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Em 2006 foi publicado pela editora Bispo, o livro Aurélia, a dicionária da

língua afiada, de autoria do jornalista Vitor Ângelo, cujo pseudônimo é Ângelo Vip, e

Fred Libi, cuja identidade é desconhecida. O dicionário traz descrição de Fred Libi como uma doença da cabeça do jornalista e cineasta Vitor Ângelo43. Este último

42 Não há qualquer referência de que o livro teve financiamento de algum dos locais mencionados. 43 Conforme consta em uma reportagem da revista Isto É: http://istoe.com.br/22926_O+AURELIO+DOS+GAYS/

64 escrevia no Blogay, blog sobre a comunidade LGBT do site Uol e faleceu em 2015. Em 17 de Junho de 2006, a dicionária foi lançada na Parada Gay de São Paulo44. O livro é

resultado de uma pesquisa feita ao longo de dez anos, a partir de entrevistas, conversas e coleta de termos e expressões utilizadas pela comunidade LGBT no Brasil. Os vocábulos da Aurélia são descritos por ordem alfabética, e possui um prefácio, assinado por A. Jaccourd, apresentado como doutor em linguística, com tese de doutorado em ‘linguagem chula e a linguagem erudita falado nos Tristes Trópicos’”. (VIP; LIBI, 2006, p. 9)45. Nele a Bíblia é reportada: a história da construção da Torre de Babel, em

que a humanidade é punida com a confusão das línguas. Importante refletir que tanto no dicionário Aurélia, como no Bichonário, existem referências às escrituras cristãs, embora o bajubá esteja conectado às religiões afro-brasileiras, sobretudo ao candomblé, que possuem outra cosmogonia.

O prefaciador refere os elementos lexicais do dicionário, com o “contexto gilbertofreiriano”46, de uma miscigenação das línguas, através da figura do cafuçu, cujo

significado é apresentado como “Roceiro, asselvajado; peão [...]” (VIP; LIBI, 2006, p. 38). O dicionário considera, ainda, que se trata de um indivíduo que “tem um estilo de vida baranga, não importando raça, credo, profissão, classe social ou país de origem” (VIP; LIBI, 2006, p. 38). Dessa forma, o cafuçu pode ser compreendido como alguém que é simples, “deselegante”, trabalhador, em que pesa origem e classe social, como também raça/etnia, uma vez que o prefácio relaciona o cafuçu com a miscigenação no Brasil.

Na abertura do livro consta um alerta sobre o uso de termos e expressões e seus significados: “Este dicionário não tem a pretensão de ser politicamente correto. Muitos termos são chulos e pejorativos, podendo ser ofensivos para determinadas pessoas ou grupos. Nesse caso, recomendamos a interrupção imediata da leitura.” (VIP; LIBI, 2006, p. 5). Os autores completam a abertura dizendo que a intenção do livro:

[...] é a de levantar o maior número possível de termos ligados de alguma forma à cultura gay e lésbica e reuni-los num volume que retrate seus usos mais comuns na prática da NOSSA LÍNGUA PORTUGUESA!” (VIP; LIBI, 2006, p. 5).

44 Não foram encontradas informações sobre tiragem do dicionário Aurélia. 45 Não encontramos qualquer referência sobre este pesquisador.

46 Apesar de Gilberto Freyre não ter formulado a expressão “democracia racial”, sua obra seminal Casa- Grande & Senzala (2005), publicada em 1933, sistematizou essa perspectiva através da ideia de um Brasil sem preconceito e discriminação racial. O mito da democracia racial passou a ser criticado ao ser considerado uma visão que perpetua as hierarquias sociais (SOUZA, 2000; SILVA, 2015).

65 Em entrevista para a Folha de São Paulo em maio de 2006, Vitor Ângelo afirma que as travestis (no entanto, ele se refere a elas no masculino) foram as responsáveis por grande parte dos termos apresentados no dicionário47. Embora haja essa afirmação, na

citação acima o autor diz reunir termos ligados à cultura gay e lésbica, não mencionando as travestis. Em 2006, as travestis já reivindicavam o reconhecimento no universo LGBT e apresentavam demandas distintas dos gays. Sendo assim, o processo de apagamento das travestis nesse contexto é diferente do que ocorre nos documentos anteriormente apresentados. Nesse sentido, podemos demarcar a intencionalidade dos autores em fazer coincidir os gays e a identidade travesti, revestindo essa última de um silenciamento e apagamento que se potencializa na insistência pelo uso do pronome masculino para identificá-las. Até mesmo o reconhecimento de que o bajubá seria uma linguagem praticada pelas travestis, sendo elas as responsáveis por sua criação e manutenção, e a demarcação de 59 vocábulos descritos como pertencentes ao bajubá, parece insuficiente para legitimar a existência das travestis:

Baseado nas línguas africanas empregadas pelo candomblé, é a linguagem praticada inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura do lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau, do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa. [var.: pajubá]. (VIP, 2006; LIBI, p. 26). Nos verbetes presentes no dicionário constam, em sua maioria, o estado, região, por vezes o país de maior uso. Muitas palavras são originárias de países como Portugal, Cabo Verde e Moçambique. Alguns vocábulos e expressões são provenientes do inglês e também do francês, como é o caso da palavra Lash (do inglês), que significa “o ato de jogar o picumã, fazer a egípcia, virar a cara, dar rabissada, sempre com a intenção de tombar alguém.” (VIP; LIBI, 2006, p. 80). E também do termo Monique (do francês), que significa “Mônica, mona, môni, monete.” (VIP; LIBI, 2006, p. 92).

O nome Aurélia gerou disputa com a família do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e a detentora dos direitos autorais da marca Aurélio (editora Positivo). De acordo com a colunista Nina Lemos, da Folha de São Paulo: “A tal ‘homenagem’ não agradou a família do dicionarista nem a editora Positivo, que detém os direitos sobre as edições e comercialização do ‘Aurélio’ desde 2003.”48

47 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u60885.shtml.

48 O diretor de marketing do grupo Positivo, André Caldeira, afirmou que “tomaria todas as medidas judiciais cabíveis para defender a marca.” (Disponível em:

66 O dicionário também possui algumas ilustrações de corpos nus, especialmente de homens, elementos de afetividade entre homossexuais e lésbicas, figuras femininas e elementos considerados representativos no universo LGBT.