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§ 1.1 A "ruptura" na vida de Comte § 1.2. Um diagnóstico do liberalismo de Littré §

1.3. A continuidade biográfica § 1.4. As fases da obra § 1.5. Meditação e renovação

pessoal § 1.6. Intervenção e regeneração social § 1.7. A divinização da mulher § 1.8. A

historicidade da mente § 2.1 A religião da humanidade § 2.2 O Grand-Être e a ficção de

Cristo § 2.3 A França e a "República Ocidental" § 2.4 Napoleão e a "República

Ocidental" § 2.5 A herança da Revolução Francesa § 2.6 Revolução, restauração e crise

Após mais de um século de equívocos, aproximamo-nos hoje de uma compreensão mais adequada de Comte, tanto na sua qualidade de astuto filósofo da história, como na qualidade mais sinistra de ditador espiritual da humanidade. E tanto a acumulação de equívocos, como a sua desmistificação, ilustra o desenrolar e o desenlace da crise ocidental, e as ideias e práticas totalitárias do nosso tempo. § 1. A "ruptura" na vida de Comte

Até às monografias de Henri Gouhier, a visão convencional da vida e obra de Comte estava

determinada por uma ruptura, 1845, o "ano incomparável" em que o início da relação com Clotilde de Vaux o fez referir-se a um primeiro e segundo períodos da sua existência. O primeiro ficou

assinalado pelo Cours de Philosophie Positive, 6 vols., 1830-1842, obra do teórico do positivismo e fundador da sociologia. O segundo trouxe a "religião da humanidade" noSystème de Politique Positive ou Traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité, 3 vols., 1851-54, obra do fundador e sumo sacerdote da nova religião. Num artigo decisivo para a cultura anglo-saxónica "Auguste Comte and Positivism", na Westminster Review, John Stuart Mill seguiu este critério de separação entre o Curso e as "especulações posteriores". Tal leitura aceita a auto-interpretação

comteana da ruptura e acrescenta que a segunda fase resulta da decadência de um grande intelecto. O pomo da discórdia residia no acolhimento entusiástico do golpe de estado napoleónico de 1851, por parte de Comte, como passo para estabelecer a "república ditatorial sistemática" que prepararia a "república ocidental da Europa". Na nota intitulada Essor empirique du républicanisme français, Comte louva o facto de que, desde o golpe de estado de 1848, o regime francês tornara-se

republicano, social, ditatorial, temporal e disponível para um triumvirato sistemático. Este Positivismo como religião de estado e os seus próceres como sumo-sacerdotes era uma dose

excessiva para os sucessores liberais do mestre. A partir de então, os "intelectuais" como Littré e Mill separaram-se dos positivistas "integrais". Littré divulgou a visão da patologia de Comte, chamando a atenção para a crise cerebral de 1826, que o incapacitou por dois anos. Vale a pena examinar como um homem parece louco aos olhos dos liberais. Afirma Littré que, no estado normal e positivo, a mente concebe fenómenos governados por leis imanentes. O homem deve conhecê-los para adquirir domínio sobre a natureza e sobre si próprio, ce qui est le tout de la civilization. Mas na segunda fase, Comte sofreu "le retour à l´état théologique" por obra de forças anímicas. A teologia relapsa é a grande queda. Os critérios de declínio são: 1) A fé numa realidade transcendente ao mundo, como sucede na religião cristã ou equivalente. 2) O pressusposto de que todas as faculdades humanas se podem exprimir numa civilização. 3) O pressuposto de que o amor pode ser um princípio orientador de acção, precedendo a razão. Tal diagnóstico não é só o que Littré pensa de Comte. É o que todos os

positivistas intelectuais, de Mill aos neo-positivistas de Viena, pensam dos valores ocidentais. A aceitação popular desta atitude converteu o positivismo num dos mais importantes movimentos de massas no Ocidente. O cultivo dos valores, para além do domínio da natureza e de si mesmo, é considerado deficiência mental. Para erradicar a lenda da doença mental de Comte, muito contribuiu a obra de George Dumas Psychologie de Deux Messies Positivistes, Saint-Simon et Auguste Comte, Paris, 1905. Provou Dumas que não faz sentido falar das "duas vidas" de Comte, porque Saint-Simon só teve uma, e também desenvolveu um messianismo. Napoleão surgia como a primeira

concretização de um messias, muito embora rival. Comte e Saint-Simon eram figuras comuns da era 1800-1848, após o fim do antigo regime, religioso e político, do catolicismo e da monarquia, e induzidos a crer num futuro totalmente novo. Nas Lettres d’un habitant de Genève, 1803, Saint- Simon considera-se como um vigário de Deus na Terra, o primeiro dos messias seculares, depois seguido por Fourier, Comte, D’Enfantin e Bazard. Enfantin idolatra Saint-Simon e revê-se no papel de um novo Isaac. Em 1851 Comte délivre a sua Proclamation decisiva: "Em nome do passado e do futuro, os servos teóricos e os servos práticos da humanidade assumem adequadamente a orientação geral dos assuntos terrenos em ordem a construir, enfim, a verdadeira providência moral, intelectual e material; excluem irrevogavelmente da supremacia política todos os diversos escravos de deus,

católicos, protestantes ou teístas, dado que são retrógrados e perturbadores". (Cf. Système, vol.4) Se Comte era um messias da sua época, como é possível falar de duas vidas ? E que significado tem a invenção de Littré ? O messianismo de Comte já está presente desde 1820 e a ideia de um novo poder espiritual desde 1822. Tal como qualquer leitor pode comprovar, Comte criou o Cours como base para uma posterior obra religiosa. Mas, como Dumas explicou, os contemporâneos da revolução estavam demasiado perto dos acontecimentos para saberem o que se passava. Em meados do séc. XIX, a sociedade liberal adquirira alguma estabilidade. O messianismo tardio de Comte participa dos furores revolucionários mas surge numa fase de estabilização temporária da crise ocidental. A

argumentação anti-cristã e anti-monárquica que serve para a destruição do ancien régime é aceitável para a geração de1850. Mas a proposta de uma nova religião é inaceitável para liberais consolados com uma cultura fragmentária e considerada como "le tout de la civilisation". Claro que a fraqueza de Littré e de todo o positivismo reside em não saberem responder a uma questão. Para quê destruir os valores ditos ‘irracionais’ do Ocidente se os substituem por uma imitação menos gloriosa?

§ 2. Um diagnóstico do liberalismo de Littré

No conflito entre Comte e Littré deparamo-nos com o principal problema da crise ocidental. Nos intervalos da gradual decomposição de valores civilizacionais por revoltas, há períodos de acalmia. Comte é o escatologista intramundano que planeia uma nova era. Littré está satisfeito com a purga histórica fectuada. O comteano é o megalómano que presume ver o plano da história e que tem

profundidade suficiente para se aperceber da natureza e dimensão da crise. O tipo de Littré representa a mistura peculiar de destrutividade e de conservadorismo, característica do complexo de ideias e sentimentos que designamos por liberal. Participam nas revoluções até que a civilização esteja destruída ao nível da respectiva personalidade fragmentária. Como não têm cultura suficiente para distinguir entre cristianismo e corrupção da Igreja, estão prontos a extinguir o cristianismo, porque não gostam da Igreja, e julgam assim resolver o problema social. Não percebem o problema da institucionalização do espírito. Como vivem nesta ilusão, surpreendem-se quando surgem novas variantes do espírito a clamar pela institucionalização, e ainda mais "detestáveis" que o cristianismo. Não percebem o que se passa porque não têm substância espiritual suficiente para lidar com

corresponde às suas limitações ruinosas. A única vantagem é não se julgarem demiurgos que criam as pessoas à sua imagem. Ficou-lhes do cristianismo e do humanismo um certo respeito pelos outros, e um certo auto-respeito, caraterísticos do republicanismo francês dos tempos áureos, pelo menos até ao sectarismo do tempo do affaire Dreyfus. Um liberal assim é muito sensível a movimentos que perturbem a sua independência económica e política e é empurrado para posições conservadoras, até que por fim se torna reaccionário. Littré rompe com o Comte ditatorial mas não fornece uma

alternativa convincente. O positivista liberal reduz o significado da humanidade à manipulação científica da natureza e do homem, e retira-lhe vida espiritual e liberdade. O escatologista ditatorial arrebanha os castrados e enxerta-lhes o seu espírito. A decomposição de um acelera a do outro. Escreveu Gouhier que o historiador independente vê bem a unidade do pensamento de Comte. Mas para homens como Littré ou Charles Robin, entender Comte implicava, também, conceder a um Sumo Sacerdote o direito de casar e baptizar crianças. Se prevaricassem, corriam o risco de serem censurados, como Comte fez no funeral de Blainville. Gouhier considera que os positivistas

intelectuais mutilaram a doutrina genuína porque foram homens eminentes que se retiraram a tempo. Eis o ponto melindroso;homens eminentes aceitam o positivismo enquanto atitude intelectual

irresponsável mas recusam-no quando a necessidade de ordem colide com a prática quotidiana. Eles são os precursores dos modernos alemães que acolheram bem as prelengas do salvador da pátria mas que recuaram horrorizados quando viram posto em prática o programa que já conheciam: " So haben wir es nicht gemeint"

§ 3. A continuidade biográfica

A visão da continuidade no pensamento de Comte ficou comprometida pela divergência entre positivistas intelectuais e integrais. A geração seguinte já compreendeu a continuidade, como se depreende da obra de Lévy-Bruhl, La Philosophie d’Auguste Comte, Paris, 1900. Para melhor apurar essa continuidade, socorremo-nos dos estudos de Henri Gouhier, La jeunesse d’Auguste Comte et la formation du Positivisme, 3 vols.1936-1941, e de Pierre Ducassé, Méthode et intuition chez Auguste Comte, Paris, 1939, Essai sur les origines intuitives du positivisme, Paris, 1939, La méthode positive et l’intuition comtienne, Paris, 1939. São estudos magistrais embora negligenciem um ponto decisivo: Auguste Comte foi um escatologista intramundano. Esse ponto pode ser realçado pelo estudo da autobiografia intelectual intitulada Préface Personelle, no último volume do Cours. Comte provinha de uma famíilia muito católica e monárquica do Sul da França. Fôra educado no Lycée, restaurador do velho sistema teológico-metafísico. Aos 14 anos passara já pelas fases essenciais do espírito revolucionário, formulando o desejo de uma regeneração filosófica e política. A formação posterior adquirida na École Polytéchnique fê-lo ver a luz da renovação: os métodos da ciência usados para estudar os fenómenos inorgânicos devem também ser aplicados aos fenómenos orgânicos e sociais. Por influência de Condorcet, surgiu-lhe a ideia de uma hierarquia enciclopédica das ciências e o instinto de uma "harmonia final" entre as tendências. Estes começos foram depois abalados pela associação com Saint-Simon. As tentativas fúteis de acção política directa perturbaram a elaboração da "obra". Em 1822 recuperara o equilíbrio e, aos 24 anos, descobria a lei dos três estádios que

produziu "a verdadeira unidade mental e social". A "harmonia final" deveria aguardar pela elaboração da nova filosofia positiva. Em 1842, a tarefa chegara ao fim e o leitor possuia a "sistematização final" da filosofia em elaboração desde Descartes e Bacon. Alguns detalhes sobre esta operação consciente de "produzir a unidade". Afirma Comte que os antigos eram favorecidos, porque a sua meditação não era perturbada pela exigência de múltiplas leituras. A meditação dos modernos é perturbada na

os dados que lhe pareciam necessários ao plano, impondo-se uma "higiene cerebral". Para não

perturbar o espírito fundamental da obra, negava-se a leitura de livros relacionados com o assunto em que estava a trabalhar. Para escrever a segunda parte do Cours, sobre a sociologia, deixou de ler jornais políticos e filosóficos, diários ou mensais. Reduziu as leituras preparatórias, gabando-se de nunca ter lido Vico, Kant, Herder ou Hegel em qualquer língua, embora se dispusesse a aprender alemão para comparar a sua nova unidade mental com os esforços sistemáticos dos alemães. A esta "higiene " atribui a precisão, energia e consistência das suas concepções. No final do vol.6 do Cours, surge uma retrospectiva do que sucedeu durante a operação de escrita dos seis volumes. A revolução francesa compelira o espírito humano a enfrentar o problema da renovação total. Uma situação sem precedentes requeria uma intervenção filosófica para afastar a anarquia iminente. Mas não visa uma acção directa, no sentido de Saint-Simon. É, antes, o processo concreto em que a inteligência de um homem reproduz "pessoalmente" as fases sucessivas da moderna evolução mental. Desembaraça-se da metafísica e da teologia para atingir o estádio positivo pleno. Esta transformação influenciará todos os pensadores enérgicos, induzindo-os a colaborar na "systématisation finale de la raison

moderne" . A "reprodução espontânea" será seguida pela elaboração das várias ciências no espírito da "nova unidade filosófica." Entre as obras importantes projectadas, conta-se uma Philosophie Politique em quatro volumes. A instalação final da nova filosofia será obtida através da elaboração do "estado normal" da ciência política correspondente.

§ 4. As fases da obra

A auto-interpretação de 1842 é corroborada nos seus vários aspectos por posteriores afirmações de Comte. No que se refere às fases da obra, podemos distinguir quatro. A primeira fase é o período da intuição inicial centrada na "grande descoberta" de 1822. As obras deste período foram reeditadas como Appendice Général do vol. 4 do Système. e incluem o re-intitulado Plan de travaux

scientifiques necéssaires pour réorganiser la société que refere as três etapas da humanidade. A

segunda fase abarca o período de elaboração oral, e depois literária, da teoria positiva. O resultado é o Cours de Philosophie Positive, 1830-1842. A terceira fase é a da República Ocidental e dos escritos que instituem a religião e poder espiritual. A obra principal é o Systéme de Politique Positive, 1851- 54. Outros escritos desta fase incluem o Appel au Public Occidental, 1848, o manifesto da Sociedade Positivista, 1848, o Catéchisme Postiviste de 1852, e o Appel aux conservateurs, de 1855. A obra principal da quarta e última fase é a Syhthèse Subjective da qual apenas saiu o primeiro volume Système de Logique Positive, 1856, já escrito na "nova era" e destinado às autoridades educativas da nova república. Podemos designar esta fase por República global porque Comte passou a incluir civilizações não-ocidentais no seu sonho grandioso. Além das indicações do Système para alargar a república às religiosidades chinesa e africana, os documentos típicos são as cartas de 1852 ao Czar Nicolau e ao antigo grão-Vizir do Império Otomano, visado federar a Rússia e o Islão com a

República Ocidental.

§ 5. Meditação e renovação pessoal

As obras de Comte não são apenas uma série de tratados sobre assuntos vários. Estão ligadas pela "elaboração de uma intuição". Mais do que fases de uma boa ideia ou de um plano, são uma "renovação" pessoal, uma transformação em racionalidade positiva. A intuição inicial é uma

antecipação visionária da fase final; a obra é um precipitado da meditação. A visão enciclopédica das ciências no Cours não pretende ser uma introdução às ciências. É, antes, o desentranhar do método

positivo das ciências naturais, para ser aplicado à ciência do homem, e assim esclarecer o lugar do homem na sociedade. É uma prática espiritual e não uma investigação científica. Pouco importa se o Cours retrata fielmente o estado da ciência. O que conta é a "hygiène cérébrale" apropriada à

"operação". Uma vez dada a visão inicial, de pouco contam os materiais acumulados e as opiniões alheias num processo cujo fim é já conhecido.

§ 6. Intervenção e regeneração social

Até aqui considerámos o processo meditativo na existência solitária do pensador. A operação

comteana, contudo, adquire uma outra dimensão pela relação entre renovação pessoal e regeneração social. A lei dos três estádios tanto é de evolução pessoal como social; o que vale para a ontogénese, vale para a filogénese, poder-se-ia dizer. Na verdade, Comte passa do catolicismo caseiro para a metafísica revolucionária do sec. XVII e para a intuição positiva do seu século. Mas para que a

humanidade passe da anarquia à ordem positiva é preciso um esforço pessoal. É preciso a intervenção pessoal de um homem com visão que terá de compreender a época presente, começando por a

produzir dentro de si. Esta transição pessoal para o estádio positivo deve inspirar a regeneração da humanidade. A transformação pessoal deve antecipar a transformação social de que a humanidade carece. Através desse homem, o esprit humain progredirá para um novo nível de ordem. A

interligação entre níveis pessoal e social num só movimento histórico assume aspectos curiosos. No Préface Personelle Comte explica po rque razão o vol. 2 do Cours surgiu em 1834. A revolução de 1830 obrigara-o a procurar um novo editor e "a minha natureza e os meus hábitos impossibilitam-me de escrever um livro a menos que seja para publicação imediata". O processo meditativo pessoal tem de fluir logo para o processo social de regeneração. Esta marca do estilo explica as frases, parágrafos, capítulos e volumes intermináveis. Nada esclarecem mas correspondem ao desejo de comunicação incessante de todas as tonalidade da meditação. Em particular, destaca-se a monomania de adjectivos e advérbios, "perfeitamente" inúteis, mas que transmitem a urgência da operação efectuada. O que Alphonse Aulard chamou les assomants adverbes (assurément, radicalement, décisivement,

spontanément, pleinement, directement, suffisament, necéssairement, irrévocablement, certainement, exclusivement, etc.) e os adjectivos correspondentes, escondem o núcleo de sentido. Não é que o estilo seja confuso ou a gramática e lógica atropeladas; pelo contrário. Apenas sucede o que Ducassé bem viu: nada fica por dizer; todos os recantos do pensamento de Comte são comunicados ao

público. Comte parece ter sido um homem sem privacidade e o seu estilo é sintoma da transformação da sua vida pessoal em parte da história pública da humanidade. Todos os detalhes da relação com Clotilde têm de ser comunicados de um modo que seria repulsivo e desajeitado, a menos que se compreenda a importância de fixar na humanidade este evento, maior que o nascimento de Cristo. O princípio de "vivre au grand jour" não respeita sequer a morte. Os que acedem à humandade positiva vivem para sempre "subjectivamente" na comemoração. Incumbe ao Sumo Sacerdote da humanidade fixar a imagem do falecido, contra tudo e todos. Registe-se ainda a obsessão das preocupações e a monumentalização das trivialidades da vida pessoal. Um homem com o carácter de Comte não se enquadrava em instituições e funções públicas. Jamais obteve o lugar de professor e perdeu mesmo funções secundárias que desempenhava. Comunicava ao público a sua luta com as autoridades educativas e, quando ficou sem vencimento, criou uma subscrição entre os sectários positivistas. Emitia orçamentos anuais aos subscritores, em que formulava pedidos para o ano seguinte e dava conta das despesas do ano transacto. Essas Circulaires tornaram-se a principal fonte para o

desenvolvimento do culto comteano após a sua morte e, além dos orçamentos do Sumo Sacerdote, anotavam também os progressos e projectos da sua Igreja. A monumentalização das trivialidades e a

obssessão hagiográfica atinge o extremo no relato da ligação entre os progressos meditativos e o consumo de estimulantes. Na crise de 1826 abandonou o tabaco, em 1838 o café, e no "ano

incomparável" de Clotilde, deixou de beber vinho - sacrifício que reduziu as despesas pessoais. Se sobrevivesse à sua morte, certamente que informaria ter abandonado tudo. Mas a "permanência subjectiva" ultrapassa a morte, como se vê no Testament. O seu apartamento (10, Rue Monsieur-le- Prince, Paris) é legado como a Santa Sé da religião da Humanidade. A plena posse e propriedade será cedida aos sucessores, com uma cláusula: deverão venerar particularmente a "cadeira vermelha, forrada de verde e marcada na sua frente com as minhas iniciais em cor vermelha". O assento de Clotilde de Vaux nas visitas de quartas-feiras fôra um altar doméstico que só servirá para funções religiosas.

§ 7. A divinização da mulher

A relação com Clotilde de Vaux poderá não ter influenciado o desenvolvimento das ideias de Comte mas afectou decerto a sua vie sentimentale, como se depreende das orações diárias. Lemos na Prière du Matin: "Apenas a ti, minha santa Clotilde, estou reconhecido por não sair desta vida sem ter experimentado as melhores emoções da natureza humana. Um ano incomparável fez surgir

espontaneamente o único amor, puro e profundo, que me era destinado. A excelência do ser adorado permite-me, na maturidade, mais favorecida do que a minha juventude, vislumbrar em toda a sua plenitude a verdadeira felicidade humana. Vivre pour autrui" (Testament, 2º ed., pp.81 e ss.) "Para me tornar um filósofo perfeito, eu precisava de uma paixão, profunda e pura, que me faria apreciar a

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