dizer sobre a pessoa e a vida de Josef Knecht é já relativamente conhecido, no todo ou em parte, entre os membros da Ordem e principalmente entre os jogadores de Contas de Vidro, e assim sendo, por esta razão, o nosso livro não se dirige simplesmente a esse círculo, mas espera também leitores compreensivos fora dele.” (O jogo. D.Quix. p. 17).

Explicitando o gênero literário da obra que está escrevendo como “narrativa histórica” (O jogo. D.Quix. p.277), ele diz ser essa biografia um trabalho de pesquisa, uma tese, e em alguns momentos cita escritos de pessoas que conviveram com Josef Knecht, como o relato do amigo Plínio Designori:

“Contou mais tarde: ‘Quando tento ver como foi que o meu amigo [Knecht] se pôs a exercer a sua influência num homem tão resignado e tão fechado em si como eu’.”(0 jogo. D.Quix. p. 261)

É interessante reparar que esse narrador é comprometido com a “ordem” de que faz parte e que por isso ele estabelece certa linha que seguirá nessa narrativa “histórica”. Ele provavelmente tomou conhecimento do debate, característico do século XX, sobre as fronteiras entre literatura e história. Mesmo que afirme estar contando a história de um personagem que se sobressai pelas mudanças que fez (ou ajudou a fazer) no tempo em que viveu, ele sabe estar fazendo “uma tentativa” de biografia, e não tem a pretensão de contar a “verdadeira” vida desse herói:

“Evidentemente não conhecemos o que nos está escondido e não desejaríamos esquecer-nos de que escrever Históría, mesmo quando feito de cabeça fria e com a melhor predisposição à objetividade, é sempre literatura o que se faz e que a terceira dimensão da literatura é a ficção. (...) A tentativa de escrevermos a vida de Knecht é também uma tentativa de a interpretarmos, e ao sermos forçados a lamentar

profiindamente, como historiador, a ausência quase total de informações realmente controladas sobre a parte final da sua vida, encontramos coragem para a nossa empresa precisamente na circunstância de esta parte final da vida de Knecht se ter tomado lenda.” (O jogo. D.Quix. p.43-44)

Essa afirmação o exime da concepção da história como algo “verdadeiro”, aproximando-o do narrador pós-modemo descrito por Silviano Santiago quando este, dialogando com Walter Benjamin (sobre o ensaio O narrador), coloca:

“O narrador pós-modemo é o que transmite uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar ‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica intema do relato. O narrador pós-modemo sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são constmções de linguagem.”'®

Assim, o narrador coloca como epígrafe dessa biografia uma tradução que Josef Knecht fez:

“pois de certo modo é mais fácil e irresponsável à gente frívola descrever por meio de palavras coisas não existentes do que as existentes, mas para o historiador piedoso e consciencioso é completamente diferente: nada se furta tanto à descrição por meio de palavras e nada é tão necessário pôr á frente dos olhos dos homens do que certas coisas cuja existência nem se pode provar nem demonstrar, mas que, justamente porque homens piedosos e conscienciosos as tratam como existentes, dão mais um passo para o ser e a possibilidade de nascer.” (O jogo. D.Quix. Epígrafe)

São essas as palavras que possibilitam o nascimento de Josef Knecht e da obra O jogo das contas de vidro.

SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-modemo”. In: Nas malhas da letra. SP, Companhia das Letras, 1989. p. 40. Veja também BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: Magia e técnica, arte e

Para analisar a formação de Knecht é preciso destacar do texto alguns itens imprescindíveis que caracterizaram essa formação. É importante, por exemplo, compreender o que são a ordem castálica e o “jogo”, além de perceber como o personagem aprende com alguns mestres e amigos que influem significativamente em sua formação. Esses mestres e amigos, cada um com sua maneira de viver, ajudam o herói a ultrapassar algumas barreiras (ou degraus, como ele mesmo fala) da vida. É interessante também para essa leitura, ver como Knecht aprende as lições e vai mudando aos poucos a direção de seu (pré)destino a partir do que ele chama de “despertar”, xmia direção que o leva a uma “morte” bastante significativa para a história de sua formação.

No documento O jogo dos mestres / (páginas 77-80)